“Os principais países da NATO, para alcançarem os seus próprios objetivos, apoiam nacionalistas extremistas e neonazis na Ucrânia. (…) Vamos avançar para a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia. (…) Caros camaradas! Os vossos pais, avós e bisavós não lutaram contra os nazis e defenderam a nossa pátria comum, para que os neonazis de hoje tomassem o poder na Ucrânia.”
No seu discurso desta madrugada a justificar a invasão da Ucrânia, Vladimir Putin referiu três vezes a questão neonazi no país, como um dos argumentos para atacar. São acusações propagadas pelo Kremlin e pelos media russos desde a revolução de 2014, que acabou por derrubar o líder ucraniano de então, Victor Yanukovytch, considerado por muitos o presidente-fantoche de Putin.
Como que antecipando a acusação, horas antes do discurso de guerra de Putin já o presidente da Ucrânia havia abordado o assunto, dirigindo-se diretamente ao povo russo. “Dizem-vos que somos nazis. Mas poderia um povo que perdeu mais de 8 milhões de vidas na batalha contra o nazismo apoiar o nazismo?” Volodymyr Zelenskiy fez então uma pausa, antes de continuar. “Como posso ser nazi? Digam isso ao meu avô, que passou por toda a guerra na infantaria do exército soviético e morreu como coronel numa Ucrânia independente.” Zelenskiy é judeu. Três dos seus tios-avôs morreram no Holocausto.
As raízes do problema
Afinal, a Ucrânia é ou não um país controlado por neonazis? Na origem da discussão está a Euromaidan, a revolução (apelidada de “golpe de Estado” pelo Kremlin) que em 2014 levou à fuga de Yanukovytch para a Rússia. A máquina de propaganda russa defende desde o início que os neonazis estiveram por detrás do derrube de Yanukovytch, com o apoio financeiro dos EUA. Essa teoria, veementemente refutada tanto pelas autoridades ucranianas como pelas americanas, foi adotada por muitos, incluindo o Partido Comunista Português.
É uma realidade que havia elementos nacionalistas e de extrema-direita presentes na Euromaidan. Mas eram uma minoria entre os manifestantes. A revolução, aliás, foi iniciada por um desejo de aproximação da União Europeia – milhares de jovens saíram para as ruas de Kiev a protestar contra o presidente, que havia prometido assinar um acordo de associação com a UE (o que significaria afastar-se um pouco mais da esfera de influência russa) e voltou atrás à última hora. Vyacheslav Likhachev, jornalista judeu e membro do conselho do Congresso Judeu Euro-Asiático, que cobriu a Euromaidan, estimou que os radicais nacionalistas não ultrapassavam 1% da multidão.
Entre esse 1%, no entanto, encontravam-se forças que acabariam por se tornar muito sonoras nos anos seguintes. Os mais conhecidos eram o partido de extrema-direita Svoboda (Liberdade) e as milícias Pravyi Sektor (Setor Direito, que mais tarde evoluiria para partido político) e Batalhão Azov.
É esta força paramilitar que tem estado debaixo das atenções. No final do ano da Euromaidan, foi integrada na Guarda Nacional da Ucrânia e, desde então, tem conseguido atrair jovens de extrema-direita de outros países, com uma retórica belicista e nacionalista eficaz nas redes sociais, o que tem levado alguns a apelidar a Ucrânia de “campo de treino de neonazis”. Calcula-se que 10% a 20% dos membros da milícia sejam neonazis.
Muitos apontam para o emblema usado pelo Batalhão Azov, que faz lembrar o símbolo das SS, semelhança que provavelmente não será inocente. Mas não é simbologia assumidamente nazi, nem poderia ser, já que, em 2015, o parlamento ucraniano proibiu a propaganda nazi. Nessa mesma votação, os deputados proibiram igualmente a propaganda comunista, o que se tornaria o primeiro passo para ilegalizar os três partidos comunistas, no final desse ano.
Esta medida drástica tem raízes históricas: o povo da Ucrânia foi durante décadas vítima das políticas soviéticas, desde deportações em massa ao Holodomor, a tragédia causada pelas políticas agrárias de Estaline que matou de fome cerca de quatro milhões de ucranianos em 1932-33 (vários países, incluindo a Ucrânia, consideram o Holodomor um genocídio).
Parlamento tem um deputado de extrema-direita
O crescente conflito com a Rússia, a propósito das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk (os rebeldes são apoiados pelo Kremlin), exacerbou o sentimento nacionalista, anti-Kremlin, o que é aproveitado pelo Batalhão Azov para angariar novos membros.
No entanto, esse sentimento não se traduz num aumento das forças políticas de extrema-direita no país. Nas últimas eleições legislativas, os partidos de extrema-direita (incluindo o Pravyi Sektor e o Svoboda) uniram-se nas listas nacionais, mas a coligação não conseguiu mais de 2,15% dos votos, ficando aquém do patamar mínimo de 5% para eleger deputados. O Svoboda, um partido populista e nacionalista (de certa forma, semelhante ao Chega, em Portugal), conseguiu um deputado através das listas regionais. É esse o único deputado de extrema-direita no parlamento ucraniano, entre 450 deputados.
A retórica de que o povo ucraniano é neonazi, ou que Kiev é controlado por neonazis, também esbarra no facto de a população ter eleito, em 2019, um presidente judeu com uns claríssimos 75% dos votos. O paradoxo de um povo alegadamente nazi votar em massa num judeu tem sido ignorado pelos propagandistas do Kremlin.