Figura proeminente do Movimento dos Capitães, cérebro do plano operacional do 25 de Abril, importante chefe militar no período do PREC, todo poderoso comandante do Comando Operacional do Continente (COPCON) nesse período, duas vezes candidato à Presidência da República, duas vezes preso, uma das quais por envolvimento na rede terrorista Forças Populares 25 de Abril (FP-25), idolatrado por uns, odiado por outros, Otelo Saraiva de Carvalho, 75 anos, é o grande ícone vivo da revolução portuguesa.
Para figurar nas t-shirts das gerações do pós-revolução, falta-lhe, talvez, apenas, uma foto tão feliz como a que Alberto Korda captou de Che Guevara. E, depois, algum espírito empreendedor de uma qualquer marca comercial de vestuário… Mas a maior surpresa da sua biografia, agora dada à estampa, em livro, pela pena do jornalista Paulo Moura (Otelo, o Revolucionário, da D. Quixote) é, afinal, uma história de amor.
Excessivo, inconvencional, indisciplinado, romântico, Otelo levou para a vida pessoal a transgressão que, nos anos da Revolução, o tornaram célebre. Na página 13 do livro de Paulo Moura, logo a abrir, o autor revela-nos a outra faceta do revolucionário: «Sente-se bem em família. Tanto, que tem duas. Casou cedo, com uma colega de liceu. Mais tarde, na prisão, teve outro amor. Não foi capaz de abandonar a primeira mulher, nem a segunda. (…) Otelo assume as suas duas mulheres. Aparece em público com elas, não mente a nenhuma, trata-as por igual. Também nisso é organizado. De segunda a quinta vive numa casa; sexta, sábado e domingo passa-os na outra.»
A RAPAZIADA DO COPCON
Neste ponto, temos de respirar. E conhecer melhor a personagem e o seu estilo. Este está exemplarmente retratado no capítulo Novembro, ainda na introdução. Substituído, por Vasco Lourenço, na chefia da Região Militar de Lisboa, antes do 25 de Novembro data que marca o fim do processo revolucionário e a estabilização da democracia pluralista Otelo atira-se para um sofá, nas instalações do COPCON, que comanda.
Os seus homens estão em pé de guerra.
E os diálogos são agora reconstituídos de forma impressiva. Costa Martins, um oficial conotado com o PCP, afirma que os paraquedistas vão ocupar as bases aéreas.
Otelo alarma-se. E pergunta a dois dos seus colaboradores, oficiais do ramo da Força Aérea: «Que boca é esta do Costa Martins? Se isso acontecesse, não poderia servir de pretexto para os Nove [ala moderada do Movimento das Forças Armadas, MFA] que já encomendaram um plano de operações ao [então tenente-coronel Ramalho] Eanes, lançarem uma operação contra nós, e liquidarem a esquerda?» Os oficiais tranquilizam-no: «Não, está descansado, não é nada disso. Nós vamos tomar providências.» E Otelo: «Então tomem as providências todas, senão há bronca. Estou estafadíssimo, não estou para aturar esta pessegada, vou para casa descansar. Vocês travem-me essa porcaria, se houver alguma coisa. Boa noite, rapaziada!»
Ninguém travou nada. Os «paras» saíram mesmo e as forças moderadas, afetas aos Nove, puseram em prática o plano de operações de Eanes. A esquerda radical perdeu. Otelo, sempre imprevisível, mantém-se em casa, incomunicável, até ao meio-dia. Dali, desloca-se, finalmente, para Belém, convocado pelo Presidente Costa Gomes. Até sempre, rapaziada.
