Nem Barack Obama, talentoso e capaz como é, conseguiria fazer tudo. Tal como todos os presidentes modernos, viu-se obrigado a delegar assuntos importantes nos seus secretários de gabinete, nos especialistas em Segurança Nacional, no chefe de gabinete e no vice-presidente. Mas isso exige confiança. E foi evidente desde o início para todos os que o conheciam que o Presidente não confiava facilmente nos outros. Ele “tem pouca bagagem”, dizia dele um membro do seu staff.
A improvável ascensão de Obama na política – em 2003 era um legislador estatal pouco conhecido do Sul de Chicago, e Presidente dos Estados Unidos da América cinco anos depois – baseou-se, em parte, no facto de ele ter pouca bagagem. Barack Obama parecia não pertencer a ninguém, exceto a Michelle e às filhas – nada de doadores à campanha, de líderes de sindicatos, nem de grupos de direitos civis nem mesmo de amigos. Creio que os eleitores intuíram que ele não permitiria que dívidas políticas, identidade racial, ligações pessoais ou a emoção toldassem o seu discernimento nas grandes decisões. Acreditavam que ele seria honesto e frontal.
O Presidente tinha a
vantagem acrescida de uma autossuficiência quase absoluta; ao
contrário da maior parte das pessoas que conheço, a sua ideia de
mérito parecia ser totalmente independente do que pensavam dele.
Quase nunca ficava perturbado com descortesias e críticas injustas
que o via sofrer. Por vezes ficava tão irritado com o modo como o
desrespeitavam – o Presidente, até na Sala Oval – que tinha
vontade de lhes dar um sermão. Barack percebia e dizia-me para me
acalmar.
– Joe, tem de aceitar o bom e o mau.
Eu sabia que ele era capaz de se defender quando era impelido, e normalmente eu deixava passar, mas havia alturas em que não conseguia controlar-me.
– Não fale assim com o Presidente – rosnei a uma antiga colega democrata do Senado que disse que, embora concordasse com o Presidente, não gostava dele. – Não fale assim do meu amigo – adverti. – Vamos ter um problema.
Mesmo que ficasse frustrado com o Presidente uma ou outra vez. Ele nunca me deu razões para duvidar do seu parecer estratégico em oito anos de observação próxima. E raramente havia discordância entre nós em termos de políticas. Mas por vezes achava que ele era demasiado cauteloso. “Confie nos seus instintos, senhor Presidente”, dizia-lhe. Em grandes decisões que tinham de ser tomadas depressa, aprendera eu ao longo dos anos, um Presidente nunca teria mais de 70 por cento, sensivelmente, da informação de que precisava. Assim, depois de se consultar os especialistas, as estatísticas, os dados e os Serviços Secretos, há que estar disposto a confiar no instinto.
Houve momentos em que discordámos, mas, quando ele ficava aborrecido comigo, eu tomava conhecimento disso em privado, não pelos telejornais. Tudo somado, agradecia o facto de ele ser sincero comigo. E nas poucas vezes em que fiquei aborrecido com ele, fui sincero e direto. Mas é assim que os amigos se tratam. São francos. Penso que essas ocasiões até aprofundaram a nossa relação.
Sentia que ele me tratava como igual, na medida em que um Presidente o pode fazer. Nunca me dava uma ordem.
– Eu não controlo
a agenda do Joe – dizia ao staff –, e o Joe não controla a
minha.
O mais importante é que ele honrou o único pedido que
eu lhe fizera antes de aceitar a sua proposta para ser
vice-presidente. Obama supostamente terá dito, a brincar, à sua
equipa de campanha que me pedira: “Quero os seus conselhos, Joe.
Quero-os em doses de dez minutos, não de sessenta.” Mas cumpriu a
sua parte do acordo até ao fim. Convidava-me a ser a última pessoa
na sala a aconselhá-lo antes de tomar qualquer decisão importante.
