De vez em quando, Rui Machete salta para as primeiras páginas dos jornais devido a atitudes que já lhe valeram a alcunha de “ministro manchete”, fazendo um trocadilho com o seu apelido. Aconteceu quando pediu desculpa a Angola, por causa de inquéritos judiciais em curso em Portugal, e voltou a acontecer na última semana, na Índia, quando o desejavelmente discreto ministro dos Negócios Estrangeiros colocou, à margem de um encontro com a comunidade portuguesa em Nova Deli, a “mera hipótese” de “um juro de 4,5% [a dez anos] para evitar um segundo resgate” – no momento da afirmação, a taxa rondava os 5,96 por cento.
As palavras de Rui Machete foram consideradas um deslize por políticos de vários quadrantes (ver caixa Reações a uma gaffe) e o próprio teve de vir a público explicar-se e recuar. “Quero esclarecer que as taxas de juro a aceitar por Portugal serão obviamente as que o Governo, no momento oportuno e através do ministério competente, considerar sustentáveis pela nossa economia, e não qualquer outro valor fixado de antemão.”
O caso irritou o PSD e fez soar campainhas, no interior do próprio Governo, obrigando Paulo Portas a “repreender” publicamente o seu sucessor. “Faltam sete meses para Portugal terminar o seu programa de assistência e esse programa tem uma data marcada para finalizar, não uma determinada taxa [de juro]”, disse o vice primeiro-ministro.
De Bruxelas chegou outro reparo, através de Simon O’Connor, porta voz do comissário europeu Olli Rehn, que, entretanto, lembrou que “todas as questões sobre a conclusão do programa de ajustamento e a saída de Portugal vão ser discutidas na altura devida, que não é agora”.
Em outubro de 2010, uma declaração idêntica à de Machete perturbou os mercados e precipitou o primeiro pedido de assistência financeira. “Se os juros da dívida chegarem aos 7%, o Governo tem de colocar a hipótese de recorrer ao FMI e ao fundo europeu”, disse o então ministro das Finanças, Teixeira dos Santos. A fasquia foi ultrapassada no primeiro trimestre de 2011 e o País pediu ajuda em abril.
Narrativas
Desta vez, porém, os mercados foram “amigos” de Rui Machete. Pelo menos no imediato. Depois das declarações do ministro, os juros a dez anos deslizaram para 5,81% e a agência de rating Moody’s admitiu melhorias na classificação de Portugal, se o País conseguir acesso pleno aos mercados, depois de terminado o programa de resgate, em junho de 2014.
A anunciada revisão em alta do rating português pode ajudar o Governo a retomar a sua narrativa, interrompida pelas afirmações de Machete. Até ao momento em que o MNE levantou a hipótese de um segundo resgate se os juros não descessem para 4,5%, o Executivo falava apenas num programa cautelar, a vigorar depois da saída da troika de Portugal, procurando afastar o cenário referido pelo governante na Índia.
Como recordou, no Parlamento, a economista Teodora Cardoso, presidente do Conselho Nacional de Finanças Públicas, “um programa cautelar é feito em condições muito diferentes [de um resgate financeiro] e de uma forma mais dependente do próprio país”.
Por seu turno, Marcelo Rebelo de Sousa não deixou passar em claro a gafe do seu amigo político e desabafou: “O primeiro-ministro não pode tirá-lo. Também não se pode evitar que ele viaje. Também não se pode evitar que ele fale. Nem sei que dizer e estou a ser de uma caridade cristã enorme, contra o que é o meu costume.”
Intrometendo-se numa área que não é da sua responsabilidade, o MNE acabou por colocar mais pressão sobre si próprio e sobre a sua atuação nos assuntos externos. “Com tudo isto, ele só fez com que as pessoas começassem a questionar-se sobre o que é que ele anda afinal a fazer no seu ministério. Este Governo gosta muito de dizer que vai ficar para a história e arrisca-se mesmo a ficar para a história como o Governo que arruinou as relações com Angola”, diz um social-democrata e ex-governante à VISÃO. “E Rui Machete surge como o grande responsável, por ser o ministro da tutela.”
Reincidências
Deslizes, mais ou menos ligeiros, têm marcado o percurso recente da longa carreira política de Rui Machete, o que levou Marcelo Rebelo de Sousa a aconselhá-lo, há um mês, a “sair, daqui a algum tempo, pelo seu pé, quando já ninguém esperar que o faça”.
A sensação de que Machete está no Governo por conta própria ficou reforçada com o incidente da Índia, mas já se vinha intensificando desde que, em outubro, em entrevista à Rádio Nacional de Angola, o governante que foi consultor da PLMJ (escritório de advogados que trabalha com Angola) apresentou um pedido de desculpas diplomáticas àquele país pelas investigações a várias figuras angolanas, em curso em Portugal.
Desde então, outros casos, envolvendo o ministro, têm sido recordados, como, por exemplo, o da carta que, em 2008, escreveu ao Parlamento a dizer nunca ter sido “sócio ou acionista” da SLN, erro factual que haveria de corrigir mais tarde, ao ser empossado como ministro. Nessa altura, Machete foi confrontado com as suas ligações à SLN/BPN e ficou a saber-se que o ex-presidente da FLAD havia comprado, em 2006, 25 500 ações da SLN, que venderia, um ano depois, ao BPN, com um lucro de 150 por cento.
Outra história, divulgada pelo semanário Expresso, revelou que o embaixador dos EUA, Thomas Stephenson, escreveu, em 2008, o telegrama que pôs Rui Machete na Wikileaks. Nesse texto, o diplomata americano defendia a demissão do então presidente da FLAD, dizendo que chegara a “hora de decapitar Machete”.
Cinco anos e algumas manchetes depois, o ministro continua inteiro, mas já há (mais) quem exija a sua cabeça.
Polémica – Reações a uma gafe
A oposição lançou duras críticas ao ministro. Mas outras vozes, de outros quadrantes políticos, também se fizeram ouvir
- “Faltam sete meses para Portugal terminar o seu programa de assistência e esse programa tem uma data marcada para finalizar, não uma determinada taxa [de juro]”, Paulo Portas, vice primeiro-ministro
- “O primeiro-ministro não pode tirá-lo. Também não se pode evitar que ele viaje. Também não se pode evitar que ele fale. Nem sei que dizer e estou a ser de uma caridade cristã enorme, contra o que é o meu costume”, Marcelo Rebelo de Sousa, comentador
- “Ou há um desmentido àquilo que foi dito por Machete ou há a afirmação clara de que o segundo resgate já está no pensamento do Governo”, Pedro Filipe Soares, líder da bancada do BE
- “O primeiro-ministro devia advertir os ministros para terem cuidado na linguagem, sobretudo em temas que dominam menos, como o da comunicação com os investidores”, António Nogueira Leite, economista
- “Eu aconselho, e apelo ao primeiro-ministro, que ponha juízo nos seus ministros para que eles não criem mais problemas para o País”, António José Seguro, líder do PS
- “É uma declaração inoportuna porque, se há coisas que os mercados exigem, é moderação e bom senso. Estas declarações pecam por falta de sensibilidade”, António Saraiva, presidente da CIP
- “Estas declarações eram tudo menos o que era preciso nesta altura, do ponto de vista político. Eu vi-as como desnecessárias”, José Luís Arnaut, ex-ministro do PSD
- “Não se percebe porque é que o MNE se dá a este exercício masoquista. Onde terá ele ido buscar esse número? Com que entidade divina terá falado?”, José Sócrates, ex-primeiro-ministro