A família passava férias na Nova Zelândia quando Quintus, então com seis anos, recebeu o diagnóstico de diabetes. “Tinha sempre sede, fazia muito chichi e estava sempre cansado”, conta a mãe, Fanny Moeller, 44 anos, arquiteta paisagista. A doença ditou o regresso urgente a casa, na Dinamarca, e a aprendizagem de uma série de rotinas para que pudesse continuar vivo.
Ao fim de três anos, os seus níveis de açúcar no sangue continuam instáveis e imprevisíveis. “O gráfico das medições da glicemia parecem a volta à França, uma sucessão de subidas e descidas”, ilustra a mãe. Quintus, hoje com nove anos, sofre pelo menos uma crise de hipoglicemia diária – os níveis de açúcar baixam tanto que pode desmaiar ou mesmo entrar em coma –, e tem de ser picado, em média, vinte vezes, ao longo do dia e da noite. Se o nível estiver muito baixo, Fanny tem de obrigá-lo a comer, ainda que o filho esteja ferrado no sono. E nem a bomba de insulina, que lhe está pregada ao corpo, dispensa a injeção com um reforço da hormona, de quando em vez.
Apesar de todo este tormento, Quintus continua a ser uma criança alegre e ativa. Pratica natação de competição e gosta de correr no jardim com os amigos. Nestas brincadeiras, há um amigo inseparável: Fritzz, o cão da raça braco húngaro de pelo curto. É o fiel companheiro de caça de Fanny. Além disso, foi treinado para salvar a vida de Quintus, detetando a iminência de uma crise, normalmente impercetível para os doentes e pessoas à sua volta.
“Estava à procura de uma forma de o tornar mais independente e autónomo”, conta a mãe do menino. Primeiro contactou uma especialista do Ministério da Defesa americano, Karla Brewster, com trinta anos de experiência no treino de cães de assistência e alerta. Depois de treinados, estes animais conseguem avisar os donos de que estão prestes a sofrer uma quebra de açúcar ou um ataque epilético, por exemplo. Mas a América era um destino longínquo e caro demais para levar Fritzz. Então a americana recomendou-lhe o trabalho de Rui Elvas, presidente da Associação Portuguesa de Cães de Assistência (APCA) e treinador certificado.
Depois de um ano e meio de treino, cinco deslocações de Rui Elvas à Dinamarca e uma de Fritzz e Fanny a Portugal, o animal passou “com distinção” no teste final para ser cão de assistência. “Tem um olfato excelente, é muito sociável e equilibrado”, justifica o treinador português. “É o primeiro cão de alerta certificado para diabetes na Dinamarca”, realça Rui Elvas que, além da vasta experiência com os animais, também tem grande conhecimento da doença, que afeta o pai e o irmão.
Além de se encarregar do cão, também ensinou a mãe de Quintus a ser ela própria treinadora. “É um trabalho diário e mais eficaz se a pessoa for a própria mãe da criança.” Nas sessões de treino, Fritzz cheirava rodelas de algodão embebidas na saliva de Quintus, quando a taxa de açúcar no sangue começava a baixar. Também aprendeu a dar sinal de forma subtil. “Não podia ladrar, para evitar assustar as pessoas à volta, nem bater com muita força. Ensinámo-lo a dar um toque ligeiro com a pata, acompanhado de um ladrar suave”, conta Fanny, que dá por muito bem empregues os 17 mil euros de investimento no treino e certificação de Fritzz. “Não é nada fixe levar a mãe para o jardim, sempre que se vai brincar. Mas andar com um cão é.”
Agora, a próxima batalha da dinamarquesa é que a lei do seu país seja tão inclusiva quanto a portuguesa, que permite a entrada de cães de assistência em todos os locais públicos, sem exceção. “É a melhor lei do mundo”, realça o presidente da APCA.
Cães que cheiram o cancro
A organização não governamental inglesa, Medical Detection Dogs, também se dedica ao treino destes animais. Até agora, já entregaram 77 animais, especializados em antever crises diabéticas, ataques epiléticos ou uma patologia cardíaca que leva as pessoas a desmaiar sem aviso prévio. Também é possível ensinar um cão a detetar a presença de nozes no ambiente, no caso de pessoas altamente alérgicas. A ONG vive de doações e não cobra um tostão por este trabalho. Em contrapartida, tem uma lista de espera de três anos e só fornece animais, em regime de empréstimo, a cidadãos residentes na Grã-Bretanha, explica Kate Williams, responsável pelo programa de biodeteção da ONG.
Apesar da procura, esta não é a única atividade da instituição. Uma parte importante do trabalho é o estudo e treino de cães para detetar doenças, uma componente que nasceu da experiência pessoal da própria CEO, Claire Guest. Psicóloga e especialista em comportamento animal, tinha 44 anos e três cães quando a labrador Daisy começou a ter uma atitude estranha. Num dia de agosto de 1999, começou a olhar intensamente para a dona, atirando-se sucessivamente na direção do seu peito. A insistência de Daisy, uma cadela dócil e bem-comportada, levou Claire a procurar o médico, que lhe descobriu um cancro da mama, em fase muito inicial. A partir daí, a investigadora ficou ainda mais convencida da capacidade de diagnóstico destes animais, cujo olfato é quarenta vezes mais potente que o do ser humano.
