Começa a desfiar provérbios: “Nunca regresses ao sítio onde já foste feliz”, “O futuro a Deus pertence”, “Nunca se sabe o dia de amanhã”, “Nunca digas desta água não beberei”. Saem-lhe um atrás do outro e, ao fim e ao cabo, Jaime Marta Soares não se descose sobre se, aos 73 anos, está disponível para regressar à presidência da câmara de Vila Nova de Poiares, da qual teve de se afastar em 2013, quase 40 anos depois de lá ter chegado.
Deixou Poiares por imposição da lei, não por vontade ou porque considerasse que estava na altura de deixar o lugar a outro. Nada disso. Jaime Soares ainda sentia aquele apelo da política, ainda tinha forças para prosseguir a vida de presidente, de amigo, bombeiro e ouvinte das gentes da terra. E sentia que, ao fim desses anos todos, “as pessoas não estavam fartas de mim”.
Pensou na vida, lamentou a aprovação de uma lei “muito antidemocrática”, que faz com que se percam “muitas valias, de todos os partidos”, que se afastem pessoas que assumem o cargo como uma “vida de sacerdócio, de entrega às populações”. Gente que não está lá “pelos partidos”, mas pela terra e por quem, de quatro em quatro anos, devia poder decidir quem fica à frente da câmara e quem é que tem de sair.
Devia e podia, até chegar a lei da limitação dos mandatos dos presidentes das autarquias locais. Com ela, o ciclo de Jaime Soares quebrou-se. Obrigado a mudar de vida, desceu a Lisboa (onde está “em permanência, mas a prazo”) e dedicou-se ao seu outro grande amor: o Sporting (onde é presidente da Mesa da Assembleia-Geral). Regressar? “Gosto da minha terra mais do que de mim próprio, mas neste momento não me passa pela cabeça.” Nim, portanto. “Mas há colegas meus que vão voltar!”
Há, de facto. Narciso Miranda já anda por Matosinhos a distribuir charme e a plantar sementes. “Menina, sabe quem eu sou?”, pergunta amiúde, derretendo-se quando elogiam a obra que deixou feita ou mostram, como já têm mostrado, uma fotografia antiga, com Narciso e uma criancinha – entretanto feita homem ou mulher – ao colo. Narciso é dado por natureza, mas vê-se bem que está a trabalhar para fazer crescer a sua base de apoio. E que acalenta a esperança de ver o seu esforço dar frutos nas próximas autárquicas, onde aparecerá, como independente, a disputar o lugar com um dos três candidatos a candidato pelo PS (Luís Salgueiro, António Parada e Ernesto Páscoa) ou o arquiteto José António Barbosa, que deverá ser apoiado pelo PSD.
Muitos outros nomes entram nesta cacofonia. Joaquim Raposo também pode estar de regresso. O socialista tem sido desafiado a concorrer… mas não à “sua” Amadora, atualmente liderada por Carla Tavares, sua antiga vereadora. O PS quere-o na luta, mas por outro concelho da área de Lisboa. Loures? Concorrerá, deixá-lo-á para Carlos Teixeira (o antigo autarca do PS que quer regressar, após quatro anos de interregno) ou disputam-no os dois (Raposo pelos socialistas, Teixeira como independente), dividindo o partido? “O futuro a Deus pertence”, já dizia Jaime Soares.
O nome de Fernando Ruas também anda a ser sussurrado nas hostes sociais-democratas, mas o antigo presidente de Viseu, apesar de não ser propriamente apoiante do seu sucessor, estará tão bem instalado no Parlamento Europeu, que de lá não pensa regressar antes do final do seu mandato, em 2019. Valentim Loureiro tem sido igualmente pressionado, por alguns setores do PSD, para regressar às lides, mas os problemas de saúde que teve de enfrentar, nos últimos tempos, fizeram com que o major nem sequer queira pensar no assunto. Tem Gondomar no coração, mas “não, obrigado”.
