José Manuel Henriques é de Aveiro, tem 36 anos e gere uma empresa ligada ao desporto. Praticou atletismo e, depois de alguns anos parado, sentiu necessidade de voltar a sentir-se bem, em forma. Decidiu experimentar a bicicleta e apaixonou-se pela sensação de liberdade que lhe dá pedalar. Agora vai contar-nos e mostrar-nos todas as peripécias desta viagem ao longo de uma semana de percurso.
Leia as crónicas anteriores no final deste artigo
Dia 7 – Finalmente Casablanca
Quantos dias tem uma semana? Sete ou oito dias? A pergunta fervilhava na minha cabeça, enquanto pedalava com os primeiros raios da manhã. Morad e eu tomámos o pequeno almoço numa cafetaria e pouco depois ele foi trabalhar e eu fiz-me à estrada, em direcção a Rabat. Era tudo muito plano, ao contrário do que estava à espera e pensei para comigo que seria bem possível fazer os 200 quilómetros que me faltavam para completar a minha viagem e pedalei, pedalei, tentando, psicologicamente, combater as longas rectas que tinha pela frente. Chegava a ser agonizante, mas quando via uma recta de quilómetros de extensão olhava o chão e ficava entregue aos meus pensamentos. Há várias pequenas povoações junto à estrada nacional e sempre que precisava de abastecer de líquidos não me era difícil de o fazer. Havia imensas pequenas mercearias, onde se vendia o essencial. Parei numa delas e pedi uma garrafa de água fresca. Morad havia me ensinado que ao contrario do que poderia parecer, nem toda a água era mineral. Muita da água, mesmo engarrafada, era água que tinha sido tratada e a que tinha sido adicionados produtos mineralizantes. A melhor água era a Atlas, que como o próprio nome indica vinha da cordilheira do Atlas e essa sim, era natural. Pedi também uma Sprite e na lata do refrigerante estava impresso o preço de três dirhams. O rapaz estava a pedir cinco e eu perguntei porquê.
– C´esta ma comission – respondeu, ao que eu recusei. Sabia que não ía mudar o modo de pensar de alguns dos marroquinos, mas não pactuaria com injustiças e, apesar de sedento, andei mais meia dúzia de quilómetros onde encontrei outra mercearia e aí sim, o miúdo, que não deveria ter mais de 14 anos, foi honesto e eu, em consciência ofereci-lhe uma gorjeta de 3 dirahms.
Cheguei a Rabat fazendo para mim um jogo que me ajudava psicologicamente. Corria em sprints para quebrar a monotonia, atingindo, em recta, não raras vezes, os 35 quilómetros hora, o que com uma bicicleta de BTT, embora remodelada e o peso do alforge, era muito bom, tanto mais que sentia a minha condição física a melhorar de dia para dia, depois do inferno que tinha sido atravessar o sul de Espanha. Em Rabat fui saudado por inúmeros automobilistas que apitavam e faziam gestos com o polegar como que a dizer força e mal chaguei à cidade dirigi-me de imediato à mesquita, local obrigatório de Rabat. Estava de passagem é certo, mas tinha de o fazer. Não se pode entrar com a bicicleta nas praças das mesquitas e o guarda a cavalo fez questão de me lembrar esse facto. Mas ainda assim, uma turista belga, num inglês irrepreensível, fotógrafa de profissão, mostrou-se interessada no propósito da minha viagem e tirou-me várias fotos, a que se juntaram um casal de turistas espanhóis e os filhos que me felicitaram pelo meu feito que estava prestes a ser atingido. Faltavam apenas noventa quilómetros e as minhas pernas ganharam asas. Pedalei como nunca pedalei em toda a minha vida e sentir o tempo passar descontraidamente. Se não houvesse nenhum azar de maior chegaria ao final da tarde a Casablanca, mas tinha de me despachar, pelo que não perdi muito tempo em Rabat.
Pouco depois de se sair do centro de Rabat, e junto à estrada nacional, estava aquilo que rapidamente presumi fosse a residência do rei de Marrocos. Toda ela murada e com jardins resplandecentes, guardada por militares, dava de caras para a estrada movimentada, enquanto alguns trabalhadores, debaixo de um forte calor, colocavam sumptuosos candeeiros ao longo de toda a extensão de quilómetros de um muro de cor rosa, com jardins cuidados, não dando para ver o seu interior, mas imagina-se que fosse algo fora de extraordinário. Tanta opulência contrastava com a maioria das condições degradantes em que vivia grande parte do povo marroquino, mas não havia muito a fazer, a não ser ter esperança que tudo pudesse mudar para melhor e não seria eu a ingerir-me nos assuntos internos daquele país tão fustigado pelas sucessivas ocupações estrangeiras, portuguesas incluídas.
Já tinha de saído de Rabat há uma hora quando senti que precisava de comer alguma coisa. O contra-relógio que estava a fazer poderia ficar hipotecado se não me alimentasse convenientemente, pelo que parei no caminho para comprar um melão. Havia dezenas de locais onde o poderia fazer, ao longo da estrada, mas aleatoriamente parei junto a um homem que tinha oito melões para vender enquanto os outros tinham dezenas. Era uma forma de ajudar aquele pobre homem, pensei enquanto travava com o meu único travão, o da frente, depois de, em Sevilha, ter desmontado o travão de disco da roda traseira. E funcionava na perfeição, apesar da chiadeira que por vezes fazia. Parei mesmo a tempo de não esbarrar com os melões e pedi o mais pequeno que tivesse. Eram de cor amarelada e o homem, que não sabia falar francês, não parecia perceber que eu estava a perguntar quanto custava, porque apesar de lhe mostrar o dinheiro ele insistia em pôr o melão nas minhas mãos. Nisto chega um rapaz de moto e ajuda-me na tradução e é então que eu percebo toda a situação. Ó homem estava a oferecer-me o melão e não queria nada por ele. Pensei para comigo até que ponto pode chegar a generosidade humana para pessoas como aquele velho homem que me estava a dar um oitavo daquilo que tinha para vender naquela recta imensa. Agradeci, e senti-me na obrigação moral de descer da bicicleta e partilhar com aquela gente o melão que me haviam dado. E foi então que chegaram mais dois homens, vindos do nada e ali ficámos os quatro, eu a servir fatias de melão aquela gente e a banquetear-me também com aquela fruta deliciosa. Mas tinha de ir e despedi-me daquela gente cerrando o punho junto ao coração em sinal de agradecimento sincero.
