Na noite chuvosa da última sexta, 27, Rui Rio jantou no restaurante Pêga, em Famalicão, na companhia de José Manuel Oliveira, da Casa de Camilo, e do psiquiatra e amigo Carlos Mota Cardoso.
A conversa sobre a Alemanha e a Europa foi acamada com rojões servidos em travessa de barro e “verde” da região. O futuro do ex-presidente da Câmara do Porto suscita especulações diárias, mas desta vez era o passado a levá-lo às paragens do autor de Amor de Perdição: apresentar um filme da sua eleição, A Queda, reconstrução ficcionada dos últimos 12 dias de Hitler.
Ora, nessa noite, a advogada Maria Antónia fez 15 quilómetros de Santo Tirso até ao Centro de Estudos Camilianos, em São Miguel de Seide. Esperou quase três horas de filme e mais uma de debate para lançar o desafio que trazia na ponta da língua, agora que lhe caíram dois anjos do altar: “Votei num Presidente da República e num primeiro-ministro em que não me revejo.
Não equaciona um regresso à política?”, perguntou, já madrugada dentro, perante mais de cem pessoas. Rui Rio não disfarçou o sorriso. Já tardava a pergunta sacramental nas suas aparições públicas. A resposta saiu pré-cozinhada: “Não me traz um fascínio especial desempenhar funções de visibilidade pública. Já o fiz. Mas um homem é ele e as suas circunstâncias. Depende das circunstâncias…” Habitual eleitora do PSD, Maria Antónia está “muito desiludida” com o chefe do Governo “saiu-me um pãozinho sem sal” e com Cavaco, “que não é o baluarte nem o exemplo de Presidente num País onde se vivem situações dramáticas de desamparo e privação”. Agora, revela, “até dou comigo a participar nas manifs contra o mapa judiciário “. Rio é a sua última esperança. “Tem a honestidade e o perfil executivo que precisamos para primeiro-ministro. Oxalá se decida o quanto antes.”
O que andei pr’aqui chegar…
“O quanto antes” tem, no caso de Rui Rio, muito que se lhe diga.
As declarações de simpatia e incentivo já vinham de trás, mas intensificaram-se, à direita e à esquerda, depois da saída do município da Invicta, em finais de outubro de 2013. António Capucho e Miguel Veiga, históricos do PSD, confiam nele para “regenerar ” e devolver a matriz social-democrata ao partido. Pacheco Pereira vê no amigo a “encarnação” da herança de Francisco Sá Carneiro. Em artigos e entrevistas, o historiador tem sido fervoroso adepto de uma solução para o País que envolva António Costa e Rio, “com os quais seria muito mais fácil obter os entendimentos que o Presidente da República e a sociedade portuguesa desejam “. De resto, segundo Pacheco, “eles são também a última oportunidade de o sistema político partidário português sobreviver. É uma grande responsabilidade”.
No CDS, de António Lobo Xavier a Nuno Melo, também não faltam apoios e elogios ao “capital político” de Rio, sem esquecer a excelente relação com Paulo Portas. A falange mais barrosista do PSD, com Nuno Morais Sarmento à cabeça, aposta igualmente num futuro promissor para Rio.
O ex-ministro de Durão Barroso prefaciou a recente biografia autorizada do economista, intitulada De Corpo Inteiro (Porto Editora), em cujas páginas são relevados os hábitos espartanos do biografado e a pouca vocação para frequentar os restaurantes da moda lisboeta, as redações da Imprensa e os ambientes sociais dos lobbies financeiro e corporativo.
Da área socialista também chegam mais do que palavras simpáticas. Mário Soares confessou “admiração” pela figura e subscreveu o seu diagnóstico sobre o regime, que Rio considera caminhar para um novo tipo de ditadura. Daniel Bessa elogiou o político de “mãos limpas”. Quanto a António Costa, além da amizade e respeito mútuo, é conhecida, pelo menos, a sintonia quanto à reforma das leis eleitorais e a necessidade de regionalizar o País.
Inesperada foi a “provocação” feita há pouco mais de um ano por Vasco Lourenço num dos Animados Almoços Ânimo, dinamizados por António Colaço, ex-assessor do grupo parlamentar do PS. “Não se ponha numa posição de espera e atue já. Junte-se àqueles que estão a querer recuperar os valores de Abril”, desafiou o coronel, antigo militar do MFA. “Embora Rio se mova num espaço ideológico e político que não é o meu”, esclarece à VISÃO, “seria bom para a democracia se assumisse mais protagonismo no PSD e fizesse regressar às origens uma área política que está abastardada e adulterada”.
