No rescaldo pandémico, que ainda não dispensa o uso da máscara e outras medidas de segurança, a palavra “guerra” tem sido usada no contexto do combate ao vírus e, mais recentemente, aplicada aos ciberataques. Porém, o termo ganhou outros contornos, com a avalanche de notícias e imagens de bombardeamentos em tempo real, como se de um filme se tratasse, só que este é a sério.
“E agora, o que vai acontecer aquelas pessoas?” Como responder à pergunta inocente da criança que – ao deparar-se com as imagens de famílias inteiras ao frio, amontoadas em túneis e a chorar enquanto falam – pede que a ajudem a perceber o que está a passar-se e a lidar com aquilo que sente?
Dizer a verdade com clareza
Sim, há uma guerra e assusta-nos a todos. Aos adultos compete prepararem-se para ter uma conversa difícil e esclarecer os mais pequenos, sem banalizar o conflito, fugir ao assunto ou criar uma narrativa que não corresponde aos factos e pode até confundir.
Formada pela Children Watch Foundation e com mais de duas décadas de experiência em trauma infantil e em incidentes críticos, Alexandra Pereira, psicóloga na clínica Alterstatus, defende que “é preciso evitar expor constantemente os miúdos a informações – e principalmente, imagens – que os possam perturbar”.
Se uma guerra é difícil de entender para os adultos, sê-lo-á ainda mais para as crianças. “Elas ainda estão ligadas ao imaginário, onde existem super-heróis, cavaleiros, monstros e dragões”, refere a clínica.
Por estes motivos, faz sentido tocar no assunto quando surge, através de comentários e perguntas, mas sem sobrecarregar os miúdos: “Os pais, educadores, professores e figuras de referência devem desconstruir as mensagens que lhes chegam, de forma simples, sem alimentar medos, dúvidas ou ansiedades e ter um discurso que assegure proteção e segurança.”
Acolher e normalizar sentimentos
Entre as perguntas infantis que começaram a surgir na última semana, destacam-se estas: “O Putin é um assassino?”; “Vão atacar-nos com bombas?”; “Também vamos ficar sem casa e fugir para não morrer?” A prioridade, nota a psicóloga, é “normalizar o que a criança sente”, lembrando que aquilo que está a acontecer já se passou noutros momentos da nossa História. E se a questão for “também vamos combater?”, faz sentido dizer que “no nosso País serão poucos os pais que terão de ir à guerra”.
Mesmo que o conflito armado pareça distante, longe de casa, isso não impede que as crianças venham a sentir-se confusas, perturbadas, ansiosas, assustadas, preocupadas ou tristes. Em alguns casos, “podem surgir alterações de comportamento, sono, apetite, concentração e medo de ficarem sozinhas, assegurando, assim, que os pais não vão embora”. Daí que os adultos e /ou cuidadores devam estar atentos aos sinais de alerta, como sejam eventuais modificações inesperadas nas rotinas da escola ou do dia, e intervir a tempo.
Exercitar a empatia
Ainda que restringir o consumo excessivo de imagens seja benéfico, também para os adultos – diversificando e selecionando fontes de informação, como rádio, jornais e revistas – há temas incontornáveis que, mais cedo ou mais tarde, acabam por vir à tona. Basta pensar no caso das cinco crianças detidas e levadas para uma esquadra de Moscovo, com as mães, apenas por tentarem deixar flores na embaixada da Ucrânia, fazendo-se acompanhar de um cartaz que dizia “não à guerra”.
Diante do inexplicável, a estratégia mais sensata passa por dar uma explicação simples com a verdade dos factos. Algo como “os governos dos países nem sempre concordam com uma coisa que importa a todos e, às vezes, lutam e usam a violência, que é muito triste e não tem der assim”. Em certos casos, pode ser necessário transmitir uma mensagem tranquilizadora, acrescentando, por exemplo, que no nosso País as regras não são iguais às que vigoram naquele onde as crianças russas foram detidas (e, entretanto, libertadas).
Outra forma de lidar com situações de injustiça – testemunhadas através das redes sociais ou dos pares – e os efeitos da violência passa por abordar essas questões pelo prisma daquilo que podemos fazer por quem precisa. “Envolvê-los em comportamentos humanitários vai reduzir-lhes o medo e dar-lhes uma noção de compromisso e de responsabilidade, em vez de alimentar o ódio”, observa Alexandra Pereira.
