A estrada que nos leva de Chaves a Montalegre está pintada de breu. Os faróis vão iluminando o asfalto metro a metro. No céu, nem uma estrela. Laivos brancos difusos, iluminados pelo além, compõem um cenário fantasmagórico. Ouve-se o assobio do vento, erguem-se remoinhos de folhas secas no ar. O nevoeiro adensa-se à medida que entramos em terras de Barroso.
São quase oito da noite de Sexta-feira 13. A natureza convence-nos que as bruxas decidiram mesmo reunir-se por aqui. Ainda que sem lua no horizonte, a nossa imaginação consegue vê-las em voos fugidios, sentido ascendente. Cruzam-se nos céus sentadas em paus de madeira, vassouras de palha.
O cenário natural pode nem sempre ser tão perfeito (e desta vez, apesar da euforia inicial, a chuva há-de retirar algum encanto à festa), mas há uns cinco anos respira-se misticismo e bruxaria ao redor do Castelo de Montalegre sempre que a sexta-feira calha num dia 13. À custa de tantos dias de azar, a vila já ganhou até o epíteto de “Capital da Bruxaria” e… fortuna, muita fortuna. Montalegre enche-se de almas penadas, bruxas, dráculas, vampiros, feiticeiros, vindos de toda a parte do país e da Galiza vizinha.
Para conseguir lugar ao jantar num dos restaurantes, e cama onde pernoitar, é preciso reservar com meses de antecedência. Fernando Maia tratou de tudo para as amigas que trouxe com ele do Porto: “Lancei-lhes um bruxedo, disse-lhes ‘ou vêm ou têm sete anos de azar'”, conta. Elas foram e debaixo de uma capa negra (académica, mas virada do avesso ninguém nota…) elogiam a sopa de vermes, os munhenhos de bruxa e as asas de morcego salteadas com urtigas, tojo e embebidas em vinagreta que comeram ao jantar.
Nos restaurantes, até os produtos da terra, como a suculenta carne barrosã, se disfarçam com nomes do diabo. Tudo é feito para convocar superstições e enfeitiçar os visitantes: a entrada faz-se por baixo de escadas, os talheres cruzam-se em cima dos pratos, cada mesa se não tem treze lugares, tenta-se que perfaça um número terminado em três, há sal grosso ao pé dos pratos – “É o único que desfaz o fogo das bruxas”, explicam-nos. Em qualquer sítio onde se entre, há teias de aranha a forrar portas e paredes, guarda-chuvas abertos a pender do tecto. Alguns não descuram sequer a decoração exterior, com cabaças iluminadas, tochas, panos pretos a esvoaçar.
À porta da pensão Zé Maria, Luís Ferreira, um vampiro de dentes afiados e colar de caveiras, queixa-se da sorte: “As vítimas são poucas, estão a jantar, mas depois o sangue é mais docinho”. Desta vez, terá a tarefa simplificada, as vítimas não terão escapatória. A chuva obriga a que a encenação que costuma ter lugar em frente ao castelo medieval, ao ar livre, seja transferida para o pavilhão multiusos. Do lado direito do palco, está um enorme caldeirão onde já arde a queimada. Do esquerdo, um boneco gigante com a cara do Padre Fontes, o grande responsável por esta e outras festas barrosãs. Com uma capa de burel sobre os ombros, o homem de carne e osso, parece gostar da cópia: “Tem os beiços maiores”, compara, “mas eu quando era jovem também os tinha”. Enquanto lhe tiram fotografias, lá nos vai contando, sem perder o sentido de humor, como tudo começou. “Podia ser às terças-feiras, mas as sextas calha sempre no fim-de-semana e nós queremos apostar no turismo prolongado”, desmistifica. A Queimada, típica dos serões do Barroso, fê-la em público em 1986 no Congresso de Medicina Popular, a primeira vez: “O rito da queimada nasceu na minha infância, à lareira. Para curar gripes e constipações punha-se um caçoulo com aguardente a arder”. A ocasião servia para um teatro familiar, lembra: “Púnhamos o caçoulo em frente da cara e parecíamos bruxas, almas penadas”. Ele diz que apenas passou o que viveu em família, para outra mais alargada, “a família barrosã”. E a quem o critica por entrar em terrenos pagãos, responde dizendo: “Sinto-me a fazer a acção de promoção de uma cultura popular”. Para Padre Fontes, a religião também passa por aqui: “É a alegria, o convívio, o prazer de viver. Deus é festa, é alegria, é convivência”. E a conversa interrompe-se porque o espectáculo vai começar e o Padre tem de tomar o seu lugar em palco, junto à sua imagem em pasta de papel.
Perto das onze da noite, num pavilhão a rebentar pelas costuras, eis que surgem dragões a cuspir fogo, pássaros gigantescos, carroças voadoras. Duendes, bruxas, demónios, morcegos, seres estranhos, num total de mais de 250 participantes (do Centro de Criatividade de Póvoa de Lanhoso e do Centro de Estudos do Barroso) contam a história dos cómicos medievais que chegam a Montalegre, convencidos de que aí encontrarão o elixir da alegria. A aventura é muita até chegarem a um castelo (desta vez imaginário…) onde as feiticeiras guardam “um líquido poderoso que queima as goelas e produz delirantes efeitos do riso”. E é então que o Padre Fontes diz o “esconjuro” no meio do palco, afastando os tormentos, evocando o bem para que se mantenha. Quando termina, apelando às “forças do ar, terra, mar e lume” é hora de distribuir a queimada em copos de plástico por todos os presentes: 500 litros de aguardente, misturados com açúcar, maça e café e servidos quentes curam os males daqueles que a bebem. Mais de cinco mil, calcula o bruxo João Ribeiro, uma das dez pessoas que passou toda a sexta-feira a fazer a bebida e que, agora, escorre em suor enquanto mexe a queimada barrosã com uma enorme colher no caldeirão de cobre. Feitiços quebrados, a festa prossegue pelos bares e pela discoteca da vila.
Elas, as bruxas, existem, nem que seja por uma noite…