– Bonne chance – gritou um deles enquanto voltava ao negro da estrada que cortava as culturas que ocupavam planícies imensas.
E de repente quase tudo a perder
Sabia que só algo muito grave me impediria de chegar a Casablanca naquele sábado, sete dias depois de ter saído de Lisboa e de várias vezes, ao longo da viagem, ter posto em causa toda aquela aventura. Tinha feito um sacrifício enorme, mas tinha sobretudo me fortalecido física e psicologicamente, quando as forças pareciam escassear e estava à beira de conseguir um objectivo difícil de alcançar, tenho de o reconhecer. Eram estes os pensamentos que ocupavam a minha cabeça, quando a pouco menos de trinta quilómetros de Casablanca, algo estava prestes a acontecer que poderia ter custado toda a viagem. Um miúdo que não deveria ter mais de dez anos de idade, passeava uma ovelhas e mal me viu, saiu a correr na minha direcção. Tentou agarrar o alforge e trazia consigo um pau que presumi quisesse colocar entre os raios da roda e travar assim o meu andamento. Mal me apercebi afastei-me, guinando para o meio da estrada evitando assim o contacto, mas por pouco que não era colhido por um carro que buzinou e o condutor não parava de gritar em árabe, enquanto que o pequeno pastor não desistia da perseguição. Senti por momentos que a viagem poderia acabar mal e segui tentando me manter calmo. Até Casablanca já não faltava muito e quando dou por mim estava no centro da cidade fundada pelos portugueses em 1515, há quase quinhentos anos. A velha medina lá estava, sinalizando o centro de toda a vida da cidade e parei para apreciar aquele momento.
Eram 18:45 horas e o GPS marcava um total de 1030 quilómetros. Estava feliz por ter conseguido atingir o meu objectivo e no meio da multidão que se afunilava para o interior da medina, tirei umas fotos para a posteridade e recordei os momentos que haveriam de me enriquecer como pessoa e que eram, esses sim, os objectivos desta viagem. As pernas estavam duras do esforço de 200 quilómetros de uma longa etapa e sinceramente não sabia como o tinha conseguido em sete dias ligar Lisboa a Casablanca. Parecia estar num mundo à parte, e saboreava, sentado na bicicleta, todo suado, dorido das costas, das palmas das mãos, pela pressão constante contra o guiador e com os músculos esfrangalhados um momento irrepetível.
Alberto, em Tânger, tinha me lido o pensamento e como ninguém percebeu o que eu sentia por dentro. Recordava então as palavras que o meu amigo me tinha confessado no bar do hotel Minzah:
– Esta é uma viagem para que o teu filho um dia se possa orgulhar de ti, José – e era verdade. Mas muito além do orgulho gostaria de lhe poder ensinar que para ser respeitado há que respeitar os outros, independentemente da sua raça ou credo, mostrar compaixão, ser justo e generoso. Ensinar-lhe que por detrás do esforço de uma subida, há sempre a recompensa do descanso de uma descida e não desistir à mínima dificuldade. Esta viagem tinha muito de isso.
Não o queria admitir mas psicologicamente sentia uma descarga emocional e pus a cabeça junto ao guiador, satisfeito pelo meu objectivo pessoal ter sido atingido, mas ao mesmo tempo revoltado por ter visto tanta miséria humana, num país com uma quantidade enorme de recursos naturais, como são os casos da terra e do mar, mas, na maioria das situações, sem o acesso básico às mais elementares condições como sejam a saúde, educação ou à habitação condigna. Por isso tinha esperança que dentro de vinte anos tudo estivesse melhor, para bem de um país que tanto o merece.
Recordava a generosidade de pessoas como Alberto, Nuno, o frade franciscano, Mustafá, Morad, o vendedor de melões ou dos dois “Juans” que me haviam ajudado em Sevilha. Para Portugal iam os meus pensamentos para todos os que haviam acreditado em mim, em particular ao Pedro Nunes, da Visão, aos meus amigos e à minha família, que sempre estiveram do meu lado. Comprei um cartão telefónico e de uma cabine pública liguei para cada um deles, depois de me ter instalado no hotel Excelsior e de ter tomado um banho retemperador. O meu irmão estava orgulhoso e tinha deixado aberta no móvel do hall de entrada de minha casa, a Revista Visão, na página em que haviam feito uma reportagem sobre mim, e que ainda não tinha tido oportunidade de ver, à espera do meu regresso a Portugal. Estava esgotado mas feliz e isso superava tudo o resto. Obrigado por estas férias inesquecíveis.
O importante não é a vida… é o que se faz da vida.
CRÓNICAS ANTERIORES:
Dia 6 – À descoberta de Marrocos
DIA 5 – Marrocos: Entre o deslumbramento e a desilusão (Parte II)
DIA 5 – Marrocos: Entre o deslumbramento e a desilusão (Parte I)
DIA 4 – Revisão da bicicleta e poucos quilómetros