Cuidar do bem-estar psicológico
A pensar nas angústias dos adultos, ainda a braços com os efeitos da pandemia (e alguns deles com memórias de guerra), perante um cenário sombrio, trágico e ameaçador em várias frentes, a Ordem dos Psicólogos (OPP) acaba de lançar A Guerra Afeta-nos a Todos: Gerir Emoções e Sentimentos Numa Situação de Crise, um documento onde se respondem a temas diversos, do stresse pós-traumático às armas nucleares e apresentam pistas para lidar com os sentimentos e pensamentos que podem emergir, por vezes de forma avassaladora. E não é caso para menos, tendo em conta os desenvolvimentos recentes do conflito armado e os confrontos junto à maior central nuclear da Europa, que assumiram contornos de terror.
Perante tamanha incerteza, imprevisibilidade e, até, abatimento, falar ajuda, mas importa fazer tudo para não agravar a situação à frente das crianças e adolescentes. Adequar a linguagem à idade e à personalidade de cada um e saber ouvir também faz parte do pacote de medidas de sobrevivência, pois os mais novos estão longe de ser imunes ao que se passa à sua volta me ao estado emocional daqueles que lhes são próximos.
Em Conversar sobre a guerra: perguntas e respostas para pais e cuidadores de crianças e jovens, a OPP pretende desmistificar ideias feitas – como aquela que pressupõe que as crianças se vão sentir ainda mais assustadas por estarem a conversar sobre guerra ou a ideia de que os adultos têm de ter todas as respostas – e fornecer orientações que facilitem a tarefa aos crescidos. Aqui pode encontrar indicações do tipo “escutar e descobrir o que a criança /jovem já sabe” ou “sublinhar que há esperança e muitas pessoas tentam ajudar”.
Da segurança à esperança
Embora não faça sentido, em idades precoces, forçar perguntas ou explicações, a disponibilidade, ou a presença, são fatores que sinalizam aos miúdos que podem perguntar ou expressar o que sentem e que é ok não estar bem mas, acima de tudo, há que zelar para que eles não se fechem. Ana Alexandra Carvalheira, psicóloga clínica e investigadora do ISPA – Instituto Universitário, adverte: “Em situações críticas, é fundamental que a criança não se isole e tenha espaço para colocar perguntas, em vez de temerem que os pais fiquem mais aflitos.”
A autora do livro Anda Daí, Medo – Permitir as Emoções (editora Climepsi) nota: “Só podemos lidar com uma coisa depois de olharmos para ela e de a reconhecermos”. Parece óbvio mas “o medo é como a morte, há muitos adultos que não o querem ver”. Quem diz o medo, diz a tristeza, a raiva e outras emoções contidas, que pedem para serem identificadas e expressas. De resto, só depois desta etapa cumprida se consegue avançar para as seguintes, como a noção de que os conflitos podem ser resolvidos de outra forma.
Na prática, é desejável que os adultos sejam capazes de validar o sofrimento e as angústias legítimas das crianças – “eu percebo que estejas com medo, estamos todos, mas isto vai-se resolver” – a fim de transmitir-lhes segurança.
Outro imperativo que se aplica a pequenos e grandes é o convívio às refeições, livre de notícias violentas: “Na hora de ir para a mesa, há que apagar a televisão e tomar a refeição em paz.”
Paradoxalmente, a guerra pode ser uma oportunidade de educar para a não violência e a compaixão e, ainda, para derrubar estereótipos, que podem estar à esquina. É o caso da criança que chega a casa e conta aos pais que na escola estavam a falar mal dos russos, ou que o aluno com familiares russos tinha sido insultado pelos colegas.
A guerra pode ser uma oportunidade de educar para a não violência e a compaixão
“Aqui, cabe aos pais e professores não permitir discursos de violência ou do tipo ‘os bons e os maus”’, adianta a psicoterapeuta.
As possibilidades de reformular são muitas. Ficam alguns exemplos: “Há pessoas que têm comportamentos maus, mas isso não faz com que todas elas sejam más.” “Há governantes que fazem coisas más, o que não quer dizer que o povo seja mau também.” Ou ainda: “Há famílias de soldados russos que estão contra a guerra.”
Mais uma vez, a verdade contada em palavras simples, a disponibilidade e aquilo que podemos fazer para um amanhã melhor.