Quando, no dia 27 de fevereiro, o presidente russo Vladimir Putin ordenou que as forças nucleares russas fossem postas em “alerta alto” em resposta às “ações hostis dos países ocidentais” como “sanções ilegítimas” e “declarações agressivas”, segundo as suas próprias palavras, o mundo passou a recear ainda mais uma possível guerra nuclear e a tensão já sentida com o avanço russo sobre a Ucrânia cresceu. Algumas bombas de hoje são menos potentes em relação ao passado e o seu impacto mais restrito, mas até que ponto serão isso boas notícias?
O armamento agora conhecido não se compara a alguns testes nucleares feitos por países como os Estados Unidos ou a Rússia ou mesmo às bombas que, no passado, fizeram tremer a Terra. A sua potência é substancialmente mais reduzida do que a bomba lançada sobre Hiroshima durante a Segunda Guerra Mundial e nem sequer comparável a testes feitos com bombas de hidrogénio que provaram ser entre mil e três mil vezes mais potentes do que a bomba atómica de Hiroshima, que se estima que terá morto entre 50 mil a 100 mil pessoas.
A tecnologia nuclear é hoje uma área muito desenvolvida, mas o que parece acontecer é que quanto mais potentes as bombas são, maior o receio de as utilizar e de fomentar uma possível guerra nuclear, argumento que potenciou a criação de alguns tratados que procuram restringir o desenvolvimento deste tipo de armamento.
Segundo Nina Tannenwald, professora de relações internacionais no Departamento de Ciência Política da Universidade de Brown e autora do livro “O Tabu Nuclear: Os Estados Unidos e o Não Uso de Armamento Nuclear desde 1945”, vencedor do prémio Lepgold 2009 para o melhor livro em relações internacionais, existe um fator de “dissuasão”, como explica num artigo escrito na Scientific American.
Tannenwald explora a ideia de que uma nação com armas nucleares se pode sentir protegida de ataques externos por existir “a ameaça de retaliação esmagadora”, fator que considera ter sido, inclusive, uma das razões que impediu que a Guerra Fria evoluíse para uma guerra nuclear ou até tradicional.
Esta “dissuasão” pode estar agora novamente presente na guerra da Ucrânia. “As armas nucleares da Rússia impedem o Ocidente de intervir com forças militares convencionais para defender a Ucrânia”, explica Tannenwald. O receio de uma Terceira Guerra Mundial, agora muito mais à base do armamento nuclear, é uma variável que deve ser tida em conta na análise das decisões do ocidente face aos avanços de Putin.
O mesmo tem acontecido do outro lado do conflito, ou seja, “as armas nucleares da OTAN presumivelmente impedem a Rússia de expandir a guerra para países da OTAN”. Ainda assim, uma guerra nuclear hoje não seria uma guerra nuclear como a do passado: as armas são outras, o impacto é outro e a forma como esses fatores influenciam as decisões políticas pode ser um fator determinante.
Encurralado
A esfera internacional rege-se também pelas intenções subentendidas que são trocadas entre os seus diferentes atores, razão pela qual o armamento nuclear tem, muitas vezes, essa ação dissuasora. No passado, Putin já exaltou o seu arsenal nuclear como “um lembrete ao Ocidente (e talvez a si mesmo) de que a Rússia ainda é uma grande potência”, explica a professora da Universidade de Brown.
De facto, a Rússia é, atualmente, a detentora do “maior número de armas nucleares, com um total estimado de 6257 ogivas” nucleares, segundo dados fornecidos pelo World Population Review. Seguem-se os EUA, cujo arsenal de armas nucleares, quando combinado com o russo, representa 90% das ogivas nucleares de todo o mundo.
Um dos principais receios, já apontado por vários especialistas, reside na hipótese de que Putin se sinta encurralado e recorra ao armamento nuclear como última saída. “As hipóteses são baixas, mas crescentes”, disse Ulrich Kühn, especialista nuclear da Universidade de Hamburgo e do Carnegie Endowment for International Peace ao The New York Times. Contudo, “a guerra não está a correr bem para os russos”, observou, “e a pressão do Ocidente está a aumentar”. Razão pela qual “temos de considerar que isso se está a tornar uma possibilidade”, acrescenta ainda.
O tenente-general Scott D. Berrier, diretor da Agência de Inteligência de Defesa, admitiu em comunicado ao Comité de Serviços Armados da Câmara que existe uma crescente probabilidade de Moscovo “confiar cada vez mais na sua dissuasão nuclear como forma de sinalizar o Ocidente e projetar a sua força”.
O que pode acontecer é que os países se sintam tentados a recorrer às suas armas de menor alcance e potência evitando a destruição massiva que resulta de algumas das bombas mais potentes do seu arsenal, como explica Tannenwald. O resultado, no entanto, continuaria a ser o mesmo: uma guerra nuclear com a possibilidade de escalar.
