“Que vergonha, esta Câmara [do Seixal]”, lamentou a deputada bloquista Joana Mortágua, à entrada do Bairro da Jamaica, pouco antes da chegada da caravana do BE àquela área da freguesia da Amora, quando tentava não se atolar na lama que transforma numa espécie de campo minado aquilo que deveria ser uma estrada de acesso pavimentada.
São quase 14 horas e o bairro, habitado por cidadãos de origem africana, divide-se entre uma certa morna, dos que viram desaparecer à força da polícia os cafés onde outrora passavam o tempo, e uma pequena correria de quem vai pegar ao serviço. Só Fernando Coxi, a nora Vanusa e Adelaide Costa sabem que a coordenadora do BE elegeu aquela área degrada para uma incursão nesta terça-feira, terceiro dia de campanha eleitoral.
Mas rapidamente outros elementos da associação de moradores se juntam, e, num rápido passa a palavra, vários outros residentes também aparecem, com o intuito de contar a Catarina Martins a toada comum a todos: estão ali há anos, à espera de um realojamento, entretanto prometido, perdido em burocracia, emperrado em falta de financiamento, um prazo de saída dali que foi esticado, com mais gente nova a chegar a conta-gotas, principalmente de São Tomé e Príncipe, à margem de inúmeros recenseamentos, num bairro que não o é, com cortinas coloridas e esvoaçantes a fazerem vezes de portas. E uma menina, que espreita por uma porta de madeira por pintar, o aparato que poderia quebrar a falta dos gritos de outros meninos, num hipotético parque infantil, que não existe, num pântano de pedras, de ervas daninhas e de poças de lama – mesmo sem ter chovido por ali.
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Quando a líder do BE entrou no bairro, cujos prédios inacabados começaram a ser ocupados por quem vinha dos PALOP na década de 1990, Djalma Mané, que se preparava para ir trabalhar, ainda voltou a entrar na cave minúscula sem janelas, com uma cortina rosa fucsia à porta, e que tem colada uma outra habitação, de cimento meio caiado, de uma das residentes mais antigas, a dona Bernarda – ali desde 1995. “É gente da câmara?”, perguntou, à VISÃO, Djalma, que chegou àquele terreno, cujo nome oficial é Vale de Chícharos, há cerca de um ano, por não ter salário para pagar um outro qualquer espaço para si e para as suas duas filhas. Djama foi à sua vida, e a dona Bernarda e Feliciano, de 42 anos, ficaram na soleira da porta a olhar de soslaio Catarina Martins.
“Força do BE será a derrota do racismo de André Ventura”
A coordenadora do BE tentou perceber como está o plano de realojamento, iniciado há quase cinco anos, numa parceria entre a Câmara do Seixal – liderada pelo PCP, e o IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, e que já resultou na saída do bairro de 67 pessoas, que viviam num prédio entretanto demolido, ficando outras 187 para trás – mas não convém insistir com os habitantes quanto ao número de pessoas, porque estão sempre a chegar novos habitantes ao bairro, fazendo mudar as contas de um realojamento que só poderá estar finalizado em 2026. Segundo Vanusa Coxi, houve “um acordo assinado entre várias entidades, que tinha uma duração de cinco anos, era suposto ter o seu terminus este ano”, mas pouco se avançou.
“A razão porque estou cá hoje é porque não podem continuar as famílias do Bairro da Jamaica à espera do realojamento prometido. Vi as condições em que vivem estas pessoas, de famílias trabalhadoras, remetidas para esta situação há muitos anos”, disse Catarina Martins, acompanhada pela família Coxi, a mesma que foi visada por André Ventura, com declarações consideradas racistas pelo Supremo Tribunal de Justiça, após os desacatos no bairro a 20 de janeiro de 2019.
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“O IHRU e Câmara do Seixal passam culpas e não têm resolvido o problema. O PS esquece o seu compromisso para com a habitação, para com o Primeiro Direito [Programa de Apoio ao Acesso à Habitação] e adia soluções de realojamento que já deveriam ter avançado”, criticou en passant a bloquista, que tinha na mira antes Ventura, condenado por tais declarações racistas mas de quem os Coxi ainda não obtiveram o devido pedido de desculpas, como a Justiça ordenou.
