Do caderno reivindicativo da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa passou a constar, desde esta quarta-feira, 20 de dezembro, uma nova exigência: o pagamento de uma creche disponível 24 horas por dia, para minimizar o impacto das alterações nos horários de trabalho na empresa que, em 2018, entrará em modo de produção contínua, com 17 turnos semanais – sábados incluídos – para produzir o carro T-Roc. Segundo o jornal i, dois infantários da Margem Sul já se mostraram disponíveis para receberem os filhos dos funcionários da multinacional automóvel.
A Volkswagen realizou em Palmela um investimento de 670 milhões de euros para a produção deste modelo mas, sem acordo com os trabalhadores, as entregas das encomendas ficarão ameaçadas. A creche foi o trunfo que o ministro Vieira da Silva ousou jogar para desbloquear o impasse negocial na empresa – e, surpreendentemente, esse terá sido mesmo o factor chave para que as partes retomassem o diálogo. Já em outubro a Autoeuropa havia reunido com os trabalhadores com filhos para ver como poderia ser evitado que os casais ali empregados vissem a sua vida familiar radicalmente afetada.
A concretizar-se, esta oferta de uma creche 24 horas por dia não será uma estreia nacional: há muitas crianças que ficam dias e noites em regime de quase internato em creches “especiais”, onde se despem bibes e vestem pijamas, onde se passam fins de semana, férias grandes ou até o Natal, adaptando as rotinas do dia-a-dia dos mais pequenos às exigências das profissões dos pais.
Dos contactos realizados pela VISÃO, só na Grande Lisboa existem legalmente declaradas cerca de mil crianças nestes regimes de horários alargados em creches e infantários, sendo estimado que o número não oficial de vagas deste tipo seja três a quatro vezes superior.
“Há muito mais procura do que oferta”, garante Rita Diogo, uma gestora de recursos humanos de 52 anos que foi proprietária de uma creche no Estoril que funcionava 7 dias por semana, 24 horas por dia. Durante seis anos, este foi o seu negócio – e um bom negócio, “apesar de não praticar os preços que se justificariam” pela entrega que um trabalho deste tipo exige, garante. “Só era possível porque eu é que assegurava os turnos da noite e fins de semana. É muito difícil conseguir pessoal para fazer este tipo de horário”, lamenta, e “a carga fiscal sobre as horas classificadas como extraordinárias não facilita” a expansão da oferta, diz.
Agora é diretora de uma creche “normal”, com horário de encerramento fixado nas 19h30, porque “a idade também começou a pesar”. Mantém apenas alguns meninos sob a sua asa, pela noite dentro ou nas férias de verão, mas num regime mais semelhante ao de uma ama. São crianças que hoje têm 3 a 5 anos e conhecem o seu colo desde os 8 a 9 meses de idade. “Algumas ficam comigo três ou quatro noites seguidas, enquanto a mãe vai voar, por exemplo”, conta. Outros, diz, queixam-se aos pais que têm saudades de quando dormiam à noite na escola. “Muitos são filhos únicos e é muito mais divertido para eles estarem com outras crianças na brincadeira até irem para a cama do que ficarem em casa sozinhos, a ver televisão.”
Outros diretores de creches contactados pela VISÃO declinaram dar explicações sobre o modo como as crianças que acompanham lidam com estadias mais prolongadas nas instituições mas Rita Diogo garante que, em seis anos de trabalho contínuo, nunca sentiu que os “seus” meninos se ressentissem por estarem muitas horas afastados dos pais. “Penso que ajudava o facto de estarem no mesmo espaço da creche de todos os dias e ficarem sempre à noite comigo, e não com educadores diferentes de semana para semana. Alguns pais queixam-se da impessoalidade das creches das empresas, onde é mais difícil encontrar as mesmas pessoas nos turnos” e criar laços com as educadoras.

GOVERNO APOIA ALARGAMENTO DE HORÁRIOS
A vinculação a uma figura cuidadora é fundamental nos primeiros anos de vida e a entrega de crianças em horários prolongados nas creches necessita, inclusive, de uma justificação por escrito dos pais e da direção pedagógica da creche à Segurança Social. “As crianças devem estar o máximo de tempo com os seus pais” é uma máxima repetida por todos os especialistas em pedagogia e pediatria.
O ministro Vieira da Silva, defensor do ajustamento dos horários das creches às reais necessidades dos pais, entende que o alargamento desta oferta social é necessário para que possa existir uma maior conciliação da vida profissional e familiar, tendo declarado, na sexta-feira passada, que “o governo assumirá as suas responsabilidades, que podem ser concretizadas com um envolvimento mais forte no que toca ao reforço da criação de equipamentos sociais de apoio à família que responda a um novo quadro horário, por exemplo”.
Mas, como em tudo na vida, terá de haver sensibilidade e bom senso. Periodos superiores a 8 a 9 horas de afastamento do ambiente familiar não são recomendáveis, nem várias noites sem o aconchego do beijinho do pai ou da mãe antes de dormir. Algumas empresas, como a Auchan, que criou há cinco anos os infantários Rik & Rok, em Alfragide e na Amadora, abertos até à meia noite e meia para os filhos dos seus funcionários (com capacidade para 150 crianças), limitam também os periodos em que os menores, entre os 4 meses e os 6 anos, podem permanecer nas instalações: 11 horas seguidas, no máximo, e 5 dias por semana.
A creche mais flexível será mesmo a da TAP, pioneira nesta oferta de cuidados 24 horas por dia, 365 dias por ano. Inaugurada em 1972, hoje recebe cerca de 300 crianças. Os funcionários que trabalhem por turnos ou tenham de se ausentar do país em serviço podem deixar os seus filhos na creche em qualquer horário, e de forma livre, a troco de 11% do seu ordenado: a companhia aérea comparticipa o restante valor.
“A maioria dos meus clientes eram médicos, pilotos, hospedeiras… mas há muitas outras profissões que necessitam de horários prolongados e que procuram soluções deste tipo”, explica Rita Diogo que, tal como outros responsáveis de creches contactadas pela VISÃO, assume haver uma crescente pressão dos pais em busca de locais para deixar os filhos até, pelo menos, às 21h. Até porque muitas multinacionais comparticipam a mensalidade de creches em horário alargado, buscando uma maior igualdade de género e o aproveitamento do talento feminino, tantas vezes “abafado” pelo choro das crianças pequenas.
Se sempre houve trabalho por turnos e profissões mais exigentes em termos de disponibilidade, certo é que hoje cada vez mais famílias declaram ter dificuldade em lidar com o prolongamento da jornada dita “normal”, que está muito longe do mítico horário das 9h às 5h.
Entre a mente criativa de uma startup milionária e a empregada de limpeza que (sobre)vive nos subúrbios da capital há, apesar de todas as diferenças dos mundos onde se movem, um fator em comum, caso tenham filhos pequenos: as suas vidas dificilmente encaixam nos horários regulares das creches e infantários disponíveis. Paradoxalmente, o que as une é também o que depressa as separa. Na luta pela conciliação entre a vida familiar e profissional, a liberdade de escolha só está verdadeiramente na mão de quem a puder pagar.