Bombas menos potentes podem ser só o começo
Atualmente, as armas nucleares são capazes de libertar diferentes níveis de energia, variando na sua potência. “A versão mais recente da bomba nuclear B61 dos EUA pode liberar 0,3, 1,5, 10 ou 50 kilotoneladas de energia explosiva. Em comparação, a bomba de Hiroshima tinha cerca de 15 kilotoneladas”, explicou Tannenwald. O atual armamento pode, posto isto, ter uma potência tanto substancialmente mais reduzida como substancialmente superior à da bomba de Hiroshima.
No caso da bomba B61, desenvolvida especificamente para ter uma precisão mais elevada do que as outras bombas até então, a região de impacto é, exatamente por isso, bastante mais reduzida e controlada. Até então “a baixa precisão e os danos colaterais (das bombas) limitaram o seu uso potencial em planos militares em alguns cenários”, como explica a Federação de Cientistas Americanos, mas a tecnologia aplicada em bombas como, por exemplo, a B61, “parece pelo menos parcialmente destinada a fechar essa lacuna”.
Quando era candidato à presidência, Joseph R. Biden Jr. alertou que uma ogiva com potência mais reduzida seria “má ideia”, nomeadamente porque levaria os presidentes a estarem “mais inclinados” a usá-la.
A Rússia também é detentora de “armamento tático”, como explica Tannenwald, um tipo de armamento de impacto mais reduzido e geralmente com níveis mais controlados de energia utilizado para atingir alvos mais restritos. “A Rússia possui cerca de 2 mil armas nucleares táticas mantidas em instalações de armazenamento em todo o país, desenvolvidas para serem utilizadas contra tropas e instalações numa área pequena”, acrescenta a professora.
Mas um impacto mais controlado pode ser uma razão para se recorrer mais facilmente a uma bomba? “As armas nucleares táticas existem porque cada lado teme ser dissuadido de usar as suas grandes armas, capazes de destruir cidades, pelo risco de eles mesmos serem destruídos. Ao tornar as armas nucleares menores e o seu impacto mais preciso, mais facilmente se considera o seu uso”, explica Tannenwald. Ou seja, embora a ameaça seja menor, as armas tornam-se “mais tentadoras de usar primeiro, em vez de simplesmente em retaliação”.
Desde 2016 que a corrida a este tipo e armamento se tem intensificado e embora o impacto possa ser mais reduzido, não deixa de ser extremamente destrutivo. Dados do NUKEMAP, uma ferramenta interativa que se ocupa de determinar os danos causados por diferentes armas nucleares tendo em conta a sua potência, permitem perceber que mesmo metade da potência da bomba de Hiroshima causaria a morte de cerca de 10 mil pessoas e ferimentos a cerca de 16 mil se detonada em Lisboa.
Uma simulação desenvolvida por uma equipa de Princeton com recurso ao NUKEMAP mostra, inclusive, como seria uma guerra nuclear entre os EUA e a Rússia. O conflito resultaria em mais de 90 milhões de mortos e feridos só nas primeiras horas, sem contar com os efeitos colaterais da radiação nuclear. O começo da guerra começaria, segundo a simulação, por ser uma troca de ataques de armas táticas, escalando a partir daí.
Investir no “armamento tático”
A Rússia tem investido na modernização das suas forças nucleares, segundo o Relatório de Revisão Nuclear do Departamento de Defesa dos EUA de 2018, e nas suas armas menos destrutivas, inclusive. Este tipo de armamento desenvolveu, como no caso da bomba B61, a capacidade de utilizar diferentes potências.
Como refere o The New York Times, uma peça central do novo arsenal foi o Iskander-M, implantado pela primeira vez, segundo um artigo de 2021 do Boletim Atómico de Cientistas, em 2005 . Este tipo de arma pode disparar dois mísseis que viajam quase 500 quilómetros. Os mísseis podem transportar ogivas convencionais ou nucleares. A menor explosão nuclear deste tipo de mísseis corresponde a cerca de um terço da bomba de Hiroshima.
Em declarações perante o Comité de Serviços Armados da Câmara a 6 de fevereiro de 2018, o então secretário de Defesa James Mattis declarou: “Não acho que exista uma arma nuclear tática. Qualquer arma nuclear usada a qualquer momento é uma forma de divisão estratégica”. Até que ponto são então as armas com menos potência, menos poderosas?
O receio parece ser o de que qualquer ofensa nuclear mais reduzida tenha o potencial para rapidamente escalar, e embora isso seja “improvável, o risco não é zero”, garante Tannenwald. Para a professora, o fator de dissuasão é uma estratégia que existe, mas que considera importante lembrar que “pode falhar”.