Estreias difíceis
Os partidos bem podem dizer que é cedo para se falar de autárquicas, que só faz sentido avançar nomes depois do verão e fechar listas lá para março, que as atenções estão centradas nos Açores (com eleições marcadas para 16 de outubro), mas no terreno já se sente o fervilhar que antecede a ida às urnas. Assim não fosse e nem Ana Catarina Mendes, secretária-geral-adjunta do PS, nem Carlos Carreiras, coordenador autárquico do PSD, estariam já a palmilhar o País, para ouvir as forças vivas dos seus partidos.
Desde maio na estrada, Carreiras já foi a todos os distritos. Falta-lhe a Madeira e os Açores, que deverá visitar antes das eleições de outubro. Ana Catarina ainda só foi a três distritos, mas foram três onde as lutas pessoais entre putativos candidatos já lança estilhaços. A ida a Braga, Viana do Castelo e Porto foi o suficiente para a secretária-geral-adjunta regressar a Lisboa bastante preocupada. Pelo norte, perspetivam-se, para os socialistas, lutas fratricidas, mesmo que isso signifique deitar por terra camaradagens de anos. Em Barcelos, Vizela e Fafe, essas guerras já se tornaram públicas. Entre “vices” a quererem concorrer à presidência e admitirem candidatar-se, nem que seja como independentes, e históricos que agora querem regressar, há de tudo um pouco.
Ana Catarina Mendes e Carlos Carreiras têm, justamente, por missão, ouvir, de quem está no terreno, o estado dos amores e desamores pela política e pelos seus protagonistas, a dimensão das brigas entre potenciais candidatos e, sobretudo, as expectativas que neles deposita o eleitorado.
Rivais nas urnas, PS e PSD partilham a regra de que todo e qualquer presidente de câmara que se queira recandidatar tem o apoio do seu partido. A regra é válida em todos os concelhos, mesmo naqueles onde possa causar mossa. Em Elvas, por exemplo, o PS há de apoiar a recandidatura de Nuno Mocinha, mesmo depois de o histórico do partido, Rondão de Almeida (que foi para a “reserva” em 2013) ter assumido lançar-se na corrida como independente. Perante um “novato” em funções ou um “dinossauro” sem presidência, Luís Testa, presidente do PS-Portalegre, não oscila e até garante à VISÃO que o apoio ao atual presidente é “uma decisão que está tomada”.
Casos como este há muitos e só não degeneram se as regras forem firmes e iguais para todos. Por isso, na sua ronda pelas distritais, o que Carlos Carreiras tem dito é que o PSD não só apoia a recandidatura dos presidentes em funções (do PSD ou eleitos em coligação com o CDS), como a incentiva. “Não excluímos ninguém”, garante à VISÃO. Mas – há sempre um mas – não aceitará coligações com partidos que apoiem o Governo; nem apoiará “antigos presidentes que queiram voltar a concorrer a câmaras onde tenham exercido funções”, se essas câmaras forem do PSD. Ou seja, estão excluídas recandidaturas de antigos presidentes sobre atuais presidências do PSD, porque “os eleitores não veem com bons olhos um antigo presidente retirar o lugar àqueles que os substituíram”.
Entre o ovo e a galinha
Tal como Ana Catarina, Carreiras já tem casos com que se ocupar. Narciso Mota, por exemplo, deixou a presidência da Câmara de Pombal em 2013, mas quer regressar. Só que o seu lugar foi ocupado, nos últimos quatro anos, por Diogo Mateus, seu companheiro de partido. Narciso cumpriu o seu interregno obrigatório na presidência da Assembleia Municipal. Ou seja, saiu da câmara, mas ficou por perto. Tão perto que, localmente, os sociais-democratas confessam temer que uma candidatura independente do ex-presidente leve consigo “a maior parte do eleitorado do PSD”. Quem esfrega as mãos de contente é António Sales, presidente da federação socialista. Antecipando a “divisão de votos no eleitorado social-democrata”, regozija-se com a “oportunidade” de o PS poder vir a roubar, finalmente, a Câmara de Pombal ao PSD.
Mas nem tudo são rosas para o PS Viseu. Pereira Pinto, ex-presidente socialista de Cinfães, quer tanto regressar que põe a hipótese de o fazer com o apoio da concorrência, ou seja, do partido de Passos Coelho. O PSD regista, mas deixa a decisão para mais tarde.