Dava-lhe os conselhos e o discernimento que podia, mas também tentava encorajá-lo. As preocupações presidenciais pesam bastante sobre a pessoa que ocupa o cargo, e houve momentos em que Barack se foi abaixo. Ficava mais calado, mais pensativo e mais reservado. Adquiria um olhar distante. Quando o via isolar-se assim, fazia questão de ficar por perto após a reunião seguinte na Sala Oval. Esperava que todos saíssem e fechava a porta.
– Lembre-se, senhor Presidente – dizia-lhe quando ficávamos sozinhos –, o país nunca pode ser mais esperançoso do que o seu Presidente. Não faça de mim a “esperança”. Tem de se levantar e ser “esperança”. Passávamos tanto tempo juntos que desenvolvemos deixas não verbais e um humor próprio para aliviar a pressão. Às vezes pensávamos alto: Porque terá o senador X feito isto? Porque terá o congressista Y feito aquilo? Era tão gratuito, ou desnecessário, ou indelicado. Porquê? Eu falava-lhe do meu tio Ed Finnegan, que tinha uma resposta para isto que não era propriamente específica, mas sempre convincente.
– Sabes, Joe – dizia o tio Ed –, ninguém dá valor aos rabos dos cavalos. – E a máxima do tio Ed tornou-se uma dica fundamental entre nós, uma piada privada. Quando um chefe de Estado estrangeiro visitava a Casa Branca, entrava, todo empertigado, na Sala Oval e quase a primeira coisa que lhe saía da boca era: “Dizem que sou forte, Barack, e que você é fraco. Eu respondo-lhes: ‘Não, não. Você também é forte.’” Nós olhávamos um para o outro, e o Presidente, calmo como sempre, virava-se para mim, erguia uma sobrancelha e dizia: “Tio Ed.”
O Presidente atribuiu-me tarefas específicas desde o início e não me controlava. Numa reunião da equipa de Política Externa e Segurança Nacional, poucas semanas depois de tomarmos posse, quando o staff afirmou estar preparado para apresentar um plano para cumprir os compromissos da campanha relativos ao Iraque, o Presidente voltou-se para o grupo e disse:
– O Joe vai tratar do Iraque. Ele conhece o país e os intervenientes.
Fez-me xerife da nossa primeira lei aprovada menos de um mês após a tomada de posse: o American Recovery and Reinvestment Act de 2009. Encarregou-me de angariar os votos de que precisávamos no Congresso e de me certificar de que os 787 mil milhões de dólares atribuídos ao pacote de estímulo seriam gastos depressa e bem, evitando o desperdício e a fraude que sempre andavam lado a lado com as contas de grandes obras públicas. Quando as negociações entre o Presidente e o porta-voz da Câmara dos Representantes Republicanos – ou entre líderes do Congresso – se quebraram irreparavelmente, o Presidente enviou-me ao Congresso para trabalhar num acordo com os meus antigos colegas e me certificar de que teríamos os votos necessários para fazer aprovar a lei. Quando Vladimir Putin lançou uma campanha para desestabilizar a Ucrânia, o Presidente entregou-me o dossiê da Ucrânia. Quando estalou uma crise, depois de crianças não acompanhadas do Triângulo Norte da América Central começarem a atravessar em grande número a nossa fronteira, ele voltou-se para mim e disse:
– Joe, tem de resolver isto.
Pouco depois, o Presidente pediu-me que assumisse a missão de restabelecer as nossas tremidas relações com países de todas as Américas: o Triângulo Norte, Brasil, Caraíbas, todos.
– O Joe consegue fazer isto – brincou. – É bom a fazer novos amigos. E está tudo no mesmo fuso horário. – Não referi que a maior parte dos países não estava no mesmo fuso horário. Simplesmente aceitei a nova missão. Ele sabia que não iria desistir.
O Presidente nunca me disse diretamente, mas numa longa conversa que tivemos a caminho de um evento em Chicago, perto do fim do primeiro mandato, Michelle Obama disse-me:
– Ele confia em si, Joe.