LÁGRIMAS EM VEZ DE TIROS
A 26 de abril de 1974, Otelo vai com a mulher, Dina, no seu Morris branco, até ao forte de Caxias. Vai à paisana. Um Fiat 124 tenta sair do local a toda a velocidade e a multidão, que aguarda a libertação dos presos políticos, interpõe-se: «É um pide! É um pide!». Os «pides» são os elementos da polícia política da ditadura e a caça ao «pide» está aberta. Mas, na verdade, quem ali vai é um jovem militar, de nome Francisco, e a sua mulher, Filomena, filha de um guarda prisional, que foi mãe há uma semana e se dirige ao hospital, para retirar os pontos da cesariana.
Otelo tenta acalmar os mais exaltados e um grupo de fuzileiros dispara tiros para o ar. O Fiat prossegue o seu caminho. Foi a primeira vez que o capitão de abril se cruzou com aquela que viria a ser um dos dois amores da sua vida. Filomena, já divorciada, será funcionária administrativa da prisão de Caxias, quando Otelo é preso e enquanto decorre o julgamento em Monsanto.
Mas terão de esperar mais de dez anos. Agora, em 26 de abril de 1974, ainda há uma revolução para fazer. A amizade que, lentamente, se transforma em rivalidade com o moderado Vasco Lourenço, perpassa o período revolucionário. E o protagonismo do amigo, teimoso, lúcido, corajoso, segue numa linha paralela à de Otelo. É Vasco Lourenço quem, contra a opinião de todos os outros, recusa a retirada das forças moderadas para o Norte do País, deixando entregue à sua sorte a comuna de Lisboa: «Seria a guerra civil!» E é ele quem, depois do sequestro do Governo de Pinheiro de Azevedo por operários, acolhe uma sugestão de Gomes Mota, para que o Executivo suspenda funções: «Compro a ideia! O Governo vai entrar em greve!» É também Vasco Lourenço que se separa de Otelo, acabando por substitui-lo à frente da Região Militar de Lisboa, antes do 25 de Novembro.
Os dois homens têm uma discussão de várias horas, muitos gritos e murros na mesa. Do lado de fora do gabinete onde decorre o drama, os camaradas temem que um deles puxe da pistola. Em vez disso, exaustos, como dois pugilistas sem forças, acabam ambos em pranto silencioso. (Otelo gaba-se de ter feito a guerra colonial com o carregador de munições… descarregado.)
OTELO, O ATOR
Episódios como este, de uma guerra sem tiros, atravessam o relato da biografia, da infância ao mato de Angola, como se fossem «histórias de pescador». Há que dar o desconto a boa parte das versões de Otelo. Mas a ideia faz sentido: num colóquio sobre o 25 de Novembro, muito depois dos acontecimentos, Otelo elogia o plano de Eanes: «Dava para atacar o Iraque! Mas quem era o inimigo?» Otelo nunca percebeu, segundo o seu biógrafo, que o inimigo era ele próprio. Um inimigo em casa, incomunicável, até ao meio-dia, quando tudo já está perdido. Um inimigo contrariado, contrafeito, pacifista. De carregador vazio.
A mesma personagem contraditória que é condenada por terrorismo e participação no planeamento de ataques bombistas. A mesma personalidade dúplice que assina, durante o PREC, mandados de captura em branco. O mesmo indivíduo desconcertante que ameaça fuzilar toda a reação, na praça de touros de Campo Pequeno.
O paradoxo de Otelo vem-lhe, segundo os testemunhos de quem o conhece e fala no livro, da sua faceta de ator. Um comportamento em privado e outro quando sobe ao palco. Está-lhe no sangue: ganhou concursos de canções e encenou peças de teatro nas quais foi sempre personagem principal. Talvez essa superficialidade, ou melhor, o seu carisma escorregadio, o tivesse ajudado, na esfera privada, a ter uma vida dupla. Essa duplicidade começa quando o casamento arrefece, desgastado por tantas conspirações e problemas que o vão afastando de Dina, o seu primeiro amor. Os filhos, Sérgio e Paula, crescem vendo o pai mais nos jornais do que em casa e, depois, na prisão. É então que Filomena aparece.
