Há 1,5 mil milhões de anos, uma bactéria comeu outra, e em vez de a maior desfazer a mais pequena, nasceu uma aliança. Resultado: quase todas as células animais têm uma estrutura chamada mitocôndria (a bactéria engolida), que é uma espécie de central energética. Esta parceria permitiu aos seres vivos evoluírem.
Paulo Oliveira, 40 anos, professor da Universidade de Coimbra, estuda estas estruturas, envolvidas em diversos problemas de saúde, como o cancro. No seu laboratório no Biocant, em Cantanhede, tenta modificar moléculas antioxidantes para que estas penetrem nas mitocôndrias de forma a corrigir defeitos e travar o processo de oxidação. Além de cientista e empreendedor criou a startup MitoDIETS com uma equipa da Universidade do Porto é um apaixonado pela divulgação de ciência, sobretudo junto das crianças, em quem, diz, se deve apostar todas as fichas para combater a pseudociência.
Como a que está por trás dos grupos antivacinas.
O movimento antivacinação é de algum modo anticiência?
Eu não iria tão longe, porque estamos a falar de grupos que continuam a beneficiar de muitos aspetos da ciência. O problema é que muitas pessoas não conseguem distinguir facilmente a ciência da pseudociência. Acabam por não ter paciência para o tempo que a ciência demora até dar resultados e então refugiam-se na pseudociência. Os que se declaram contra a ciência não são coerentes.
Há pessoas que se recusam a tomar medicamentos um produto da ciência acabando por se prejudicar a si próprios. Estão no seu direito. Mas depois têm um telemóvel no bolso, que é um produto da tecnologia que só existe por causa da ciência…
Há uma falta de coerência. Outro exemplo: em todo o mundo há milhares de pessoas que são contra a experimentação animal, por ser um sacrifício não necessário de animais. Aliás, nenhum cientista tem gosto em usar animais na experimentação.
Em toda a comunidade científica há um esforço para tentar reduzir a necessidade de o fazer. Qual é o problema? Estas mesmas pessoas que se opõem à experimentação animal tomam medicamentos que foram desenvolvidos graças a ela.
É possível combater estes movimentos anticiência?
Sim, com cultura científica, algo que até há poucos anos estava em grande défice em Portugal. Dirigida a todas as idades, das crianças aos idosos.
Eu participo em muitas atividades deste género, promovidas pelo Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, em que trabalho, e nas sessões de divulgação surgem sempre perguntas relacionadas com pseudociência.
Dietas alcalinas, ímanes no frigorífico, que supostamente alteram os alimentos no seu interior, aumentando a propensão para o cancro. É muito fácil fabricar uma mentira científica.
Mas é muito difícil desconstruí-la porque as pessoas não acreditam, optam pela via mais fácil.
Como é que se ensina a distinguir?
Sempre houve banha da cobra. Antes nas feiras, hoje na internet. A melhor forma de não ser enganado é não acreditar na primeira coisa que se lê, e perguntar-se: isto será verdade ou é uma fraude? O cancro é das áreas mais férteis em termos de fraudes, e só com curiosidade individual é que se consegue combater. Num adulto é muito difícil mudar. Este pensamento crítico deve começar nas escolas.
Devemos permitir que cresçam num ambiente mais científico. É preciso educar as crianças desde cedo e estas até podem depois levar este pensamento para casa. Há muita educação que tem de ser feita para que se perceba que a ciência não é o inimigo.
Até hoje, tem sido em crescendo. Graças à ciência, ganhamos esperança e qualidade de vida. Estamos agora em risco de regredir?
Eu diria que sim. Se continuarmos a duvidar do papel da ciência e da forma como se desenvolvem os medicamentos novos, cria-se uma pressão política para que o financiamento destas áreas seja cada vez menor. E a esperança de vida pode vir a diminuir. Temos por exemplo as resistências aos antibióticos.
Há muitos anos que não há novos medicamentos. E para continuar o desenvolvimento não é preciso separar o natural, que é uma coisa que os grupos anticiência costumam fazer: separar o natural do artificial. Muitos medicamentos são derivados de moléculas que existem na natureza.
E a ciência valida muitas vezes mezinhas usadas no passado. O natural não é inimigo da ciência. Também é preciso ver que as moléculas naturais também matam, até a água. Depende é da quantidade. Como dizia o Paracelso, o veneno está na dose.
Não é um contrassenso que seja nos países com maior tradição de divulgação de ciência, como Inglaterra ou EUA, que nascem os grupos anticiência, antivacinação?
Em parte, isto deve-se à força que um determinado grupo religioso, anticiência, exerce na comunidade.
Por exemplo, nos EUA. Até há alguns anos ensinava-se a evolução nas escolas. zOs movimentos religiosos querem abafar esta teoria e substituí–la pelo criacionismo. Esta é uma explicação possível. Outra é as pessoas começarem a ficar fartas de estar rodeadas de ciência e tecnologia, criando uma certa aversão. Temos de questionar se a educação que estamos a dar nas escolas é a mais adequada. O principal na educação é gerar indivíduos curiosos e críticos.
Na escola da minha filha mais velha, demos durante cinco semanas uma aula científica, do primeiro ao quarto ano. E pedimos às crianças que, logo na primeira sessão, desenhassem uma célula, e ficou tudo parado. Nós pedimos para inventarem.
Mas foi muito difícil conseguir que desbloqueassem porque tinham medo de fazer mal. Fiquei chocado por ver crianças tão pequenas já com tanto medo de falhar. E eu noto, nos meus alunos de mestrado e doutoramento, que tem vindo a diminuir o pensamento crítico. Há exceções, obviamente. Alunos muito bons, críticos. Mas são cada vez mais picos no meio de uma planície.
