O caso está a gerar reações de indignação. O ex-deputado do PCP, Miguel Tiago, negou a existência do Holodomor, o episódio conhecido pela “Grande Fome” ucraniana, ocorrida entre 1932 e 1933, quanto ao qual a Justiça de Kiev estimou, há 10 anos, que possa ter levado ao desaparecimento de 10 milhões de pessoas.
No Twitter, o comentador da RTP3 e consultor da Câmara de Sesimbra disse que o “holodomor só existe na cabeça” dos ucranianos. Além de não fazer questão em perder tempo a contestar a tese de quem se bate pelo reconhecimento histórico da tragédia – que teve um voto de reconhecimento aprovado há cinco anos pelo Parlamento português, pela mão da direita e abstenção do PS –, chama de “nazis ucranianos” aos seus defensores.
Mais tarde, o antigo deputado, que se destacou na Comissão de Inquérito à queda do BES, fez um outro tweet em que remeteu para um texto seu sobre o assunto, já de 2014, no blogue Manifesto 74.
Além de vários comentários indignados que o dirigente do PCP espoletou no seu Twitter, a publicação levou a historiadora Aline Gallasch-Hall de Beuvink, docente da Universidade Autónoma de Lisboa, a acusar Miguel Tiago de “imbecilidade” e, por ser uma descendente de famílias ucranianas, diz-se “ofendida” com tais declarações, admitindo processar o comunista.
“Estou em estado de choque com o nível de ignorância demonstrado. Se há quem negue o Holocausto, quando os campos de concentração, e todo o horror que ali se passou, é do conhecimento geral, não é de surpreender quem se meta a falar do que desconhece sobre o que se passou numa Ucrânia, sob o jugo comunista da então União Soviética, onde a informação foi completamente abafada. Ainda hoje é alvo de pressões políticas internacionais por parte da Rússia para que não seja reconhecida essa tragédia”, disse, à VISÃO, Aline de Beuvink, que também é líder da bancada do PPM na Assembleia Municipal de Lisboa e que já há alguns meses tinha sido alvo de críticas do bloquista Francisco Louça, por ter levado o assunto ao parlamento da capital.
Para a historiadora, cuja a avó de 97 anos vivenciou o Holodomor, “este imbecil do Miguel Tiago não tem a noção da ofensa que está a fazer aos descendentes das famílias que sofreram com o Holodomor e com a sua influência ao longo das décadas seguintes”. “O Holodomor esteve apagado da história durante muito tempo, porque, ao contrário do Holocausto, em que a exposição permitiu conhecer o horror do que aconteceu, a Rússia levou décadas a tentar limitar o conhecimento daquele período. Ainda hoje, Moscovo bate-se contra a possibilidade dessa catástrofe humanitária ser reconhecida internacionalmente – como já o foi por alguns países”, disse, afirmando-se “atingida pelas declarações de Miguel Tiago”.
“Estas declarações desse dirigente devem ser alvo de um processo judicial, porque chamar nazi a vítimas de sistemas políticos como foi o caso do nazismo e do comunismo é de um nível de ofensa e difamação não aceitável. Mas não me admira: o Miguel Tiago é fruto do que de pior a escola soviética teve e continua a ter junto de partidos como o PCP”, concluiu.
Holodomor, uma história envolta em polémica
A discussão sobre o Holodomor não é pacífica, tanto mais que, até hoje, nas Nações Unidas só um pequeno grupo de países reconhece formalmente aquela catástrofe levada a cabo pela desaparecida União das Repúblicas Soviéticas Socialistas – URSS.
O Holodomor poderá ter causado cerca de 10 milhões mortes, de acordo com os dados estimados pelo Supremo Tribunal ucraniano, em 2010. Refira-se, também, que a Grande Fome se sentiu no resto da URSS, tendo em conta que consistiu numa grave crise de abastecimento alimentar e em problemas na produção cerealífera.
Sendo que a primeira vez que se falou no Holodomor foi há mais de três décadas, nos Estados Unidos, onde a comunidade ucraniana ganhou peso e conseguiu junto do poder político americano não só avançar com estudos sobre o que acontecera, como pressionar as Nações Unidas para uma declaração que reconhecesse o episódio como genocídio. Desde então, aquela catástrofe tem vindo a ser comumente aceite, graças ao esforço da diáspora ucraniana, mas não de forma isolada; antes inserida pelos historiadores no contexto dos vários crimes cometidos pelo regime estalinista – onde se contam as deportações e campos de concentração para opositores.
No caso da Ucrânia, o Holodomor terá tido origem na recusa da população rural em aceitar a então coletivização das suas propriedades agrícolas, decidida por Moscovo.
Em 2017, o Parlamento português aprovou um voto de condenação, apresentado pelo PSD, onde se reconheceu tal ato de agressão por parte da URSS. O PS absteve-se e a esquerda votou contra.
O caso ucraniano integra a galeria de tragédias humanas no século XX, onde constam episódios como o genocídio arménio, levado a cabo pela Turquia, na Primeira Guerra, que também só ganhou destaque internacional nas últimas décadas graças à diáspora arménia.