No ciclo de conversas online promovido pela campanha eleitoral de Ana Gomes, coube à candidata abrir a conversa que tinha um tema que lhe encaixava que nem uma luva: a Justiça, a corrupção e a transparência. O assunto, disse, “era de extrema importância para o Portugal do século XXI”; era preciso “uma campanha presidencial mais eficaz na garantia de que as instituições democráticas da Justiça funcionam”; e é preciso porque “precisamos de um país a funcionar, que combata a corrupção”, e “não podemos continuar a achar que a Justiça tem todos os meios para investigar esta criminalidade.”
A economista Susana Peralta foi a primeira chamada a discutir o que tem falhado em Portugal no combate à falta de transparência e à corrupção. A professora universitária abriu com gráficos de um relatório que mostravam como a corrupção aparecia no 9º lugar dos principais custos de contexto ou como “o sistema judicial” era visto como o maior obstáculo à atividade das empresas portuguesas. “As empresas exportadoras são as que mais se queixam do sistema judicial como obstáculo. É preciso fazer alguma coisa”, avisou a docente da Nova SBE.
Manuel Magalhães e Silva aproveitou a deixa para apresentar outro dado – “Uma optimização do funcionamento da Justiça pode representar o acréscimo de 10% do PIB” -; para lembrar que o conceito de sistema judicial como o pior dos contextos só apareceu no léxico português depois de um discurso de Jorge Sampaio, em 1997, na abertura do ano judicial; e para recordar histórias como a de um juiz que um dia, no átrio do Palácio de Justiça, lhe lançou uma pergunta retórica: “O país funciona todo mal e depois queriam que houvesse uma coisa que funcionasse bem, que era a Justiça?” “O sistema judicial funciona mal porque nós todos funcionamos mal”, rematou. “Também no domínio da produtividade o que acontece é uma cópia perfeita de como funciona o país. Espanha tem metade dos juízes e procuradores de Portugal; França tem um quarto.”, insistiu.
E porquê? Para o advogado o grande problema está na classe profissional que foi sendo chamada consecutivamente para reformar a Justiça: os juristas. “Nós, juristas, já mostrámos que somos uma classe incapaz de renovar e reforçar o sistema judiciário. Porque olhamos sempre numa perspectiva corporativa. Era preciso haver um Governo que percebesse isso. Há profissionais de gestão de sistemas complexos que deviam ser chamados para isto.”
E se há área em que essa ineficiência “é especialmente significativa”, diz o advogado, é na corrupção. Por um lado, porque “os governos investem em poucos meios técnicos na investigação criminal”; por outro, porque apenas temos uma ideia vaga sobre a incidência do crime, defende Magalhães e Silva. “Não temos a menor ideia do nível de corrupção em Portugal. Só temos um palpite. O que é gravíssimo para a qualidade e prestígio das instituições.” Eis o exemplo: “Se tivermos uma classe dirigente de 20 mil pessoas, se 6 mil são corruptas, estamos a falar de 30%, o que não é a maioria da classe dirigente. Apesar de haver a ideia na sociedade portuguesa de que isto de cima a baixo é uma malandragem, anda tudo a roubar.” É mesmo assim? “Na verdade, não sabemos se temos ou não um problema grave de corrupção.” Mas sabemos onde temos problemas, segundo Magalhães e Silva: “Por via das pressões corporativas, os nossos tribunais superiores estão atolados de magistrados judiciais e lá é possível ter um processo resolvido em três ou quatro meses. No litoral, os tribunais de 1ª instância funcionam mal mas, depois, o grande cancro está nos tribunais administrativos e fiscais. Se lá formos parar iremos sofrer as passas do Algarve e do Alentejo. É isso que justifica que as empresas se queixem muito, porque é aí que são debatidas as dívidas e as execuções.”
Os cidadãos acima do Estado
José Vera Jardim, advogado, ex-deputado e ex-ministro da Justiça, e terceiro orador do painel, concordou: “Temos hoje um problema gravíssimo na Justiça administrativa e fiscal. E não podemos esquecer que eles são o sítio onde os cidadãos se defendem do Estado. E os direitos dos cidadãos estão acima do Estado. É isso que é um Estado de Direito. É um problema terrível porque deixa as pessoas desprevenidas frente ao Estado e às vezes o Estado abusa.”