Há a pressão para ter boas notas nos exames, cumprir os programas?
Não tenho dúvida de que é por isso. Os professores estão muito preocupados por terem um programa para cumprir. É preciso refletir sobre o que deve ser a educação, o que queremos dela. E temos de começar nos mais pequenos. Porque no ensino secundário já têm demasiado medo de falhar. O facto de os movimentos anticiência estarem a espalhar-se tem a ver com a perda progressiva da vontade de conhecimento, de explorar o mundo, de ser crítico. Leva a que leiam e aceitem a primeira coisa que aparece numa busca na internet.
Os cientistas também têm falhado na denúncia da pseudociência.
A linguagem pode ser um problema. Muitos cientistas não comunicam ciência, não conseguem traduzir.
Esta é uma das grandes vantagens da pseudociência. Quem divulga estas ideias consegue comunicar uma mentira de uma forma fácil, que as pessoas percebem, e com lógica. E até há pouco tempo um cientista que comunicava ciência era malvisto. O próprio Carl Sagan passou por isso. Era malvisto pelos colegas porque aparecia na televisão.
Esta é a razão de ser da Marcha pela Ciência [ação a nível mundial, incluindo Portugal, que aconteceu a 22 de abril]? Fazer publicidade à ciência, da qual foi um dos apoiantes?
É por causa disso, para dizer que a ciência tem de ser acarinhada.
Como está a relação dos portugueses com a ciência, comparativamente a outros países?
O financiamento da ciência está a diminuir em vários países europeus. Há uma pressão muito grande para arranjar financiamento. Perdemos muitas e muitas horas a concorrer a projetos. Por causa disso, muitos cientistas estão a considerar deixar a ciência para se dedicarem à consultoria. Há até o caso de um cientista inglês que se suicidou por não ter conseguido arranjar financiamento para a sua investigação. É um problema mundial.
Em Portugal, aprovámos há pouco tempo o diploma que regulamenta as medicinas alternativas. É um sinal preocupante?
É. Mas é preciso ver que nem todas as medicinas alternativas são completamente pseudociência. Lá no meio, às vezes há qualquer coisa que é uma verdade científica. E há o efeito placebo. Se as pessoas se sentem bem, não vamos ser nós, os cientistas, a proibir. Não podemos é dizer que tem o mesmo peso que a medicina convencional, feita com base na experimentação e na observação.
Um medicamento, antes de aparecer no mercado, é sujeito a muitos testes e verificações.
Mesmo assim, as práticas alternativas apropriam-se de certo modo da linguagem científica.
Completamente. Com a vantagem de terem um discurso mais simples. Mais fácil de entender. Há uma vantagem competitiva, sabem comunicar. Há cientistas que começam a perceber que ou sabem comunicar ou qualquer dia deixam de ser precisos e perdem os empregos. Porque não há financiamento ou porque as pessoas não acreditam no que fazem.
Há muitos cientistas que são crentes. Isto não é incompatível?
De maneira nenhuma. E é um disparate pensar que é. Aliás, isto pode ser a principal fonte de problemas.
Quer ao nível dos cientistas que não comunicam com pessoas religiosas, porque acham que aquilo é tudo uma maluqueira, quer ao nível das pessoas religiosas, que não se não se aproximam da ciência. E temos o exemplo da evolução dos animais complexos. Eu obviamente que não acredito no criacionismo. Mas ao longo da evolução das espécies houve saltos evolutivos. Há o exemplo das mitocôndrias, as centrais energéticas das células. Porque é que estão dentro de nós? Há 1,5 mil milhões de anos, uma bactéria maior comeu uma mais pequenina, como alimento. Só que esta, em vez de ser destruída, tornou–se parte da célula. Se tivesse sido destruída, ou não havia vida na terra ou não tínhamos passado de bactérias.
E um processo semelhante para as plantas, que têm os cloroplastos [onde ocorre a fotossíntese]. Dois fenómenos que permitiram criar células complexas, no reino vegetal e no animal. Terá sido o acaso? A seleção natural? Ou o Criador a dar um empurrão? Quero dizer com isso é que há muita coisa que a ciência tenta explicar, mas faltam pequenos detalhes. O que é a ajuda externa fica à consciência de cada um.
Mas o facto de não conhecermos estes detalhes será um problema circunstancial, por falta de equipamentos, de conhecimento que ainda não foi possível produzir. Daqui a cem anos, estas falhas já poderão ter sido preenchidas.
É possível, se continuar a haver ciência…
Ou seja, é possível não acreditar em nada transcendental e esperar que os saltos venham a ser explicados pela ciência.
O papel do cientista também é surpreender-se todos os dias. E muitos cientistas surpreendem-se mais, ficam mais abertos, se acreditarem que este mundo gira à volta de um Criador. Há uma segunda maneira de ver o problema, em que este Universo é quase perfeito e cabe–nos a nós descobrir como é que o Criador fez o mundo.
O chamado design inteligente. Para si, a Física, a Biologia, a Química não são suficientes para explicar tudo o que nos rodeia?
Exatamente! Há alguma equação para nos explicar o nada?
Mas isso pode ser uma limitação nossa.
Eu acho que nunca vamos conseguir fazê-lo. O mesmo relativamente ao cérebro. Como é que um conjunto de moléculas, iões, que interagem se traduzem naquela memória perfeita do grilo a cantar numa noite de verão? Nunca vamos ter nenhuma equação que traduza isso. Há coisas que estão para além da compreensão.
Entrevista publicada na VISÃO 1260 de 27 de abril