Com o sol do Alto Alentejo já a fazer mossa, o segundo treino do dia da seleção da Grã-Bretanha de remo faz-se, pelas onze horas, dentro de um ginásio com vista privilegiada para a água. Alinhados, quinze remadores puxam as cordas dos ergómetros enquanto se inspiram com a beleza e calmaria da albufeira do Maranhão. O barulho destas máquinas de remo indoor mistura-se com a banda sonora ritmada de Walk of Life, hit dos Dire Straits nos anos 80. Sincronizados como uma orquestra, estes homens de um metro e noventa e troncos suados puxam ao máximo pelos bíceps, peitorais e coxas.
No fim, uma rápida picada no lóbulo da orelha vai servir para tirar sangue e verificar os níveis de ácido láctico durante o exercício físico. São 45 minutos que correspondem a 12 quilómetros de regata. Às sete da manhã, os atletas já tinham ido à água com os seus barcos, treino que hão de repetir perto das seis da tarde. É com discrição que o alemão Jürgen Gröbler, 69 anos, supervisiona todos os movimentos. Para o chefe de equipa, nenhum pormenor pode ser descurado.
Estes quinze dias de estágio antecedem a participação no Campeonato do Mundo de Aiguebelette, em França, que decorre de 30 de agosto a 6 de setembro, onde terão a derradeira oportunidade de se qualificar para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro do próximo verão. São os melhores, mas ainda não têm um lugar ao sol no Brasil. É aqui, do lado de cá do Atlântico, que vão trabalhar para o merecer.
O Mourinho do remo
Desde 2009, quando conheceu a Herdade da Cortesia num stand na Taça do Mundo de Lucerna, na Suíça, que a seleção britânica de remo escolhe o hotel de quatro estrelas em Avis para assentar arraiais antes das grandes competições. Vêm três vezes por ano, duas semanas de cada vez, e têm reservas até 2020. “Aqui, encontramos tudo o que precisamos. Águas calmas, uma albufeira com vários braços, uma paisagem de cortar a respiração e um ginásio muito profissional”, assegura Jürgen Gröbler, cuja afinidade com Portugal se deve ao filho ter casado com uma portuguesa. Como treinador, participou dez vezes nos Jogos Olímpicos, tendo ajudado à conquista de mais de vinte medalhas de ouro. Mas é da primeira, ganha em 1972 em Munique pela seleção da República Democrática Alemã, que se recorda com mais afeto. Nos últimos 45 anos, já lhe passaram pelas mãos lendas do remo como Steve Redgrave e Matthew Pinsent, que subiram ao topo do pódio das Olimpíadas em 1992, 1996 e 2000. Pelos bons resultados alcançados aos comandos da equipa britânica, foi considerado o treinador do ano em 2000 e recebeu a Ordem do Império Britânico em 2006.
Enquanto os britânicos estão no início do estágio, o português Fernando Pimenta, 26 anos, vice-campeão olímpico em 2012, já vai na reta final. Há 14 anos na canoagem, o jovem natural de Ponte de Lima tem-se cruzado na herdade com as melhores equipas mundiais, mas o rigor do treino e o cansaço ao fim do dia faz com que não partilhem muitas experiências. “Este local tem a tranquilidade necessária para nos mantermos focados. Bom plano de água, calma, sem correntes e com pouco vento”. Será já no Campeonato do Mundo de Velocidade, a decorrer em Milão até 23 de agosto, que Fernando Pimenta mostrará de que massa é feito, sozinho em K1 e com João Ribeiro, Emanuel Silva e David Fernandes em K4.
