Na manhã em que Paulo Teixeira saiu de casa do seu pai, em Sacavém, levava três cadelas, 50 euros e dois sacos de compras. Tinha feito 43 anos no dia anterior e não se lembrava de nenhum motivo para festejar, mas saía decidido a virar a sua vida do avesso. Perdera o emprego ao fim de mais de vinte anos a servir à mesa e ao balcão. Não demorara muito até ser obrigado a largar o apartamento alugado, no Barreiro, e agora estava farto de sentir que era um peso demasiado pesado para a família.
Uns meses antes, começara a andar a pé três a quatro horas seguidas. Em tempos correra maratonas e sabia que fazer caminhadas o ajudava a organizar as ideias. “Já que não tenho trabalho”, pensou, “vou caminhar”.
Em vésperas de fazer anos, anunciou, então, que iria a pé até Santiago de Compostela. Por ele, só pararia em Rovaniemi, na Finlândia, mas se dissesse logo aí que queria conhecer a aldeia do Pai Natal iam chamá-lo de louco, não era? Calou, por isso, esse sonho antigo e, no dia 11 de janeiro de 2015, meteu-se nas suas tamanquinhas rumo ao norte.
Um homem, três cadelas e um carrinho – um camping car móvel, chama-lhe ele que anda há um ano, um mês e duas semanas a puxar pelos mais de cem quilos do bicho, hoje a sua imagem de marca. Um homem moreno e franzino, três cadelas de raça indefinida e uma bandeira de Portugal pendurada num carro que já teve melhor aspeto. Se acrescentamos isto agora é porque o Amigo Paulo (gosta de ser conhecido assim) avisa, antes que alguém se lembre de copiar a ideia, que a viagem nem sempre correu bem.
‘Selfies’ e estrela de TV
Passou fome em Espanha e, Europa acima, foi confundido várias vezes com um refugiado. “Sofri humilhações porque há quem não os aceite. Olhavam para mim, para as cadelas e para o carro como se tivéssemos acabado de sair da Feira da Ladra.” E na Dinamarca, no rescaldo de um jogo de futebol em que os portugueses despacharam a coisa com um golo a zero, vandalizaram-lhe o carro.
Tudo isto soa a um passado remoto quando o apanhamos ao telefone em Kalix, uma pequena vila na Lapónia sueca onde estava a passar a noite, a convite da família Enbom. Chegara ali após caminhar vinte quilómetros debaixo de uma neve fininha que caía sem parança. O vento, “desagradável”, devia ter varrido toda a gente para as suas casas porque não se cruzara com ninguém durante todo o dia. As fotografias que foi pondo no Facebook não o deixam mentir: é só paisagens geladas e vazias.
De Kalix a Rovaniemi são 200 e picos quilómetros por estradas secundárias. Com a ajuda de Jonas, o patriarca, Paulo faz as contas rapidamente: deverá estar a conhecer o Pai Natal no fim desta semana. Uma equipa de um jornal finlandês espera-o na aldeia; até já avisou os duendes que vão receber a visita de um português com os seus três cães.
Paulo ri-se e tem um ataque de tosse. Ainda está a curar uma gripe “terrível”, embora o frio seja agora mais fácil de suportar – dois graus negativos, um tempo primaveril para quem caminhou com 27 graus abaixo de zero. Ao fim de três meses a atravessar devagarinho um país coberto de branco, é bom jantar e dormir em casas aquecidas como a dos Enbom.
Tem sido assim desde o dia de Natal. Na noite da Consoada ainda montou a sua tenda junto a um supermercado, para não ficar no escuro, mas logo pela manhã foi abordado por membros da igreja local que o encaminharam para o edifício onde dormem os funcionários da Câmara. Tinham reconhecido o “Amigo Paulo” e as suas três cadelas das notícias.
Pouco depois de entrar na Suécia, os media ouviram falar na sua história “e foi a loucura”, ri-se ele, tossindo novamente. Fizeram-se reportagens em quase todos os países por onde passou mas na Suécia Paulo perdeu-se no número de entrevistas e nunca mais teve de dormir na tenda. “Foram quatro ou cinco canais de televisão locais e um nacional, seis ou sete jornais e três ou quatro rádios a quererem contar a história da Golden Heart Team. Dizem que é inspiradora.”
