Clamam alguns ter nascido em determinado sítio, e daí reivindicam incertos orgulhos e pergaminhos. No Porto, por exemplo. Ou em Uagadugu. Ou em Tegucigalpa. Eu não vejo por que alguém possa pretender aproveitar do simples facto de ter nascido, tanto mais tratando-se, o nascimento, de um acontecimento para o qual o nascido apenas terá concorrido com uns vagos movimentos peristálticos, visto que o trabalho duro foi todo presumivelmente da mãe… E tanto mais que, também presumivelmente, ninguém lhe terá perguntado antes de nascer acerca do lugar onde o sucesso haveria, segundo a sua vontade, de dar-se. Se foi algo que não desejou nem quis e para o qual nada fez, porque haverá alguém de reivindicar o que quer que seja por ter sido desembolsado num determinado lugar? Mais se justificará então que o faça quem, em vez de simplesmente nascer num lugar, nele se tenha a si mesmo nascido, por decisão da vontade ou por indecisão do coração.
É público e notório que nascer é uma ocorrência que acontece a muita gente e nas mais dispersas latitudes.Provavelmente até no Porto. A misteriosa circunstância de tal facto, na generalidade dos casos, ocorrer no tempo e no lugar, leva a que qualquer nascido, até o mais desprovido, tenha por atributos ao menos um certo sítio e uma certa data, justamente por isso ditos “de nascimento”. E se há quem possa reivindicar privilégios por ter nascido num determinado sítio (uma cidade, um país, um continente) também certamente haverá quem o possa fazer por, e a título de exemplo, ter nascido em 17 de Agosto de 1921 e mais nas particularidades horárias que tiverem sido as do caso.
Para que conste, este cronista não nasceu em sítio nenhum. Alguém, no caso a sua distante mãe, o nasceu onde ela calhou de estar, ou onde conseguiu chegar quando se lhe romperam vivamente as águas. Depois disso, ele próprio a si mesmo se foi nascendo em diversos sítios, uns exteriores outros interiores. Um deles, simultaneamente exterior e interior, foi o Porto. Aqui se nasceu ele, adolescente primeiro, adulto depois, ao longo de muitos e desencontrados anos, felizes uns, impenitentes outros, entre memórias, medos, exaltações, rostos, desejos, e tudo aquilo de que é cegamente feita e desfeita essa respirada coisa que é a vida. Tudo o que de si sabe, e também algumas coisas que não sabe, está preso a estas pedras, a estas ruas, a estas fachadas. E um dia, depois de morto, ele próprio há-de ser pedra, volúvel pedra, desta pedra, e há-de continuar a andar por aí nascendo-se – oxigénio, hidrogénio, carbono, azoto – por esta gente, por estes rumores de folhas, por estes frutos. Então será, não do Porto, mas o próprio Porto, ou ao menos uma parte, material e extrema, dele; ou uma cidade como esta.
Outros escreverão cânticos de amor, outros louvações ou imprecações. Aele basta-lhe escrever-se a si mesmo, inscrever-se. Basta-lhe lembrar. Basta-lhe acordar cada manhã sabendo que está em casa, conhecendo as paredes, os móveis, os livros. Ouvir os seus mortos, tocar os seus vivos.Quem o culpará, pois, se ficar em casa ou se, tendo partido, quiser regressar? E quem estranhará se, chamando-o pelo seu nome, ele se voltar e o seu rosto for como um rio passando?