Uane, tu, tri, fore/Cane ai eve a liter more/Faive, siquesse, naine, tene/Ai lauve iu… Em Cela, Paredes do Rio, Pitões das Júnias, Sirvozelo, Tourém e Vilar de Perdizes – as aldeias do concelho de Montalegre onde o anúncio Aldeia Global, da Optimus, foi filmado – ainda há quem guarde os papéis com a transcrição fonética da música All Together Now. As gravações duraram três dias, no final de junho, e continuam a dominar as conversas das gentes daquelas aldeias, ainda dentro do Parque Natural da Peneda Gerês.
Entre pipas de madeira e presuntos pendurados do teto, na sua adega, em Vilar de Perdizes, João Mayer, 56 anos, tira um papel escrito do bolso do colete. “Cane ai bringue mai frende tu ti”, mostra enquanto volta, animado, a cantar a sua parte do tema dos Beatles. “Sabe o que quer dizer?”, indagamos. “Eu sei lá!”, responde o lavrador, barbeiro aos sábados e domingos. A reação à tradução seria fácil de descrever se não ficasse mal citar palavrões: “p… da c…!”, entoa com desprezo.
Mas, afinal, ouvir João, de barba rija, que leva os forasteiros a provar o seu vinho (e fica ofendido se não aceitam), a falar de chá enquanto apara a barba a um freguês, é apenas um dos muitos contrastes do anúncio produzido pela Ministério dos Filmes. A campanha põe pessoas improváveis com um telemóvel de última geração nas mãos – a filmar, a aceder ao Facebook, a usar GPS ou a tirar fotografias para o Instagram; consegue que cantem, numa língua estranha, a música de uma banda que mal conhecem; promove uma marca de telemóveis nacional, numa área geográfica onde tantas vezes a rede é… espanhola. E mostra que o conceito de “aldeia global”, do filósofo MacLuhan, está ainda longe de ser realidade.
A ideia foi da agência criativa Euro RSCG. Pedro Graça, o diretor, diz que “cruzar duas coisas que não se cruzam, como os smartphones e uma aldeia perdida nos confins”, só mostra que a tecnologia é simples de usar e “até o tradicional é global, porque tem ferramentas para estar ligado ao mundo”.
O AGRICULTOR BARBEIRO
Para o êxito, além do humor refinado, terá contribuído o facto de os protagonistas serem atores improvisados a realizar tarefas, em quase todos os casos, rotineiras. “Prova que a publicidade não tem de ser toda igual e cheia de pessoas bonitas e sem mensagem”, diz, satisfeito, o realizador Marco Martins, que assina a campanha. Prefere ser conhecido pelo lado autoral, mas desde há mais de uma década que encontrou na publicidade “uma fuga à dificuldade de fazer cinema em Portugal”.
A conversa é pautada pela mesma boa disposição que parece ter reinado durante o mês de preparação das gravações: “O empenho das pessoas foi fantástico, nota-se um grande sentido comunitário.” Quando lhe entregaram o anúncio, quis, desde o início, que “houvesse uma parte muito documental”. Os “atores” não foram maquilhados, usaram as roupas com que apareceram para as filmagens, a decoração dos espaços foi praticamente a que já existia. E o plano, que em publicidade costuma ser seguido à risca, foi-se ajustando à realidade. Vacas e ovelhas nem sempre são atrizes obedientes e as pessoas inspiraram, naturalmente, cenas irresistíveis. “A ‘curta’ com o senhor do adufe surgiu porque ele não conseguia, de facto, acertar com o ritmo”, conta.
O mais moroso foi escolher os protagonistas (não houve castings, a equipa foi gravando testes com as pessoas que encontrou) e a aldeia certa para filmar. Depois de viajar pelas Beiras e pelo Minho, Marco Martins decidiu que seria no Barroso: “Havia sítios igualmente belos, mas ali o património humano é muito forte”, constata. Ainda hesitou entre aquelas aldeias e Rio de Onor, também em Trás-os-Montes. Seria João, o agricultor barbeiro, a fazê-lo tomar a decisão: “Fiquei apaixonado por ele”, confessa Marco, a rir. “É barbeiro, mas também tem bois, burros e faz vinho e presunto. Acabávamos sempre em casa dele a beber e a comer”, conta.