“O primeiro caso conhecido de um cancro detetado por um cão foi descrito no British Medical Journal na década de noventa”, lembra Kate Williams. Tratava-se de um melanoma na perna e o animal teve um comportamento igualmente estranho. “É ponto assente que cada patologia tem um odor que lhe está associado. E os animais apercebem-se da alteração no cheiro do seu dono, passando a comportar-se de forma mais ansiosa”, diz-nos a especialista da Medical Detection Dogs. “Só acontece em animais que têm uma ligação muito forte ao dono.” Vários centros de investigação tentam desenvolver narizes eletrónicos que possam fazer isso de forma artificial, detetando os compostos voláteis emitidos por determinadas doenças. “Trabalhamos em colaboração com estes grupos de cientistas, mas um animal, para já, é muito mais rápido. Leva menos de um segundo para cheirar cada amostra e demonstra uma capacidade olfativa muito superior à de qualquer um destes equipamentos”, continua Kate Williams. Além dos projetos na área do cancro, vários deles na fase de ensaios clínicos, a Medical Detection Dogs também participa em estudos para a deteção de malária e Parkinson, sempre em colaboração com médicos do Serviço Nacional de Saúde britânico.
Ratos que detetam tuberculose
Conhecida pelo seu trabalho de desminagem, com recurso a ratos, a associação belga APOPO começou há alguns anos a usar a mesma estratégia para detetar tuberculose. Instalada em três países africanos – Etiópia, Tanzânia e Moçambique – onde as taxas de infeção são elevadas, a associação enfrentou um grande nível de ceticismo entre a população. Mas, aos poucos, a desconfiança vai desaparecendo e até já há pessoas que aparecem à porta do laboratório a tentar um diagnóstico quando os médicos não dão respostas.
Treinados para cheirar amostras de expetoração, os ratos recebem uma recompensa de cada vez que acertam no diagnóstico, o que já aconteceu em quase onze mil análises. Mesmo assim, não são infalíveis e não dispensam uma contraprova laboratorial. Para já, só 25% das amostras dadas como positivas pelos animais se confirmam. Além disso, o rato não tem capacidade de distinguir uma tuberculose normal de uma multirresistente. Mas o baixo preço e a portabilidade do animal leva a que haja interesse em continuar esta linha de investigação.
A ideia de usar animais para detetar doenças não é nova. Tal como já na década de 80 do século passado se procurava provar que os animais têm a capacidade de detetar os seus próprios problemas de saúde, mudando a alimentação com o propósito de se tratarem. Há mais de 30 anos, Michael Huffman, da Universidade de Quioto, encontrou em África chimpanzés que se automedicavam, sugando o sumo de plantas amargas. As mesmas folhas eram consideradas medicinais pela população local. A planta praticamente não tem valor nutricional e os chimpanzés só lhe tocam quando estão doentes. Huffman identificou uma série de propriedades antiparasitárias nas ditas plantas. Ao longo dos anos, os cientistas têm vindo a perceber que os chimpanzés estão longe de serem os únicos animais a tratarem da própria saúde. Os exemplos estão por todo o reino animal, incluindo moscas, borboletas, lagartos e, claro, mamíferos.
À luz da evolução, não é difícil perceber que um animal que consiga tratar-se ganha mais hipóteses de sobreviver, tem mais descendentes e passa esta informação às suas crias, que a recebem quer de forma inata, no caso dos insetos, quer aprendida, no caso dos primatas, em que a cria vive com a mãe nos primeiros tempos. Numa perspetiva humanocêntrica, o mais interessante talvez sejam as pistas que estes comportamentos oferecem para o tratamento de doenças que nos afligem, como a malária. “Os parasitas protozoários, como o da malária ou da toxoplasmose, são uma grande preocupação para os humanos e podem ser suscetíveis ao mesmo tipo de compostos a que os animais recorrem para se tratarem. Estou a perspetivar algumas aplicações, no futuro”, explicou Jacobus de Roode, da Universidade de Emory, nos EUA, à publicação The Scientist.
As cobaias que nos salvam
As semelhanças entre o Homem e os restantes animais está na base do desenvolvimento de medicamentos. E não só. Se não fossem os estudos em animais-modelo (moscas da fruta e ratinhos, sobretudo), muito pouco se saberia sobre o funcionamento do cérebro ou de que forma surge e evolui o cancro.
Numa cave no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, há uma parede toda forrada a aquários. Lá dentro, dezenas de peixes-zebra andam na sua vida. São peixes de aquário há várias gerações, tal como os ratinhos usados nas experiências. No IGC, o grupo de Miguel Godinho Ferreira estuda o papel dos telómeros, as estruturas que revestem as pontas dos cromossomas, determinando o número de divisões celulares, no processo de envelhecimento. Estudam também o envolvimento da enzima telomerase (que controla o tamanho dos mesmos telómeros) nas doenças associadas ao envelhecimento das células, como é o caso do cancro. “Escolhemos trabalhar em peixes porque o processo ocorre de forma semelhante ao que acontece nos humanos”, explica o cientista.
