Para além da crise energética e do aumento galopante da inflação, a guerra na Ucrânia está também a precipitar uma crise de alimentação a nível global com uma escala preocupante. Esta realidade deve-se sobretudo ao papel fundamental que a Ucrânia – e a Rússia – desempenha nas cadeias de fornecimento mundiais de alimentação, especialmente no mercado dos cereais, trigo e óleo de girassol. Ora, a Rússia está, neste momento, a bloquear a saída a cerca de 20 milhões de toneladas de trigo produzidas pela Ucrânia e destinadas à venda para o exterior, transformando uma situação crítica numa ainda mais grave.
A forte dependência de muitos países do Médio Oriente e Norte de África das exportações Ucranianas já era há muito conhecida, mas as estatísticas ganharam uma nova relevância perante a invasão russa. O Líbano, por exemplo, segundo contas das Nações Unidas, importa 81% do seu trigo à Ucrânia. Já no Qatar o número é de 64%, na Tunísia de 49% e no Egito de 26%. Neste último, se juntarmos também as exportações da Rússia – que estão atualmente limitadas devido à necessidade de a produção local apoiar o esforço de guerra – a percentagem sobe para perto dos 60%, isto num país com 102 milhões de habitantes e uma conjetura económica instável.
O aumento dos preços e a carência alimentar nestes países poderá abrir caminho a uma nova vaga de protestos violentos na região, para não mencionar a possibilidade de uma nova onda de emigração para os países do bloco comunitário, cujo potencial impacto na estabilidade política e económica mundiais não pode ser subestimado.
Em parte, o objetivo das operações militares de Vladimir Putin, Presidente da Rússia, no Mar Negro, as que efetivamente estão a bloquear o acesso aos portos da costa do sul da Ucrânia, é precisamente ganhar margem de manobra negocial perante os líderes europeus e norte-americanos. Putin está, referem muitos analistas e políticos ocidentais, a instrumentalizar a sua posição de superioridade no campo naval para extrair concessões económicas à União Europeia (UE) e aos EUA, nomeadamente um alívio nas sanções que afetam o seu país.
Nesse sentido, Ursula Von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, aproveitou a conferência anual do Fórum Económico Mundial, em Davos, no dia 24 de maio, para expor o problema de forma veemente: o Presidente russo está “a aumentar deliberadamente os preços globais e a negociar trigo em troca de apoio político” e a “usar a fome e os cereais para exercer poder”.
O tempo não está no lado dos europeus, já que a próxima colheita está para breve e os armazéns ucranianos precisam de espaço – que está atualmente ocupado pelos cereais que não estão a ser exportados. Por isso, coloca-se a questão: como é que a UE e os seus aliados ponderam responder a esta crise alimentar? Existem algumas opções, mas, como admitem os próprios líderes europeus, não há bela sem senão.
A opção da Bielorrússia
Ao garantir a colaboração da Bielorrússia, a tarefa de transportar o trigo ucraniano para o resto da Europa e do mundo ficaria mais facilitada. No entanto, esta proposta enfrenta dois grandes obstáculos: nada garante à UE que a Bielorrússia estará interessada em ajudar neste processo, visto que é uma das poucas aliadas que ainda restam a Putin, e, mesmo que estivesse disponível para tal, qualquer acordo implicaria uma decisão politicamente difícil – a retirada de algumas das sanções impostas ao país liderado pelo Presidente Alexander Lukashenko devido à sua colaboração com Moscovo.
Segundo fontes citadas pela EURACTIV, uma agência noticiosa dedicada a cobrir a UE, muitos diplomatas estão a considerar como opção transportar os cereais presos na Ucrânia através do Mar Báltico, como alternativa ao Mar Negro. Para além de aumentar significativamente o tempo de viagem e os custos associados à exportação, esta rota teria de incluir obrigatoriamente uma passagem por território bielorusso. A razão é, em grande parte, logística: os três países – Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia – estão interligados pela rede de comboios da antiga União Soviética, o que facilita as trocas comerciais. Pelo contrário, a rede de ferrovia ucraniana não é exatamente compatível com a do resto da Europa, tornando o processo de transporte de mercadorias mais oneroso.
O certo é que alguns dos líderes da UE ainda não estão convencidos sobre a validade desta proposta.
“Para levantar as sanções por razões de oportunidade para nós, que são diferentes das razões pelas quais impusemos as sanções, acho isto um pouco complicado”, disse o primeiro-ministro do Luxemburgo, Xavier Bettel. Já Krišjānis Kariņš, primeiro-ministro da Letónia, adverte que, mesmo que a Bielorrússia concorde exportar o trigo ucraniano, “a questão que se coloca é o que é que a Bielorrússia vai pedir em troca. E esse preço pode ser muito alto”.