Não se deixar condicionar por agendas alheias é uma das imagens de marca do visado.
Rio gosta pouco de aventuras e adora contrariar o frenesim mediático. “Temos de ter sempre presente o que queremos, particularmente na vida política”, costuma dizer. “Se cedemos à pressão, a dada altura perdemos o rumo.” Mas até que ponto saberá ele gerir os timings? A obsessão com “a hora marcada” fá-lo, por exemplo, chegar com antecedência à sessão de lançamento da sua própria biografia, como aconteceu há semanas em Viana do Castelo, ignorando quem sugere que deveria fazer-se esperar e desejar.
O momento certo pode também ser uma oportunidade perdida.
Em 2008, a hipótese de liderar o PSD passou pela primeira vez à porta de Rio. Menezes demitiu-se da presidência do partido e Manuela Ferreira Leite substituí-lo-ia, candidatando-se às legislativas do ano seguinte.
Mas não sem antes tentar convencer Rio a avançar. Nessa altura, as pressões abanaram o então autarca do Porto. Nuno Morais Sarmento, Pacheco Pereira, Alexandre Relvas, José Pedro Aguiar Branco e Castro Almeida foram, a par de Manuela, dos mais persistentes. Rio quis manter a palavra dada aos eleitores da Invicta de que cumpriria o mandato e argumentou também com razões familiares. “Percebemos que nada o demoveria. Se fosse necessário ele arranjar mais argumentos para rejeitar a ideia, até a cor dos sapatos serviria”, conta um dos envolvidos no cerco a Rio. “O Rui não convive bem com o desconhecido, não gosta de variáveis que não controla. Nessas situações, só ouve pessoas que concordam com ele”, refere à VISÃO um ex-ministro do governo de Santana Lopes.
O que o faz correr?
Desde o adeus à Câmara do Porto que Rio gere com pinças a exposição mediática. As sondagens sugerem ser o melhor para governar o País e um dos mais fortes candidatos a Belém, mas as entrevistas que dá são cirúrgicas recusou falar à VISÃO para este artigo e não se desvia da cartilha que impôs a si próprio, resumida assim: não mexerá uma palha para regressar à política, mas se muita gente quiser e as circunstâncias mudarem, pensará no assunto. “Para além de não dominar os tempos em que as guerras lhe são impostas, também lhe é inaceitável perdê-las por falta de comparência”, lê-se, na biografia.
Mas que cenários traça ele próprio em privado? De figuras nacionais do PSD (Nuno Morais Sarmento, Pacheco Pereira, Manuela Ferreira Leite, Castro Almeida) aos homens no terreno (António Tavares e Rui Nunes, do Fórum Sociedade e Democracia) passando pelo inner circle dos tempos de autarca (Manuel Teixeira e Guilhermina Rego) e amigos de lealdade extrema (Carlos Mota Cardoso), Rui Rio não desperdiça oportunidades para ouvir e ser ouvido sobre o seu futuro.
Nessas conversas já deu de barato que Passos irá a votos, a menos que um terramoto político obrigue a antecipar cenários.
A hipótese Belém começa, pois, a ganhar forma. Nesse contexto, o ideal, na perspetiva de Rio e de uma derrota eleitoral da atual maioria, seria ver o PSD liderado por Nuno Morais Sarmento ou Paulo Rangel.
Ele próprio, contudo, não se exclui. “O líder da oposição tem uma importância gigantesca “, ouvem-no dizer a propósito de “pactos de regime” com um Governo PS.
“O entendimento com o Costa é possível, o problema é a ferrugem socialista”, terá dito, em privado.
Nos diálogos que vem mantendo, recusa fazer o papel de Messias ou Dom Sebastião.
“Não quero tapete vermelho, nem que me venham buscar”, repete amiúde, a amigos. Explica que lhe interessa mais a opinião do porteiro, da dona de casa, do rececionista ou do segurança. Gente que, de norte a sul, lhe diz “está aqui o próximo Presidente” ou “tem de pegar nisto”. O que o fará então decidir? “Não me interessa o establishment, a Imprensa ou os frequentadores dos corredores de Lisboa. Se o essencial estiver garantido, os notáveis aparecem.