O regresso dos históricos, está visto, tanto pode ser uma dor de cabeça como uma perspetiva de vir a recuperar autarquias perdidas. Viajemos até São Pedro do Sul e Penalva do Castelo, que passaram para mãos socialistas quando os sociais-democratas António Carlos Figueiredo e Leonídio Monteiro, respetivamente, atingiram o limite de mandatos. O PSD gostaria de contar com eles na luta pela reconquista. Sigamos para Caminha, onde se discute o regresso de Júlia Paula Costa (PSD), também como forma de retirar o município ao PS. Em Cuba, pelo contrário, “ainda está em aberto” o regresso de Francisco Orelha que, tendo atingido o limite de mandatos, viu a “sua” câmara perdida para a CDU.
Em Braga, pelo contrário, corre que Mesquita Machado quer regressar, para retirar a câmara à coligação PSD-CDS-PPM. Mas o líder da distrital do PSD, José Manuel Fernandes, não teme: “Não creio que regresse. Ele terá noção do resultado que teria.”
Este distrito, já se disse, é uma das grandes dores de cabeça para o PS. Joaquim Barreto (presidente da federação socialista) encabeça, ele próprio, um dos problemas antecipados no Rato: tal como Narciso Mota, de Pombal, Barreto tem passado o quadriénio 2013-2017 à frente da Assembleia Municipal de Cabeceiras de Basto. Mas a transição foi tudo menos suave e agora há quem diga que o distrito que comanda, para o PS, pode acabar por representar “uma derrota histórica” para os socialistas em eleições autárquicas. Barreto responde à letra: “Os que fazem prognósticos de desgraça, é melhor esperarem para ver como as coisas evoluem. Ainda falta muito tempo”, diz à VISÃO. Garante que está a tentar gerir “com bom senso” os casos no distrito de vários candidatos para o mesmo lugar e está longe de se deixar guiar em exclusivo pela diretiva que veio da Direção Nacional. “Essa norma [de que os atuais presidentes de câmara do PS, a quererem, serão recandidatos] tem que ter exceções, porque temos que respeitar a vontade das populações e das concelhias”, diz o agora deputado.
“A mudança de presidente para [outro] candidato é sempre um momento de maior vulnerabilidade para os partidos”, desabafa o social-democrata Carlos Carreiras. E Joaquim Barreto aponta o dedo aos partidos, incluindo o seu PS: “Os que fizeram a lei da limitação dos mandatos não prepararam convenientemente as renovações. Foi uma mudança muitas vezes traumática, não só para os políticos mas também para as populações.” Ainda assim há transições tranquilas. É o que se prevê para Paredes, onde Celso Ferreira (PSD) se prepara para passar o testemunho para o seu vice, Pedro Mendes, ou na Maia, de onde sai Bragança Fernandes (também PSD) para que se candidate o seu número dois, Domingos Tiago.
Ganhar é…
Há 308 concelhos e muita coisa em jogo, nas próximas autárquicas. Obediente às orientações de Passos, Carlos Carreiras diz que quer ter duas derrotas – derrotas, leu bem: “deixar de ser o presidente da maior câmara do PSD”, o que seria sinal de que o PSD recupera grandes cidades, de preferência capitais de distrito, e “deixar de ser o presidente da Mesa do Conselho Geral da Associação Nacional de Municípios Portugueses [ANMP]”, que é como quem diz ser o partido com o maior número de câmaras e juntas e presidir à ANMP e à ANAFRE. Foi este, de facto, o objetivo que o líder dos sociais-democratas definiu no último congresso. Mas a tarefa está longe de ser fácil, já que em 2013 o PS alcançou um resultado histórico: chegou à presidência de 150 das 308 câmaras do País. O PSD não passou das 106, por isso, para concretizar os seus planos, teria de ganhar 22 presidências ao PS e não perder nenhuma.
Por mais que se diga que não há relação entre as duas, a verdade é que, como reconheceu Passos Coelho no dia da última ida às urnas, as eleições autárquicas “não são eleições nacionais, mas há sempre uma leitura nacional a fazer”. Se assim não fosse, António Guterres não se teria demitido do governo, em 2001, depois de uma pesada derrota nas eleições locais – perdeu em número e perdeu bastiões como Lisboa, Porto e Sintra.
