É um dejá vu. Sem estado de emergência, até onde pode o Governo limitar a liberdade dos cidadãos? Os constitucionalistas dividem-se. Contactado pela VISÃO, o especialista em Direito Constitucional Tiago Duarte aceita a justificação dada pela ministra da Presidência, na conferência de imprensa, em que esta anunciou que a Área Metropolitana de Lisboa ficará isolada desde as 15:00 desta sexta-feira, 18, até às 6:00 de 21 de junho, à luz da Lei de Bases da Proteção Civil. Já o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia acredita que esta medida se trata de uma violação constitucional.
É uma espécie de cerca sanitária ao fim-de-semana, alargada a 18 municípios (Alcochete, Almada, Amadora, Barreiro, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Moita, Montijo, Odivelas, Oeiras, Palmela, Seixal, Sesimbra, Setúbal, Sintra e Vila Franca de Xira). Quem está dentro não pode sair, quem está fora não pode entrar. O objetivo é tentar impedir a “elevada incidência [de casos de Covid-19], que se faz sentir nesta região”, para for dela, explicou a ministra Mariana Vieira da Silva. A exceções são as situações laborais e as viagens para o estrangeiro. Mesmo para quem tinha férias marcadas, a governante aconselha a ir em dias úteis.
“A Lei de Bases da Proteção Civil diz que pode haver limites à circulação das pessoas, mas isso é uma coisa restrita ao lugar onde as pessoas estão. Não deveria ser aplicada quando uma pessoa está a passar de carro, porque aí não há nenhum problema de saúde pública”, afirma Jorge Bacelar Gouveia, que acredita que, sem estado de emergência, esvaziam-se os poderes do Executivo para decretar este género de medidas. “Se já andávamos aqui numa legalidade duvidosa – porque eu sempre achei que o estado de calamidade não era a figura jurídica legalmente adequada para lidar com a situação – agora passou a ser inconstitucional”.
Para o professor da Universidade Nova de Lisboa, se o Governo considerava necessária esta restrição tinha de defender a aplicação de um estado de emergência parcial, ou seja, aplicado só na Área Metropolitana de Lisboa. Sendo que o Presidente da República já deixou claro, no fim-de-semana passado, que não está disponível para dar cobertura a este retrocesso: “Naquilo que depender do Presidente da República, não se volta atrás”, disse Marcelo, em contra corrente com o primeiro-ministro, que admite adotar “em cada momento as medidas que se justifiquem perante o estado da pandemia”.
Por sua vez o constitucionalista Tiago Duarte não podia pensar de forma mais oposta a Bacelar Gouveia. “Apesar de não estarmos em estado de emergência, estamos em estado de calamidade, o que está previsto na Lei de Bases da Proteção Civil e onde se prevê que o Governo possa tomar medidas limitadoras do direito de circulação. Desde que seja para salvaguardar outros direitos constitucionais e, neste caso, é o direito à proteção da saúde”, indica o docente de direito constitucional da Universidade Católica.
“Tudo somado, eu acho que temos uma lei (a lei da Proteção Civil), essa lei só se aplica se estivermos em estado de calamidade (também estamos). Depois, essa lei permite restringir a liberdade de circulação e é adequada ao fim em vista? É uma questão mais técnica, mas parece-me razoável que limitar a circulação limita também a circulação do vírus onde existe um alto índice de transmissibilidade”, conclui Tiago Duarte.
Embora seja a primeira vez que o Governo decreta restrições à circulação num grupo de concelhos como um todo, neste caso na Área Metropolitana de Lisboa, desde que a pandemia começou medidas semelhantes foram já aplicadas a concelhos específicos, por exemplo, a Felgueiras, Lousada e Paços de Ferreira, logo no início.
A lei que ficou na gaveta
Desde o ano passado que os pedidos de uma lei de emergência sanitária se sucedem, para evitar a discussão sobre a constitucionalidades das medidas de restrição contra a Covid-19. Numa carta assinada por cinco constitucionalistas (entre eles Bacelar Gouveia), em outubro, recordava-se que uma resolução do Conselho de Ministros não é instrumento legislativo e que a Lei de Bases da Proteção Civil não seria suficiente. Esta possível lei – ainda há um mês defendida pela provedora da Justiça, Maria Lúcia Amaral – teria como objetivo dar ao Governo determinados poderes para implementar medidas restritivas numa situação de emergência sanitária. Mas até hoje ainda não chegou à Assembleia da República.