Quero o apoio do povo. Até agora, a minha avaliação é muito positiva”, terá admitido, recentemente.
Tudo em aberto, portanto. Rumo a São Bento ou a Belém, “só vale a pena se for para provocar ruturas”, repete. Na Presidência não esperem dele a postura de monarca à la Cavaco. “Se o País estivesse em situação de cruzeiro, o seu estilo seria o de Mário Soares, no primeiro mandato. Mas nestes tempos difíceis, ele considera que faz falta um estilo idêntico ao de Eanes, em 1976, embora sem intervir tanto na go- vernação”, descodifica um dos fiéis “ouvidores ” de Rio.
Os afazeres nas empresas de recursos humanos Neves de Almeida e na Boyden deixam-no mais livre para expor ideias em debates públicos. Instituições de ensino, partidos (PSD, CDS e PS), organizações, associações, clubes e tertúlias reclamam a sua presença.
Ele aproveita para repetir até à exaustão o seu diagnóstico do País. O “programa” defendido por Rio implica reformas drásticas na Justiça, sistema eleitoral, exercício de cargos políticos, Parlamento, Comunicação Social, relação entre o Estado e a Economia e reorganização territorial. “Isto não vai lá com democracia formal, só com democracia real”, costuma dizer. A fraca qualidade dos políticos e o poder “ilimitado” da Imprensa e da magistratura ocupam grande parte dos discursos, seja a audiência amena ou ávida de safanões cívicos. Rio usa um tom pedagógico, sentido de humor ácido, mas sobressalta-se quando aborda “a crise do regime e da Justiça “. Numa sessão do International Club, em Lisboa, um velhote levantou-se e desafiou-o: “O senhor doutor está convencido de que é mesmo possível reformar a Justiça sem dar uns tiros?” Em Viana do Castelo, no mês passado, Rio voltou a usar o seu saco de boxe preferido: “Fui arguido umas seis ou sete vezes enquanto presidente da Câmara do Porto. Quase fiz a cadeira do Código de Processo Penal.
É uma honra no quadro geral da Justiça”, ironizou o homem que, desde o primeiro ordenado, regista tudo o que ganhou, gastou e depositou.
“Tenho até os canhotos dos cheques guardados, não venha por aí algum processo sobre enriquecimento ilícito.” A sessão em causa foi organizada pelo Fórum Sociedade e Democracia, plataforma de reflexão e debate sobre o País apontada como cavalo de Troia de uma eventual candidatura de Rio à liderança do PSD ou a Belém.
Nem a sigla, FSD, é insuspeita. “O Fórum não é clandestino, não está nas catacumbas a discutir política”, resumiu, na ocasião, o dirigente Antero Filgueiras, para o qual “será um desperdício se Rui Rio for candidato a Belém. Seria a mesma coisa que usar ouro para fazer canalizações”. António Tavares, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, um dos coordenadores da plataforma, pensa diferente. “Rio poderia representar para o País o que Eanes foi em 1976 para a democracia. Tem a mesma consciência moral e ética do general e o perfil executivo que lhe permitiria ser um bom ‘adjunto’ de um Governo reformista”. O médico Rui Nunes, do núcleo duro do Fórum, espera vê-lo “aclamado por todo o território nacional”, apesar do “nítido desconforto de alguns governantes “, escreveu, no Público.
O desconforto não é notório nem generalizado.
Mas existe. Passos Coelho já disse estar aqui para as curvas, Marco António Costa lamentou alguns “jogos florais” e até José Pedro Aguiar-Branco que recusou colaborar na biografia e cuja relação com o amigo de outrora é “iceberguiana” desafiou-o a ser cabeça de lista nas legislativas deste ano. “Rio apostou tudo no falhanço do Governo, mas a estratégia correu mal”, resume outro ministro. Os adversários no interior do Governo criticam-lhe “o perfil peronista” e a “lógica cartesiana, sempre com reserva mental e incapaz de compreender a realidade como um todo”, explicam.
Mas o que mais enfurece os “ortodoxos” de Passos é a crítica constante à fraca qualidade dos políticos. “A porcaria do PSD é a mesma porcaria de que ele se serviu quando deu jeito. Mas os porquinhos dele não são porquinhos. Os dele são sempre classe premium. “, ironiza um governante.
Resumindo: o futuro de Rui Rio já é assunto de Estado. Mas, tal como a sua vinda ao mundo, é bem capaz de revelar-se um parto difícil.