O IDÍLIO DE CAXIAS
Filomena é 18 anos mais nova do que Otelo. Quando o conheceu, tinha uma filha, do primeiro casamento, Ana Margarida. Otelo viria a considerá-la sua filha adotiva e ela, já mãe de dois filhos, trata-o por pai.
Os «netos» chamam-lhe «avô». A situação foi sempre muito clara. Quando soube de Filomena, Dina estava pronta para o divórcio. Os filhos fizeram-na pensar duas vezes. E Otelo foi ficando.
O Projeto Global tinha sido uma aventura que acabara mal. Como quase todas as aventuras políticas de Otelo: OUT, GDUP, FUP, PRP-BR e, finalmente, FP-25 são siglas que os portugueses com mais de 40 anos conhecem bem, da ressaca da revolução. Otelo tinha de dar uso aos 800 mil votos (16,46%) conquistados nas presidenciais de 1976, quando ficou em segundo lugar, atrás de Ramalho Eanes mas à frente de Pinheiro de Azevedo e do candidato do PCP, Octávio Pato. Os menos de 2% alcançados cinco anos depois deviam ter sido um indicador de que os tempos haviam mudado. Os ataques, assaltos e atentados reivindicados pelas FP-25 acabaram com a carreira política do ícone.
Em junho de 1984, o juiz de instrução do processo das FP-25, Martinho de Almeida Cruz, comunica, na sede da PJ, em Lisboa, a Otelo, que convocara para depor: «Senhor tenente-coronel, lamento muito, pode crer que lamento muito, mas vou mandá-lo, sob prisão preventiva, para o forte de Caxias.» Com total liberdade de movimentos em Caxias Otelo não era um preso como os outros, mas uma espécie de pop star… não tardou que começasse a conversar com Filomena, que lhe fazia os telefonemas para o exterior. Ele tinha 48 anos, ela 30. O relato é eloquente: «À hora de almoço, Otelo costumava esperar por Filomena ao fundo das escadas que levavam à messe, para subirem juntos.
Um dia, não havia ninguém nos corredores, Filomena provocou: ‘Eu hoje estou tão cansada, que não me apetecia nada subir as escadas’. Otelo respondeu: ‘Que não seja por isso. Eu levo-a ao colo’. E ela: ‘Não é homem não é nada, se não fizer isso’…» Quando Otelo foi transferido para a casa de reclusão de Tomar, finalmente, declarou-se.
ATO DE CORAGEM?
A 17 de maio de 1989, o Supremo Tribunal ordenou a libertação da maior parte dos implicados no processo das FP-25, incluindo Otelo. O Tribunal Constitucional ordenara a baixa dos autos ao Supremo que, por sua vez, anularia o julgamento na Relação. Otelo ficou na sua casa de Oeiras, com a família e, durante uma semana, Filomena não teve notícias dele. Mas depois voltou. E, passado algum tempo, assumiu, perante Dina, que tinha uma «amante». O primeiro impulso foi o do divórcio, mas a mulher, também desencorajada pelos filhos, esperou que fosse um arroubo passageiro.
Não foi. E Otelo acabou por ficar com ambas e ambas aceitaram a situação, desde que continuem, cada uma, no seu compartimento estanque. Uma família não conhece qualquer dos elementos da outra. Otelo divide os seus objetos pessoais pelas duas casas. Durante a semana, está com Filomena. À sexta-feira, vai para Dina.
A biografia recolhe o testemunho de Mouta Liz, seu amigo e companheiro no Projeto Global e nos negócios em Angola: «A bigamia de Otelo é um dos seus maiores atos de coragem.» Não será a apreciação mais encomiástica para quem, desafiando uma ditadura e pondo em risco a carreira e a vida, planeou e executou o 25 de Abril. Mas, se a revolução lhe passou ao lado, Otelo agarrou bem o amor. Tal como Neruda, poderá, talvez, dizer: «Confesso que vivi.»