A confiança era bilateral, e aos poucos tornou-se mais do que profissional. Senti que podia contar com ele. Barack foi a primeira pessoa fora da família a saber da doença do Beau. Em 2013, fomos a um evento político juntos em Scranton, Pensilvânia, a cidade onde nasci, um dia depois da dolorosa consulta no M.D. Anderson Cancer Center em Houston. O comício atraiu milhares de pessoas, o que permitiu ao Presidente dizer-me coisas que nunca poderia afirmar em privado.
– Hoje é um dia especial para mim e para o Joe – disse à multidão –, porque há cinco anos, no dia 23 de agosto de 2008, anunciei, em Springfield, Illinois, o estado onde nasci, que Joe Biden seria o meu candidato a vice-presidente. E essa foi a melhor decisão que tomei, politicamente, porque adoro este homem… Por isso, só queria que todos soubessem que sou um sortudo por ter o Joe não apenas como vice-presidente mas, mais importante, como amigo. Adoramos a sua família.
Nos 16 meses passados desde a semana em que recebemos o diagnóstico, tive o cuidado de não revelar o verdadeiro desespero da situação do Beau a ninguém fora da família, nem sequer ao Presidente. Barack suspeitava que o Beau estivesse a sofrer, mas nunca me pressionou para lhe contar pormenores. Eu não tocava no assunto com frequência. Mas, em meados de 2014, numa altura em que a sua afasia piorava, o Beau receava que a doença pudesse afetar as suas capacidades cognitivas. E, conhecendo-o como conhecíamos, eu e o Hunt receávamos que ele se sentisse obrigado pela honra a demitir-se antes de o seu mandato de procurador-geral terminar. O único rendimento que ele tinha era o salário. Disse ao Presidente o que se passava num dos nossos almoços privados.
– O que vão fazer? – perguntou.
– Bom, ele não tem muito dinheiro, mas estamos bem – respondi. — Eu e a Jill podemos fazer uma segunda hipoteca da nossa casa de Wilmington, se for preciso. Vai correr tudo bem.
– Não faça isso – disse Barack, com uma força que me surpreendeu. Percebi que estava a ficar emocionado. Então, levantou-se da cadeira, colocou-se atrás de mim e pousou-me as mãos nos ombros. – Empresto-lhe o dinheiro. Eu tenho. Pode pagar-me quando quiser.
Passámos a primeira parte do almoço de 5 de janeiro de 2015 a rever alguns dos grandes dossiês que tinha em mãos: Iraque, Ucrânia e América Central. Tinham-se tornado as três prioridades da Política Externa da nossa Administração. O Presidente anunciara pouco tempo antes a sua abrangente estratégia de contraterrorismo a longo prazo para enfraquecer e destruir o ISIS no Iraque, na Síria e por todo o Médio Oriente. Trabalhava com o novo primeiro-ministro do Iraque para se consolidar o seu governo de coligação e para lhe dar os recursos necessários para pôr fim a alguns dos recentes avanços do ISIS naquele país; e estava a tentar convencer o Presidente e o primeiro-ministro da Turquia a serem mais ativos na luta contra o ISIS na Síria. O meu staff preparava a viagem de início de fevereiro à Conferência de Segurança de Munique anual, em que teria de pressionar os aliados da NATO a darem mais apoio à Ucrânia na sua luta contra Putin. Poucas semanas depois, iria à Guatemala para uma cimeira de dois dias com os líderes dos países do Triângulo Norte. A missão foi persuadi-los de que tinham de fazer as difíceis escolhas políticas que convenceriam o Congresso dos Estados Unidos da América a financiar a sua Aliança para a Prosperidade.
A discussão desviou-se, como sempre, para tópicos mais pessoais à medida que o almoço chegava ao fim. Barack continuava preocupado com a questão da candidatura a Presidente. Subtilmente andara a ponderar os lados da questão, por várias razões. Primeiro, reconhecia o crescente apetite dos media pelo drama da política em detrimento da política real. No momento em que anunciasse que me iria candidatar à nomeação, eu e Barack sabíamos disso, a cobertura na Ala Oeste transferir-se-ia da sua agenda para as minhas hipóteses. Estava convencido de que ele concluíra que Hillary Clinton seria quase de certeza nomeada, o que era bom para ele. Ele considerava-a inteligente, preparada, e era apoiada pela fenomenal máquina de campanha que os Clinton tinham passado os últimos 40 anos a construir. O Presidente mostrara-se sensato quando pressionado pelos jornalistas a escolher entre eu e Hillary. “Quer Hillary quer Joe seriam presidentes notáveis, e ambos possuem as qualidades necessárias para serem presidentes notáveis”, afirmara. “E têm diferentes pontos fortes, mas ambos seriam notáveis.” Mas eu sabia que vários antigos membros da equipa do Presidente, e até alguns dos atuais, apostavam em Hillary.