Para o ex-ministro da Justiça de António Guterres, na batalha contra a corrupção os políticos e a justiça estarão sempre um passo atrás: “Os corruptos estarão sempre um passo à frente.” E frisou que um país sozinho nunca conseguirá combater a chamada corrupção negra. “A corrupção branca acho que já não existe muito. Era habitual há 30 anos em Portugal. Aí não se fazia nada sem dar uma gorjeta. Mas o que nos deve preocupar hoje é a grande corrupção, a corrupção do Estado. É curioso porque os portugueses têm uma perceção alta da corrupção, mas questionados sobre se alguma vez assistiram a um caso dizem que não.”
Depois, aproveitou para falar das suas experiências, de como as offshores “não estão só nas Bahamas” mas “no centro da Europa”, e quando queria debater o tema com outros ministros europeus “os outros fingiam que estavam a escrever no papel, mas não queriam tocar nisso.” Lembrou como durante o tempo em que foi ministro criou o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) – porque achou “que fazia falta uma estrutura de perseguição e combate à grande criminalidade” – mas também um outro núcleo “do qual entretanto” nunca mais ouviu falar: “Nem sei se ainda existe.” Referia-se ao Núcleo de Apoio Técnico. “Na minha cabeça aquilo ia ser tão potente e importante como o DCIAP. A ideia era ser um núcleo que com um simples despacho tinha o poder de ir requisitar funcionários a outras áreas, como a banca, os seguros, a bolsa, a inspeção-geral de Finanças, para as investigações mais complexas. Não sei o que se passa com isto, mas nunca mais ouvi falar.” Magalhães e Silva confirmou como o objetivo do colega parece ter fracassado: “Existe, quanto ao funcionamento, bom, iremos ver.”
Vera Jardim não terminou sem deixar um alerta: “Temos de estar muito atentos a este fenómeno. Os grandes litígios comerciais e civis estão a ser julgados não pelos tribunais mas pelos tribunais arbitrais.”
Numa conversa que teve poucos momentos fora da caixa, tirando um em que Vera Jardim comentou que enquanto ouvia os outros mantinha o ar apático “ideal para discutir com André Ventura”, foi Ana Gomes quem encerrou a conversa sobre “Portugal, Estado de Direito, País Transparente e Justo.” Nada que tenha fugido aos temas-chave da sua campanha eleitoral – e que já a acompanham há anos, do trabalho no Parlamento Europeu ao de comentadora. Criticou os RERT, os sistemas de regularização tributária que permitiram “perdoar os que tinham levado para offshores os recursos que deveriam ter sido taxados pelo Estado e que escaparam a qualquer controlo fiscal”; criticou os megaprocessos dizendo que fazem parte “de uma estratégia para trabalhar para a prescrição”; criticou o rumo de investigações como a dos submarinos, caso “em que na Alemanha se identificou quem eram os corruptores mas até hoje em Portugal não se sabe quem foram os corrompidos” apesar de as gravações da família Espírito Santo “mostrarem que era um caso de corrupção BES”; criticou a inércia na investigação ao caso BES Angola, e concluiu: “Não temos a noção da importância da corrupção no nosso país. Não sei se a grande corrupção no Estado aumentou ou diminuiu, sabemos é que é um dos fatores de descrença nas instituições.”
Enquanto se falava de tudo isto, poucas dezenas de pessoas que seguiam a conversa se deixavam fidelizar. Com o debate a começar em cima do anúncio das novas medidas de emergência por António Costa, nunca foram mais do que umas parcas dezenas online em simultâneo. Ao lado, no painel de comentários, muitos seguidores estavam mais concentrados na campanha da véspera do que na conversa que estava ali a acontecer: “Os ciganos de Portugal estão com você”, dizia um; “estou a incentivar os ciganos a votar para Ana Gomes” [sic], dizia outro.