A carrinha azul rasga as ruas do Chiado a alta velocidade, em direção à zona oriental de Lisboa. José Pedro, 44 anos, segue ao volante, atento a todos os movimentos. Sentado ao seu lado, António Mendes, da mesma idade, pressiona várias vezes o botão que faz disparar o som estridente de uma sirene. Quando os agentes chegam ao bairro da Zona J, em Chelas, já um magote de pessoas está aglomerado à entrada de um prédio. A dupla de polícias sobe ao 4.° andar e percorre um passadiço exterior com vista sobre o rio Tejo, até encontrar um colega que permanece de guarda à entrada de um apartamento – está visivelmente incomodado com o odor que impregna o ar. José e António sabem que se encontra um homem morto para lá da porta. E pouco mais. O interior da casa está degradado, remexido, com vários objetos espalhados pelo chão. Há sinais de arrombamento. José percorre, rapidamente, todas as divisões, vê um cadáver estendido no chão do quarto, ao lado da cama, e regressa ao exterior para respirar. Bastou um olhar para perceber que o corpo de um homem de meia idade já ali se encontra em estado de decomposição há dias. Os agentes regressam à carrinha para ir buscar o equipamento de proteção, um fato branco, descartável, uma máscara com filtro de ar e, pelo menos, três pares de luvas sobrepostas. É a partir deste momento, dizem, que acionam uma espécie de escudo mental que os torna imunes a tudo o que os rodeia.
‘Tiro-lhes o chapéu’
Em poucos minutos, José e António pegam, com cuidado, no cadáver, colocam-no dentro de um saco estanque e transportam-no em braços até ao elevador. Mantêm o corpo de pé, abraçam-no para que não caia e descem juntos até ao rés do chão, onde passam silenciosos junto dos populares que assistem a tudo. Não há familiares presentes. Ninguém faz perguntas. “É triste ver tantas pessoas a morrer sozinhas”, desabafa José, enquanto tira a máscara e deixa perceber o suor que lhe escorre pelo rosto. Naquela tarde, os polícias voltaram a percorrer as ruas da cidade, dessa vez numa marcha lenta, até ao Instituto de Medicina Legal. O odor do cadáver que transportavam tomou conta do habitáculo da viatura, durante todo o percurso.
Os 15 elementos que pertencem à Unidade de Saúde da PSP recolhem, em média, 900 corpos por ano, nos mais diversos cenários. A maior parte deles quase indescritíveis, tal é a brutalidade dos relatos. Desarmados, lidam diariamente com o lado mais negro da profissão. Homicídios, acidentes de viação, suicídios e mortes naturais. O médico anestesiologista António Melo, que dirige esta unidade, reconhece as capacidades especiais dos agentes. “Tiro o meu chapéu a estes homens”, faz questão de dizer. “Conseguem ser frios e, ao mesmo tempo, demonstrar um grande respeito pelo corpo humano.”
Nervos de aço
António Varelas, 51 anos, coordenador da divisão, garante que consegue dormir descansado, apesar do número elevado de situações “traumatizantes” que colecionou ao longo da carreira. Nunca esquecerá o dia em que transportou ao colo um bebé de quatro meses, que morrera asfixiado no berço. “Naquela altura, o meu filho tinha a mesma idade”, diz. “Foi um choque.”
Praticamente todos os agentes que integram este departamento, conhecido na instituição por “automaca”, trabalhavam, antes, no serviço de ambulâncias, até a PSP deixar de ter essa competência. “Nessa fase, lidávamos com a morte, mas também com a vida”, lembra Joaquim Amorim, 56 anos, um dos elementos mais experientes da unidade. “Era muito emocionante, porque existia a hipótese de salvar alguém.”
Reunidos num pequeno grupo, no pátio central do bonito, mas degradado, edifício do comando metropolitano de Lisboa, situado no Chiado, os polícias trocam relatos perturbadores – recordá-los é um ritual de libertação.
Todos os agentes têm as suas histórias-pesadelo, que começam invariavelmente pela expressão “um dia fui buscar…” Joaquim nunca esquecerá o momento em que encontrou um homem morto debaixo de uma cama, e soube que a mulher, com distúrbios mentais, vivera naquele cenário durante uma semana. “Continuou a pernoitar em casa até a vizinhança se aperceber do que se passava.” António Mendes, por seu lado, já perdeu conta ao número de cordas que teve de cortar para libertar pessoas que decidiram morrer enforcadas. “Ainda esta manhã transportámos um senhor que saltou de um apartamento de luxo, no Parque das Nações.”
A morte de crianças, os corpos mutilados por comboios ou carros e a decomposição de cadáveres – há cenários com centenas de larvas e insetos – são as situações mais complexas de gerir. António Mendes tem um truque. “Como é que lidamos com isto? É assim: já está”, diz, enquanto vira a página do relatório referente ao serviço em Chelas. Outros, como Joaquim Amorim, preferem recordar os tempos em que participaram no parto de crianças nascidas em plena ambulância, a caminho do hospital. Cada um destes agentes tem um método diferente para conviver com a morte. Nunca houve desistências.