Há quarenta anos, os circos que passavam pelo Coliseu dos Recreios, em Lisboa, traziam sempre uma troupe de chimpanzés vestidos de gente. Pareciam miúdos armados em crescidos, a tomar o pequeno-almoço, a andar de bicicleta, a fazer equilibrismo. O ponto alto no número era quando bebiam cerveja e fumavam charutos. Mais ou menos por essa altura, quem chegava cedo ao Jardim Zoológico apanhava os chimpanzés a molhar pão nas canecas de café com leite. Iguaizinhos a nós.
Vinte anos depois, então ainda no meio de muitas jaulas, a primatóloga Catarina Casanova confessava-se dividida entre a facilidade de estudar aquela população e as grades. “Sendo eles tão semelhantes a nós, será eticamente correto estarmos aqui deste lado, a observá-los neste tipo de cativeiro?”, perguntava.
Nesse início dos anos 90, a comunidade científica já os sabia capazes de fazer ferramentas com outras ferramentas, uma habilidade que se julgava exclusiva dos humanos. Partir nozes com pedras ou fabricar lanças para caçar era canja para eles. E, enquanto lá de fora chegavam ecos de estudos que demonstravam que os chimpanzés tinham noções de aritmética, Catarina Casanova descobria na comunidade do Zoo de Lisboa um macho exímio em fazer campanha política pelo lugar predominante no grupo: começara a catar os elementos mais jovens para conquistar as suas mães.
Afinal, o que é que nos distingue deles?
O americano Steven Wise, advogado e ativista dos direitos dos primatas, não vai por aí. Há décadas que lhe chega saber que alguns animais não humanos têm complexidade cognitiva suficiente para não merecerem ser considerados “coisas” – é o caso das quatro espécies de grandes símios (orangotango, gorila, chimpanzé e bonobo), muitas espécies de cetáceos (como a orca e o golfinho) e todas as espécies de elefantes. Manter um chimpanzé em cativeiro, numas condições em que não pode construir um abrigo, socializar com outros do seu género ou procurar comida, “é semelhante a condenar alguém à prisão perpétua”, costuma comparar. “A nossa missão”, diz sobre a ONG Nonhuman Rights Project (NhRP), que encabeça a par de nomes como o da primatóloga inglesa Jane Goodall, “é alterar o [seu] estatuto legal para ‘pessoas’ que possuem direitos fundamentais como o da liberdade.” A evolução da moral e as descobertas científicas conferem-lhes esse direito.
Será?
Quando os escravos eram ‘coisas’
O debate reacendeu-se no final de 2013 e nunca mais arrefeceu. Em dezembro desse ano, a NhRP apresentou a um tribunal do estado de Nova Iorque o caso de Tommy, um velho chimpanzé de circo que passa os dias numa pequena jaula de cimento, em Gloversville. O seu dono, Patrick Lavery, argumenta que Tommy se diverte a ver desenhos animados, no televisor colocado à sua frente.
Quando a ONG iniciou o processo, vários anos antes, os seus membros tinham identificado sete chimpanzés em cativeiro só no estado de Nova Iorque. Três deles morreram, entretanto. Além de Tommy, sobreviveu Kiko (que ficou surdo durante a produção de filmes do Tarzan e vive numa casa particular), Hercules e Leo (ambos propriedade da Universidade de Stony Brook, onde são objeto de experiências de bipedismo). Para todos, Steven Wise e a sua equipa apresentaram pedidos de libertação imediata (habeas corpus), um mecanismo que permite uma pessoa presa contestar a detenção.
Se forem libertados, os quatro seguirão para o santuário Save the Chimps, na Florida, onde podem passar o resto das suas vidas numa das treze ilhas artificiais, com outros 250 chimpanzés, num ambiente o mais próximo possível do seu habitat natural.
Se, leu bem.
A incógnita, aqui, é grande, enorme. Até agora, e o NhRP já vai em vários recursos, os tribunais têm rejeitado liminarmente os pedidos de habeas corpus. Os argumentos não variam muito, e “os chimpanzés não são pessoas” é o mais comum. No caso de Kiko, um dos tribunais indeferiu a pretensão dizendo que ele não ficaria em liberdade – no santuário, estaria igualmente em cativeiro.
Antes de avançar com os pedidos, os juristas da ONG procuraram em todos os Estados aqueles tribunais que têm decidido a favor de extensões da personalidade jurídica. No de Nova Iorque, há, por exemplo, várias decisões no sentido de animais de estimação poderem herdar bens dos seus donos. “Nos países anglo-saxónicos, os juízes decidem segundo princípios e respeitam-se os precedentes judiciais”, lembra a advogada Alexandra Reis Moreira, membro da comissão diretiva da Jus Animalium, uma ONG portuguesa parceira da NhRP (Ver entrevista no final desta página).