Segundo Catarina Martins, esta “é a primeira campanha em que temos um líder de um partido representado na Assembleia da República que é condenado com uma sentença transitada em julgado, por insulto e por um insulto com motivação racista. Isto é grave. E a melhor lição que lhe podemos dar, no dia 30, é a sua derrota; e o Bloco de Esquerda reforçado como terceira força política é a derrota de André Ventura”, atacou
“O Bloco de Esquerda acredita num país em que todos nos respeitamos: olhos nos olhos, de igual para igual. Esse é o país da decência. E aqui estamos para dizer que a força do Bloco de Esquerda será a derrota do racismo de André Ventura”, apontou, antes de ser deslocar de novo à habitação de Bernardo Neto, considerado o primeiro residente do bairro, onde estivera logo no início da visita mas onde não estava ninguém.
Os Coxi já não acreditam num pedido de desculpas de Ventura
Bernardo Neto, de acordo com Alda, a mulher, – que mostrou o escombro do espaço onde sobrevive -, chegou ali vindo de São Tomé e Príncipe, tendo sido um dos primeiros a ocupar o rés do chão de um dos prédios ainda por acabar na então Quinta de Vale de Chícharos. Faleceu em outubro de 2021, à espera de ser realojado. “Outros entraram e saíram para casas novas, e ele nada”, disse Alda, que, apesar do aparato mediático que lhe entrou casa dentro, não quis ser fotografada – “se me veem em São Tome assim e depois dizem ‘ah mas ela vive assim?'”.
Há semanas caiu-lhe uma grande quantidade de água em casa, de um cano montado em cima do joelho, que lhe destruiu uma enorme televisão plasma comprada pelo marido antes de morrer e que agora perde a cor na rua, parecendo um tampo de uma velha mesa.
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Apesar desta pobreza, há quem olhe para estas pessoas como “uns privilegiados”. Tratam-se dos habitantes de um pequeno núcleo mais antigo de Vale dos Chícharos que, assistiram à edificação das primeiras paredes dos prédios, à sua ocupação e ao desmazelo das autoridades desde então. A falta de alcatroamento da estrada para uns é a mesma que para aqueles residentes de uma espécie de pequena vila operária, a limpeza inexistente é comum a ambos os lados e o fechar de olhos da Segurança Social, perante os mais antigos e a quem chegou nos anos de 1990, não é diferente.
Ainda assim, em casa que não há pão: “Vocês só se preocupam com eles [dos prédios]. Eu perdi o meu marido, a minha filha de 36 anos, fiquei com 180 euros para viver. Alguém me ajudou? Não. E logo a seguir rebentou um cano de ligação aqui às casas. Vocês pensam que veio cá a Câmara? Tive eu de pagar 50 euros para ter água, e mesmo assim estive três semanas sem ela”, explicou, revoltada, Graciosa Canha, moradora ali há 50 anos, ao deputado do BE, Jorge Costa, que se afastou da comitiva de Catarina Martins para perceber que aglomerado habitacional é aquele, paredes meias com os esqueletos de prédios.
Finda a visita, o guia de Catarina Martins, Fernando Coxi não deixou de lamentar o anátema que André Ventura lançou sobre o bairro e a sua família, após os incidentes de janeiro de 2019, entre residentes e polícia, que desencadearam depois várias revoltas em bairros sociais e carenciados de Setúbal e Loures.
Dias depois daquele caso, um gesto de tentativa de apaziguamento, levado a cabo por Marcelo Rebelo de Sousa, ao ir ao bairro e falado com os residentes, foi criticado por André Ventura, que chamou de “bandidagem” a quem se tinha fotografado ao lado Chefe de Estado. Eram elementos da família Coxi, que recorreram às barras dos tribunais para limpar o nome.
“Discriminou a minha família. Até as minhas netas na escola já estavam a ser chamadas de nomes – foi por isso que eu meti esse problema no tribunal: para defender o futuro dos meus netos”, admitiu Fernando, o veterano Coxi, que já não espera que a Justiça faça o presidente do Chega cumprir aquilo a que foi condenado – um pedido público de desculpas à sua família.