O nome, roubado a uma música dos Dire Straits, é piroso em Português (Equipa do Coração de Ouro) mas em Inglês passa boas energias. “Sou um herói, sou o sonho dos suecos, ora pergunte aqui ao Jonas…”
Jonas Enbom não o deixa ficar mal. Confirma a onda de simpatia na Suécia e à terceira frase já está a confessar ter inveja do seu hóspede. “É uma experiência de vida única. Bem gostava de fazer o mesmo, mas com a família e o emprego…”
Na manhã seguinte será ele a levar as cadelas ao veterinário da vila. Jacky e as filhas, Heidi e Enya, estão ótimas de saúde mas precisam de uns selos nos seus passaportes para poderem entrar na Finlândia. E Jonas conhece bem o veterinário porque os Enbom têm um cão, um denominador comum às famílias que já abriram a porta ao estranho quarteto.
Paulo é o primeiro a dizer que boa parte da popularidade da sua viagem se deve às suas cadelas “extraordinárias”. Nos primeiros dias de neve, usaram umas botinhas que alguém se lembrou de oferecer, mas rapidamente se adaptaram ao frio. Aprenderam a andar ao lado do carrinho, sem puxar pelas trelas, e são simpáticas com todos os que as abordam.
Quem etiquetou os suecos como pouco expansivos tem de abrir uma exceção aqui: não há bicho-homem que não se meta com a Golden Team. Pedem para tirar selfies e buzinam à passagem. “Aqui, na Suécia, tem sido o esplendor”, ainda se espanta Paulo. “Os condutores acenam a desejar boa sorte e a polícia já interrompeu uma via rápida só para nós atravessarmos.”
Algumas das selfies e das muitas fotografias que tira pelo caminho vão aparecendo na sua página de Facebook (Amigo Paulo) porque faz questão de agradecer publicamente a quem lhe oferece mantimentos ou guarida. Escreve em Português, chamando sempre “Madame” às mulheres, “Mr.” aos homens e “patudas” às cadelas. Existe ainda uma outra página, em Sueco, que vai avisando por onde está a passar o “andarilho” Paulo e os seus três cães (Öppna upp för “vandraren” Paulo o hans tre hundar). “As pessoas leem a cronologia e é como se estivessem a ler um livro de que gostam”, compara.
Casa, emprego e um livro
Paulo sabe do que fala. Em casa das famílias que lhe dão abrigo – e já foram mais de quarenta – nunca entra mudo e sai calado. “Isto não pode ser só comer, dormir e ir embora”, ensina. “As pessoas merecem ouvir a nossa história.” E ele conta-a uma e outra vez, em Inglês apesar de só ter estudado até ao atual 6º ano.
Conta-lhes, então, como aos 16 anos já estava a trabalhar num restaurante, o Galeto, em Lisboa, e como depois da tropa voltou à hotelaria porque sempre gostou do contacto com o público. Foram 23 anos a servir à mesa, e julgava que nunca iria fazer outra coisa até ter ficado desempregado. Nessa altura, sentiu-se perdido.
“Quando estamos em baixo procuramos tudo”, diz, para tentar explicar porque se lembrou de ir a pé até Santiago de Compostela apesar de não ser católico. E como, pelo caminho, passou por Fátima e mais tarde por Lourdes.
Os primeiros dois meses que gastou para sair de Portugal foram uma espécie de estágio para o resto da viagem. “Tive de ser inteligente para, através do contacto direto com as pessoas, obter ajuda sem pedir nada.” E os três últimos meses passados na Suécia deixam-no descansado em relação ao futuro. “Recebi várias ofertas de casa e emprego, e também querem publicar um livro com a minha história, mas não sei…”
Com ou sem livro, a sua história só ficará completa em dezembro, quando regressar a Lisboa. Realizado o sonho de visitar a aldeia do Pai Natal, Paulo tenciona meter-se novamente a caminho, com paragens prometidas em casa das famílias que conheceu na ida. O regresso terá outro sabor, porque a história é a mesma mas a personagem mudou. “Do ponto de vista psicológico sou outro. E, só por isso, a viagem já valeu a pena.”