A “coligação dos dispostos”
Gabrielius Landsbergis, ministro dos Negócios Estrangeiros da Lituânia, numa reunião com a chefe de diplomacia britânica, Liz Truss, dia 24 de maio, propôs uma solução diferente para libertar o trigo e os cereais ucranianos.
Para Landsbergis, a resposta europeia tem de passar por uma escolta naval, a que chamou “uma coligação dos dispostos”, que envolva as maiores potências navais da região e alguns dos países mais atingidos pela crise alimentar, nomeadamente os do Médio Oriente e Norte de África, e facilite a transportação marítima dos cereais bloqueados nos portos do sul da Ucrânia.
Liz Truss afirmou que o Reino Unido concordava com esta proposta “em teoria”, mas não quis comprometer o seu governo a nada em concreto, reiterando apenas que “o que temos de fazer é lidar com esta questão global da segurança alimentar” e que “o Reino Unido está a trabalhar numa solução urgente para tirar o trigo da Ucrânia”.
Tal como defende Ivo Daalder, ex-embaixador dos EUA na NATO, as declarações da diplomacia britânica refletem o reconhecimento que uma eventual “coligação dos dispostos” enfrentaria duas grandes barreiras: a Rússia e a Turquia.
O obstáculo mais óbvio prende-se na reação russa. Qualquer escolta naval no Mar Negro terá obrigatoriamente de contar com a colaboração “explícita ou, pelo menos, tácita” da Rússia, garante Daalder, o que será evidentemente difícil de assegurar. O Kremlin poderá ainda interpretar esta proposta como uma escalada no envolvimento da NATO nesta guerra, elevando o potencial de uma retaliação militar no terreno.
No caso da Turquia, o obstáculo é sobretudo geográfico. Tanto para alcançar, como para sair do Mar Negro, os navios precisariam de navegar por águas turcas e ultrapassar o estreito de Bósforo, perto de Istambul. O estreito foi bloqueado em fevereiro por Recep Tayyip Erdogan, Presidente da Turquia, de modo a limitar a passagem de navios russos para o Mar Negro, e, por isso, a aprovação do Presidente turco é também necessária para o sucesso de qualquer escolta naval apoiada pela NATO. Daalder não julga que será difícil assegurar o apoio de Erdogan, já que esta se trata de uma “missão humanitária” e que, agora, o seu país bloqueia o acesso ao Mar Negro apenas aos navios russos e ucranianos.
As propostas da UE
Na última terça-feira, dia 31 de maio, Ursula Von der Leyen adereçou o tópico da insegurança alimentar na conferência de imprensa que se seguiu à reunião extraordinária do Conselho Europeu, que, aliás, foi convocada em parte para encontrar uma solução precisamente para este problema.
Na declaração inicial, a presidente da Comissão Europeia elencou as medidas que a UE está a considerar para resolver a situação. Primeiro, realçou o imperativo de continuar o trabalho já feito no âmbito do programa de “vias de solidariedade” proposto inicialmente a 12 de maio pela Comissão. Nele, a UE propõe-se, essencialmente, a estabelecer um elo de ligação entre os operadores comerciais europeus e os vendedores agrícolas ucranianos, ajudando a suavizar os processos logísticos envolvidos com várias medidas que vão da abertura de novos canais ferroviários ou da mobilização de profissionais relevantes com vista a aumentar a velocidade das inspeções fronteiriças, até à criação de uma plataforma de logística que unirá vários Estados-membros com as empresas exportadoras da Ucrânia.
Segundo, Von der Leyen disse ser importante apoiar as populações mais vulneráveis em termos do acesso aos produtos alimentares, nomeadamente as residentes na África Subsariana. Para apoiar estes cidadãos, a Comissão Europeia prometeu a oferta de 2.5 mil milhões de euros, que irá desembolsar no âmbito do Fundo Europeu de Desenvolvimento. A longo-prazo, a UE pretende ainda aumentar a produção e resiliência alimentar de África e do Médio Oriente através da introdução de “novas tecnologias, agricultura de precisão e nanotecnologias”.
Terceiro, a declaração salientou que os países europeus têm de “intensificar a sua própria produção alimentar” e acrescentou que esta não é a altura ideal para uma guerra comercial. “Neste cenário, apelamos a todos os parceiros para não limitarem o comércio global de produtos agrícolas. Por conseguinte, qualquer tipo de restrições comerciais não pode absolutamente acontecer nos nossos Estados-membros, ou a nível global”.
Finalmente, a líder do executivo europeu, anunciou que vai visitar o Egito a meio de junho e aproveitou para alertar todos os presentes das dificuldades inerentes a todo o processo de combate à insegurança alimentar: “Não é trivial e, naturalmente, vai ser mais oneroso e dispendioso, mas é necessário recuperar este trigo”.