A permanência de Passos Coelho à frente do PSD não depende do resultado de 2017, mas ajudá-lo-ia (a ele e ao partido) bastante. Uma vitória em Lisboa, por exemplo, poderia mudar muitas peças do tabuleiro nacional – é por isso que o PSD insiste em querer Santana Lopes, o homem que se diz bem na Santa Casa, mas não deixa de fazer perdurar o que disse no congresso: “keep cool, tenhamos calma, cada coisa a seu tempo”.
Ganhar a ANMP pode ser difícil para o PSD, mas o desafio de manter 150 câmaras apresenta-se ainda mais difícil para o PS. E casos como o de Rondão de Almeida, que passam sempre a imagem de conflitualidade e instabilidade, não ajudam os socialistas.
O antigo secretário nacional do partido, Miguel Alves, muito próximo de António Costa, lembra que “a soma de todas as questões locais – que na esmagadora maioria dos casos diz respeito a disputas pessoais e nada têm a ver com o partido – pode dar lugar a um mau resultado do PS, o que terá, inevitavelmente, uma leitura nacional”. Pode ser um “paradoxo”, mas “a leitura que se fará a seguir é a de que há uma fragilidade no Governo e que a geringonça pode ser afetada, considerando-se que Costa perdeu as eleições, quando na verdade muitas derrotas se podem dever a estas questões meramente locais”. O dirigente acredita, por isso, que o PS está “num colete de forças”. Mas, considera, António Costa poderá entrar, em “última instância”, para resolver alguns problemas. Foi o que prometeu no encerramento do congresso do PS, no início de junho, onde deixou claro que “avocará” decisões sobre candidaturas autárquicas à direção nacional, se não concordar com o que for decidido nos órgãos locais. O costume.
Dinossauros: apoio ou empecilho?
A lei que passou a estabelecer “limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais” foi publicada em agosto de 2005, mas só surtiu efeito prático nas eleições de 2013. Nessa altura, com quase metade dos presidentes de câmara obrigados a deixar a função, estalaram várias polémicas. O PSD candidatou autarcas “de saída” noutros concelhos (caso de Fernando Seara ou Luís Filipe Menezes), o que fez correr muita tinta. Interpuseram-se ações populares. Houve muita polémica. E, entretanto, tudo acalmou.
Em 2017, 37 presidentes de câmara deixam de poder voltar a concorrer (ver mapa), por terem atingido o limite de mandatos e é pouco provável que os socialistas apoiem a sua candidatura a assembleias municipais. A estratégia, adotada em 2013, deu mau resultado. Se a ideia era que os então dinossauros servissem de apoio aos seus sucessores (muitos deles seus números dois), que a sua imagem capitalizasse novos votos, foi um mau tiro, um “grande erro”, acredita uma fonte socialista. Em muitos casos, em vez de ajudarem, os dinossauros tornaram-se numa imensa sombra para os novos autarcas, que acabaram por não se conseguir afirmar. Não foi simples. Em Cabeceira de Bastos, por exemplo, chegou-se ao extremo de China Pereira (PS) se demitir da presidência da câmara alegando ingerência de Joaquim Barreto, seu antecessor.
Barreto não fala nisso, mas assume que o “amor à obra”, que deixou depois de vinte anos a liderar a câmara e de mais doze na oposição, é uma das principais razões para muitas vezes ter sentido “frustração”. “Quando sentimos que tínhamos um projeto que não estava a ser seguido, que houve uma continuidade que foi interrompida, isso provoca ruturas e as pessoas lidam de maneiras diferentes com isso.” Entende, por isso, os antigos dinossauros que agora querem regressar para os concelhos onde “tanto deram de si”. Só critica os que se têm aproveitado das listas de independentes para se “vingarem” dos partidos que não os apoiam. Pela sua parte, não fecha nem abre portas. Candidato novamente a Cabeceiras de Basto? “Não está nos meus horizontes.”