Na manga, Steven Wise traz sempre um trunfo: a comparação com o caso de James Somerset, um escravo que, em 1772, conseguiu fugir e ia ser novamente vendido se o juiz, Lord Mansfield, não tivesse decidido que ele era uma “pessoa” e não uma “coisa”.
Até então, ninguém questionava que os escravos eram “coisas”.
Uma linha ténue nos separa
A falta de precedência tem sido o maior obstáculo nestes casos, mas na NrHP acredita-se que o debate gerado à volta do tema vai levar os juízes a decidirem a favor. “A opinião pública está a mudar, este é claramente o momento certo para a lei alterar o seu ponto de vista em relação aos animais”, lê-se no site da organização.
O debate é global e não é de agora, escreva-se. Em 2007, correu mundo o caso do chimpanzé Hiasl, de 26 anos, que vivia na Áustria, num santuário que faliu. Para evitar a sua venda, um empresário anónimo doou cinco mil euros e uma professora inglesa, Paula Stibbe, tentou ficar como sua tutora legal. Costumava visitá-lo, levava-lhe bolos e material de pintura. Eternecia-a o facto de ele gostar de ver o canal de televisão da National Geographic. O tribunal rejeitou o seu pedido porque Hiasl não era uma pessoa.
Mais recentemente, em dezembro do ano passado, chegou a notícia de que um tribunal argentino tinha aceitado um pedido de habeas corpus apresentado pela AFADA (Associação de Funcionários e Advogados pelos Direitos dos Animais) a favor de Sandra, uma orangotango de 29 anos, a viver há vinte no Zoo de Buenos Aires. Não seria o caso, na verdade. Mas o facto de um juiz ter querido ouvir os argumentos foi considerado uma vitória. Um passo no sentido da admissão de Sandra como pessoa.
O desfecho, neste caso, acabou por ser favorável à orangotango: o Zoo e a província de Buenos Aires, a que pertence, decidiram enviá-la para um santuário, na Florida, onde há 45 primatas, 18 deles orangotangos.
Na NrHP espera-se mais do que isso. O objetivo final não é apenas libertar alguns animais não humanos mas, sim, alterar o seu estatuto legal. Para o dia 27 de maio está marcada uma audiência em que vão novamente ser esgrimidos os argumentos a favor de Hercules e Leo. Foi a 20 de abril que a juíza Barbara Jaffe tomou a decisão de ouvi-los, e embora se tenha apressado a riscar a expressão “habeas corpus”, Natalie Prosin, diretora executiva da ONG, já rejubilou publicamente: “Metemos o pé na porta. E, independentemente do que vai acontecer, essa porta nunca mais voltará a fechar-se completamente.”
A linha é ténue, reconhece a jurista Paula Martinho da Silva, ex-presidente da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida. “Penso que iremos, no futuro, sobretudo com o aperfeiçoamento dos cyborgs, ser confrontados cada vez mais com a consistência dessa linha. Em teoria, poder-se-iam estender alguns direitos humanos aos chimpanzés. Mas como selecionar os mais característicos? E como evitar o risco contrário de excluir os seres humanos que não possuam determinadas características? Os inconscientes? Os moribundos? Os incapacitados?”
A descobrir num futuro cada vez mais próximo.
“Tudo o que é novo causa sensação”
Alexandra Reis Moreira, advogada, membro da comissão diretiva da ONG Jus Animalium
Aquilo que o Nohuman Rights Project está a fazer podia ser tentado em Portugal?
Nos países legalistas não é previsível. Muito provavelmente, o pedido de habeas corpus seria rejeitado com duas simples frases. Connosco vai ter de ser a reboque do que se fizer lá fora.
E daqui a uns anos? Não vê a Jus Animalium a tomar a iniciativa?
Não pomos isso de parte, mas não para já. Só o facto de se tentar é uma atitude provocadora.
Há quem defenda que os “não humanos” não podem ser “pessoas” porque não conseguiríamos exigir-lhes deveres.
O conceito clássico de pessoa está muito abalado. Temos de reformulá-lo porque, se formos por aí, qual é o estatuto dos menores ou dos incapazes? Estamos presos a anacronismos injustos e irrealistas. A ideia é conceder aos “não humanos” direitos de acordo com a sua condição, sendo representados por defensores de animais.
É importante debater a condição animal?
A condição humana só beneficia com isso. Mas claro que é tudo muito paulatino. Temos de afastar preconceitos e tudo o que é novo causa sensação.