Uma vez, numa reunião em início de ano letivo, um colega alto e musculado afirmou a respeito de uma turma difícil que me tinha cabido em sorteio: “Quando os vi pela primeira vez, tive medo.”
Eu nunca tive medo. Já me senti impotente, desesperada, frustrada, revoltada e mesmo agoniada. Com medo, nunca. Já cheguei a sair da sala a chorar, arrastando-me com o peso da frustração na mochila. Já me apeteceu dar um estalo a um aluno insolente. Já vivi momentos que não desejo ao meu pior inimigo. Mas medo, não. Já contei várias até dez, já respirei fundo e engoli em seco em várias aulas para conseguir avançar. Mas medo nunca senti. Mesmo quando recebo turmas de alunos mal educados e repetentes que olham para mim como um inimigo e um alvo a abater. Já tive aulas que não foram aulas mas autênticos campos de batalha, guerras abertas entre a agressividade do aluno e a desilusão do professor.
Não, nunca senti medo. Pelo contrário, enfrento a solidão das suas almas e penso para comigo que aqueles alunos precisam ainda mais de mim do que os outros, aqueles meninos da escola “in” do bairro chique de Lisboa onde poderia ter ficado a trabalhar quando me profissionalizei. Porém, a minha vida profissional – se calhar como todas as vidas – é feita de desafios. Só que os meus desafios deixam marcas diariamente dentro de mim.
Quando, há vinte e sete anos, comecei a ensinar Português numa escola pública situada numa zona carenciada da cidade de Lisboa, nunca pensei chegar até aqui, onde hoje ao escrever esta crónica, me encontro: num estado físico e psicológico tal que nem cem dias de férias consecutivos conseguiriam apaziguar. Ser professora de alunos que encaram a escola como um fardo e uma mera obrigação intensifica o processo de desgaste a que esta profissão já há muito me habituou. Os anos letivos sucedem-se numa azáfama sem deixarem tempo para o que verdadeiramente interessa. A sobrecarga burocrática, os exageros programáticos, a massa humana constituída por trinta e um alunos por turma, o salário estagnado há anos, a indisciplina permanente dentro e fora da sala de aula, as reuniões infrutíferas, os testes obrigatórios, a preparação para o exame e o resto… O resto que é tudo, afinal.
Quando há um aluno que vem à escola de manhã e de tarde se suicida, o mundo fica do avesso e o professor questiona a sua função e, pior ainda, questiona-se a si próprio. Cada vez mais me convenço de que a primeira tarefa de um professor é trabalhar a relação humana com os seus alunos, mostrar-lhes novas perspetivas de vida, deixar uma semente de mudança em alunos que dela necessitam avidamente. Jovens adolescentes a quem, por vezes, falta quase tudo: famílias estruturadas, ambientes propícios à aprendizagem e à curiosidade para aprender, autoestima, autoconfiança e até comida…
Uma das principais dificuldades que sinto no meu dia a dia profissional, enquanto professora / orientadora – mais para o exame do que para a vida – é encontrar tempo para estar atento ao outro, observar os seus comportamentos, ouvi-lo, apoiá-lo. Porque a escola, sei-o bem, pode ser um lugar de grande solidão. No meio de centenas de jovens barulhentos há sempre um silêncio intransponível dentro de alguns.
Quantas vezes, numa aula em frente a três dezenas de seres fervilhantes de vida, de sonhos e de mágoas, não me senti impotente para conseguir chegar a todos? Quantas vezes não me apeteceu simplesmente ignorar o programa? Destruir o manual? Sair da sala com eles para as ruas da cidade? Explicar-lhes que a vida é dura e difícil, injusta muitas vezes, implica ganhos e perdas mas vale a pena ser vivida até ao fim. Sem batota.