Todas as experiências são feitas mediante o princípio da redução de dano, com animais anestesiados e abatidos sempre que se deteta sofrimento. Nenhuma experiência é aprovada sem o consentimento de um conselho de ética, que inclui elementos da sociedade civil. “A fase de testes em animais é imprescindível. Sem esta não teríamos medicamentos”, frisa Miguel Godinho Ferreira.
Um amigo não julga
Sempre que lhe põem o colete verde, Brownie, um labrador de três anos, sabe que está em trabalho e assume um comportamento ainda mais sereno. Há um ano, seria impensável ver Daniela, 18 anos, à distância de um palmo de Brownie. Com múltiplas deficiências, passa o dia no Instituto da Imaculada Conceição, em Lisboa. Vê muito mal, apresenta alguma rigidez nos membros e mostra pouca vontade de se mexer. Susana, de 42 anos, utente de longa data do instituto, também tinha fobia de cães, o que estava a limitar muito a sua família. “Já nem queria sair à rua, tal era o pânico”, relata a psicóloga Alexandra Carvalho e Silva. Hoje em dia, quando acaba a sessão semanal com a veterinária Rosário Bobone, fundadora da Pets4People, que promove intervenções assistidas por animais, ninguém quer sair da sala de terapia.
Além de mitigar o medo de cães, a convivência com o labrador também tem vindo a estimular a atividade física e o relaxamento muscular, introduzindo uma inovação na rotina dos exercícios. Nas sessões, a dupla de terapeutas tenta promover a motricidade fina e o desenvolvimento cognitivo. Nos miúdos com autismo, a indiferença perante o adulto contrasta com a efusividade com que recebem a visita de Brownie. “Reparam que ele tem sono, por exemplo”, sublinha a psicóloga. “Durante este ano notámos uma explosão no desenvolvimento de muitos destes miúdos.”
Na América e no Canadá, este tipo de terapias assistidas é muito comum. São usadas em crianças com problemas de desenvolvimento, em lares de idosos para combater a solidão e a depressão, nas prisões para melhorar a autoestima, na sociedade em geral na recuperação de dependências e no tratamento de stresse pós-traumático. Em Portugal, começam a dar-se os primeiros passos e ainda não há regulação do setor.
Para se preparar, Rosário Bobone fez uma pós-graduação em comportamento animal e outra em psicologia positiva. Uma parte da sua atividade é pro bono, outra é remunerada. Além das crianças, também trabalha com idosos e está convicta de que um animal é uma poderosa ferramenta terapêutica para os psicólogos. “Não julga e não conta a ninguém o que ouve nas sessões”, justifica.
Há quatro anos que o ISPA – Instituto Universitário oferece uma pós-graduação em Terapia Assistida por Animais, em que estes são parte integrante do processo de tratamento. O objetivo destas terapias é a promoção do bem-estar físico, social, emocional e ainda o desenvolvimento cognitivo. “Percebemos que era necessário credibilizar a disciplina, com uma sustentação teórica e prática”, nota o responsável pela pós-graduação, Victor Cláudio. Paula Sousa, uma das professoras, considera que o animal é um “facilitador do trabalho terapêutico, que permite aceder mais facilmente a conteúdos traumáticos, sendo também um catalisador da comunicação.”
Neste momento, no âmbito desta especialização, 60 crianças de duas escolas de Torres Vedras, com problemas de hiperatividade e défice de atenção, estão a ser tratadas com a ajuda de um cão. Apesar de ainda não haver resultados definitivos, Paula Sousa adianta algumas conclusões. “Miúdos que eram sinalizados todas as semanas pelos professores deixaram de o ser, estão mais confiantes, têm a autoestima melhorada.” No fundo, as crianças, que por vezes vivem em famílias disfuncionais, percebem que “é possível ser ouvido, respeitado, sem agressividade, e que a comunicação pode ocorrer de forma diferente”, resume Victor Cláudio.
Também com o objetivo de validar o trabalho dos bichos, Pedro Paiva, especialista em treino comportamental animal e fundador da Pet B Havior, está a montar um projeto com a Fundação do Gil (que apoia famílias de crianças com problemas de saúde prolongados) em que se pretende avaliar o contributo de um animal no bem-estar de uma criança com cancro – bem como o impacto no próprio animal. “O objetivo é medir parâmetros que são indicadores de stresse e de bem-estar, quer na criança quer no cão”, revela Pedro Paiva, que participou em missões internacionais de busca e salvamento com o seu pastor alemão. Em equipa, encontraram mais de 400 pessoas. Ou não fosse o cão o melhor amigo do Homem.
(Artigo publicado na VISÃO 1267, de 15 de junho, de 2017)