Em janeiro de 2015, o Presidente estava convencido de que eu não conseguiria ganhar a Hillary, e receava que uma longa batalha nas primárias dividisse o partido e deixasse o nomeado democrata vulnerável nas eleições gerais. Acima de tudo, não queria ver um republicano na Casa Branca, em 2017. Percebi e nunca o contestei. Estava em causa o legado de Barack, e uma porção significativa desse legado ainda não se encontrava consolidada. Não acreditava que fosse possível uma nova Administração republicana revogar o marcante programa de saúde de Barack, o Violence Against Women Act, ou as vitórias conquistadas pela comunidade LGBT. Mas ambos sabíamos que se um republicano vencesse a presidência, poderia desfazer o legado de Barack na Política Externa.
Nenhum de nós queria isso. Creio que o Presidente também receava que se me candidatasse e perdesse, isso pudesse diminuir o meu legado. E, finalmente, penso que se questionava quanto à capacidade de fazer o meu trabalho, enquanto vice-presidente, e concorrer à nomeação, enquanto me via a braços com a batalha de Beau com o cancro no cérebro.
Quando Barack abordou o assunto ao almoço, fê-lo com um toque diplomático.
– Se pudesse escolher alguém para ser Presidente nos próximos oito anos, seria o Joe – disse-me. – Temos os mesmos valores. A mesma visão. Os mesmos objetivos. O Joe conquistou o direito de tomar uma decisão com base no que pensa sobre a corrida.
Disse-lhe que, depois de o ver fazer isso durante os anteriores seis anos, não tinha qualquer vontade de viver na Casa Branca.
– É a coisa mais confinada do mundo – afirmou o Presidente, mas não se deteve. Estava quase num devaneio sobre o seu futuro. Disse-me que as férias de Natal lhe tinham permitido, pela primeira vez, imaginar como seriam os 25 anos seguintes. – Acho que posso fazer mais do que podia enquanto Presidente – afirmou. Disse que sabia como queria passar o resto da sua vida. – Joe, já pensou nisso? Como quer passar o resto da sua vida?
Como quero passar o resto da minha vida? Era uma pergunta à qual me era muito difícil responder. Quem me dera ter dito: “Claro, também posso cavalgar em direção ao pôr do Sol e ser feliz e contente.” Mas para mim não era assim tão simples. Em parte, devido ao meu orgulho: se decidisse não me candidatar, tinha de ser capaz de me olhar ao espelho e de saber que não era por ter medo de perder ou de assumir o cargo. Não seria capaz de viver por me afastar assim. E depois, a questão da candidatura a Presidente estava toda enredada no Beau, em ter um propósito e esperança. Desistir da corrida presidencial seria como dizer que desistíamos do Beau.
– Não podemos desistir de ter esperança, Joe – lembrava-me a Jill. – Não podemos desistir de ter esperança.
A simples possibilidade de uma campanha presidencial, que o Beau desejava, dava-nos propósito e esperança, uma forma de desafiar o destino.
Como quero passar o resto da minha vida? Barack Obama era meu amigo, mas fui incapaz de me confessar totalmente a ele. De uma coisa estava certo, e expliquei-lhe: tinha duas opções. Podia viver uns bons dez anos com a minha família, a construir as bases de uma segurança financeira para eles e passando mais tempo com eles, ou podia viver dez anos a tentar ajudar a mudar o país e o mundo para melhor.
– Se o segundo estiver ao meu alcance – disse-lhe –, creio que é assim que devo passar o resto da minha vida.