[Todos os relatos aqui apresentados foram feitos à VISÃO por médicos do Sistema Nacional de Saúde. Optou-se pelo anonimato para salvaguardar a sua relação contratual.]
“Sempre quis ser médica. Até há quinze dias, depois da pior experiência de urgência da minha vida, em que acabei o turno e liguei ao meu irmão para lhe comunicar que queria deixar a profissão e ser sócia dele na agricultura.
Vi-me a ter de lidar, ao mesmo tempo, com três situações urgentes, a necessitarem de cuidados intermédios/intensivos, mas sem vagas para internamento. Houve um doente que tive que colocar na reanimação, enquanto se tentava encontrar pelo menos uma cama monitorizada. E, claro, com doentes a chegarem e a necessitarem desta sala de reanimação e nós a improvisarmos! Expomo-nos, como profissionais. E, se houver algum problema, a culpa é sempre nossa, porque, no fundo, aceitamos trabalhar nestas condições.
O meu horário de consulta é das oito às dez e meia da manhã. Mas já desisti de chegar a horas, porque nunca, mas nunca, consigo começar a ver um doente antes das oito e meia. E não é porque os doentes venham atrasados. É porque o processo de admissão é lentíssimo, à conta do sistema informático. Há doentes que só ficam registados uma hora depois de terem chegado à admissão. Nessa altura, já não tenho sala disponível para consulta. Tento, então, arranjar outro gabinete. Quando não consigo outros espaços para atender os doentes, a consulta fica sem efeito e é preciso remarcar. No fim, para o doente, de quem é a culpa? Do médico.
Estamos presos ao programa de efetivação, que não parece ter forma de ser melhorado, que em média demora 15 minutos a efetuar o registo. A empresa que fez o programa do serviço de urgência faliu, logo não há como pedir-lhes uma atualização do mesmo.
A sensação que tenho é a de que querem acabar com o Serviço Nacional de Saúde, tal é a maneira como estão a tornar tudo insuportável. Para os profissionais, mas também para os doentes.”
C. médica do SNS há 15 anos
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“No meu hospital, que é uma unidade central, chegamos a ter mais de 200 doentes internados e durante a noite deixamos de ter radiografias. Precisamos delas para perceber se o estado de um doente se agravou, para nos prepararmos para o entubar, por exemplo. Quando é muito necessário, temos de pedir que venha um técnico de outro hospital. O que pode demorar uma hora, pelo menos. Nunca vivemos nada assim!
No outro dia, durante uma visita do ministro da Saúde a um hospital, fez-se uma dança de doentes. Os que estavam capazes de andar, foram postos no refeitório, a almoçar. Os que estavam em maca – há sempre doentes internados em maca – foram ocupar os quartos que ficaram temporariamente vazios. Isto aconteceu só enquanto o ministro e os jornalistas por lá andaram. Terminada a visita, voltou tudo aos seus lugares.
L. médico do SNS há 25 anos
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“A minha maior angústia é lidar com a falta de vagas para internar os doentes. Várias vezes por semana, temos doentes acumulados em macas, à espera que saia alguém do internamento. Agora, com a gripe, tem sido péssimo. De cada vez que é preciso internar um doente, temos de fazer vários telefonemas, a pedir vagas – os doentes da Medicina Interna, por exemplo, estão espalhados pelo hospital todo. Os centros de saúde deixaram de ter internamento, numa política que ninguém entende, e acabamos por ter no hospital pessoas que não precisariam de cuidados tão especializados, só porque as famílias não têm condições de levar os familiares para casa.
No meu serviço, há pessoas internadas desde novembro.
E claro, há o problema transversal dos computadores. Na enfermaria, é uma competição para chegarmos cedo e reservarmos um computador. Se nos levantamos para ir ver um doente, quando voltamos já está outra pessoa no computador e ficamos impossibilitados de fazer lá o registo.
Também é muito difícil lidar com as carências económicas. Ainda hoje apanhei um doente diabético, hipertenso, com necessidade de fazer cinco fármacos, essenciais. Há quase um mês que está à espera da reforma para os comprar. Durante este tempo, só tem feito a insulina porque esta é gratuita. Está quase cego. Tem 60 anos!”
C. médica do SNS há 12 anos