Diz-me onde treinas…
Em Avis, as vitórias dos melhores do mundo são também vividas com intensidade por Luís Ahrens Teixeira, 41 anos, antigo remador de alta competição, e Pedro Alte da Veiga, 42 anos, arquiteto. Para os donos da Herdade da Cortesia, flexibilidade é a chave-mestra da filosofia do hotel, construído para ser “o” centro de estágio do remo eleito pela nata dos remadores. “Este hotel foi pensado para os atletas, na perspetiva de quem aqui passa 15 dias”, explica Pedro. Por isso, há pormenores que passam despercebidos mas fazem a diferença, acompanhando-os desde que aterram no Aeroporto de Lisboa se os atletas precisam de tomar o pequeno-almoço às seis da manhã, por exemplo, para estarem prontos para o treino das sete, assim acontece (além disso, na cozinha tentam não repetir nenhum prato); nos 30 quartos com 25 metros quadrados, as camas têm 2,10 metros, a mesma altura de todas as portas do hotel, ou não fosse a maioria dos hóspedes da Alemanha, Dinamarca, Noruega, Áustria e até Nova Zelândia; também os recantos dos corredores irregulares foram transformados em pequenas salas de estar, com televisor e acesso à internet, permitindo conviver sem ser preciso estarem várias pessoas dentro de um único quarto; a meio caminho entre o ginásio e o hotel, na piscina, com 24,9 metros (se tivesse 25m, teriam de contratar nadador-salvador) e 2,40 metros de profundidade, conseguem fazer pistas para atletas de triatlo. “Somos dos mais caros do mundo para estagiar”, admite Luís Ahrens Teixeira.
Os três braços muito extensos do lago artificial, com poucos barcos a motor a agitarem as águas (sem construção em redor, apesar da proximidade de Avis) e a tranquilidade natural da paisagem são outras mais–valias da herdade, eleita logo no ano em que abriu, em 2009, o segundo “melhor projeto privado” pelo Turismo de Portugal.
O investimento de 5,5 milhões de euros, de capital próprio, viu o seu plano de negócio nascer em 2004, com as obras a avançarem dois anos mais tarde. Nessa altura, tornou-se a segunda casa de remadores como o norueguês Olaf Tufte, campeão olímpico em 2004 e 2008. Luís foi o primeiro a conhecer a região de Avis e a barragem, quando aqui começou a treinar nos anos 1990. Formado em Economia e tendo remado entre 1988 e 2007, com participação em nove campeonatos mundiais, o também presidente da Federação Portuguesa de Remo sempre conseguiu conciliar o trabalho numa empresa de organização de congressos com os treinos do remo.
Apesar de o enfoque ser o remo, existem outros hóspedes no hotel. E mesmo quem não fique a dormir pode almoçar ou jantar no Restaurante 180, que remete para a panorâmica sobre a barragem 180 graus de vista.
Na ementa, destaque para os pratos regionais, como os secretos de porco alentejano com migas de espargos, o pastel de farinheira e a sopa de cação. Para breve, Luís e Pedro gostavam de acrescentar bungalows, T0 e T1, para tornar a estadia mais independente.
Como alimentar campeões
Com ligeiras substituições, a equipa está junta desde 2004, sendo Peter Reed o mais antigo de todos, com duas medalhas de ouro nas duas últimas edições dos Jogos Olímpicos.
Enquanto os 27 pesos-pesados do remo olímpico britânico descansam de fora ficaram os ligeiros e as mulheres, que não treinam em Portugal, fisiologistas, biomecânicos e fisioterapeutas acertam as estratégias.
No ano passado, veio uma nutricionista na comitiva, que na realidade passou umas belas férias em Avis Luís Ahrens Teixeira sabe melhor do que ninguém o que é preciso para alimentar estes homens com cerca de 90 quilos e que gastam cinco mil calorias por dia (mais do dobro de uma pessoa normal).
E não falta nada, desde 40 quilos de laranjas por dia para o pequeno-almoço, sacas de 25 quilos de muesli, centenas de quilos de bananas, legumes, muitos hidratos de carbono e proteína às restrições alimentares de muçulmanos, vegetarianos ou celíacos há resposta para todos.
Luís e Pedro não contabilizam a quantidade de medalhados que por ali já passaram, mas recordam casos de sucesso, como o da inglesa Charlotte Taylor, que trabalhava numa agência de viagens desenhando trilhos de ciclismo (a forma que arranjou para trabalhar e treinar ao mesmo tempo). Depois de, num inverno, ter vindo treinar a Avis, tornou-se campeã europeia.
Também duas atletas dinamarquesas (uma delas, grávida, na altura) vieram aqui treinar e, mais tarde, alcançaram o quarto lugar nos jogos de Londres, em 2012. Com resultados destes, não se estranha que venham tantos atletas treinar à albufeira do Maranhão estranha-se é que não venham mais.