‘AI LOUVE IU’
A casa de João vê-se bem no anúncio. É lá, na cozinha (preta pelo fumo de curar as carnes), onde cabe a lareira, o fogão a lenha, mas também um lavatório com espelho e uma parede cheia de quadros (com pontos de cruz, fotos dos muitos familiares emigrados na Europa e na América, um calendário com gatos), que o maestro António Vitorino de Almeida grava a cena com as três mulheres sentadas. Ermelinda do Mestre, 67 anos, de lenço na cabeça, é uma delas. Foi gravar a Vilar, mas é de Paredes do Rio, uma aldeia bem preservada, com forno comunitário e moinhos de água ainda ativos. É ela quem tira a fotografia para o Instagram: “Nunca tinha tirado uma foto na vida”, confessa. O filho Nicolau, de 34 anos, é que nunca pensou ver a mãe de iphone na mão. É GNR em Lisboa e já pôs o anúncio no Facebook: “A minha terra é linda e a minha mãe também”, escreveu.
Os pais são um casal feliz, com terras, animais e uma casa construída com as poupanças de dez anos na Suíça. António, o pai, ainda se ri muito com a mulher por causa do filme. Quando viu a frase que lhe tinha calhado, disse-lhe: “Então tu e a Benta (que com ela contracena) ides dizer aos homens que os amais?!”. Ermelinda nem queria acreditar que era esse o significado do “Ai louve iu” que tinha escrito no papel. Mas acabou por ir na mesma: “Eu só achava que os que filmavam se fartavam de rir à nossa custa”, conta ela, divertida. Mas lá na aldeia também troçaram dos que vinham de fora. Nomeadamente de um certo membro da equipa que usava as calças tão justas que deixou toda a gente intrigada, a querer saber como lhe passariam nos pés…
REGAR O ‘CEBOLO’
Domingo, depois de almoço, em Paredes do Rio, não é preciso procurar para encontrar os “famosos” do anúncio, como já lhes chamam na aldeia. Benta da Rocha, 64 anos, está à soleira da porta, a descansar. Veio de apanhar feno. No anúncio, o maestro põe-lhe o braço por cima para a fotografia. “Fui arranjar outro marido velho”, brinca. “Velho por velho antes quero o meu.” O “dela” é António Caselas, que se junta à conversa: “Eu não quero o Torino cá, que o maestro dela sou eu”, diz, bem disposto.
Teresa Mourilha, 82 anos, senta-se com eles nas escadas de granito. Aparece no filme a tecer. “Dantes, era tudo a eito, havia para cima de cem teares”, recorda. Tecia-se burel, linho… “Era tudo feito em casa”, comentam as duas mulheres. Hoje, só resta um rebanho na aldeia de 70 habitantes. Há 40 anos, quando deviam ser perto de 150, todos tinham um. E crianças não eram só quatro, como hoje. Justificavam uma escola. Sérgio Pereira, 15 anos, o rapaz do acordeão, é um deles. E gosta do sítio onde mora: “É sossegado e tenho internet.”
Em Sirvozelo, ali ao lado, quatro é o número total de habitantes da terra, tão bela quanto escondida. Crianças não há, a pessoa mais nova é Fátima Príncipe, 63 anos, uma vida a cuidar dos animais e da horta. Foi lá que a produção a encontrou a apanhar as couves, como se vê no filme. Procura uma palavra para descrever o que sente e encontra: “Orgulho. Toda a gente gosta de ser vista, não é?!” Melhor só se lhe tivessem oferecido um smartphone como os do anúncio. “Gostava de experimentar, vi que não tinham teclas e que davam para filmar”, afirma.
Ao contrário de Fátima, a Fernando Moura, 39 anos, nunca ninguém o viu a regar “o cebolo”. Trabalha no lar, em Vilar de Perdizes, mas estava no café quando a equipa do anúncio o viu e o convidou para gravar aquela cena. Nem tempo teve para ensaiar. O estudo, até ao sexto ano (quando deixou a escola para ajudar os pais) não lhe permitiu aprender inglês. Disse o “five, six”, mas o “eight” já foi “oito” – assim mesmo, em português.
Marco Martins tinha razão em querer o lado documental: “A realidade é sempre muito rica. Melhor do que estar a criar é absorver o que existe.”