É um caso que ainda só vai no início. Agosto não ia a meio quando Donald Trump confirmou que o FBI tinha estado a realizar buscas no seu resort em Mar-a-Lago, Palm Beach, na Florida, com a sua mansão a ser “cercada, atacada e ocupada por um grande número de agentes”, assim descreveu, acrescentando estar a ser “vítima de perseguição”. “Depois de trabalhar e cooperar com as agências governamentais relevantes, esta rusga sem aviso prévio à minha casa não era necessária nem apropriada”, disse ainda, em comunicado. Em janeiro, os Arquivos Nacionais já tinham recuperado da residência do antigo presidente 15 caixas com documentos que foram depois marcados como classificados.
Vários membros do partido republicano, incluindo o próprio Donald Trump, acusaram ainda o FBI de estar a aproveitar esta investigação para tentar travar uma possível recandidatura de Trump às eleições presidenciais de 2024 e, uns dias mais tarde, o ex-presidente voltou a atacar a agência na rede social Truth Social, acusando-a de lhe ter confiscado indevidamente documentos pessoais. “Nas buscas do FBI em Mar-a-Lago, roubaram os meus três passaportes (um expirado), juntamente com tudo o resto. Trata-se de um ataque a um adversário político num nível nunca antes visto no nosso país. Terceiro Mundo”, escreveu.
Na altura, o jornal New York Times avançou que as buscas, que foram realizadas sobretudo nos escritórios e aposentos pessoais do antigo presidente dos EUA, tinham como objetivo encontrar caixas com documentos confidenciais com informação sensível que o mesmo teria levado de forma ilegal para a sua residência de Mar-a-Lago – já que esta não seria uma localização autorizada para estes documentos – assim que deixou a Casa Branca.
Em maio, já teria sido realizada uma revisão preliminar de documentos, depois de um advogado de Donald Trump ter aceitado uma intimação do tribunal para entregar ficheiros levados da Casa Branca, tendo sido encontrados 184 documentos únicos marcados como confidenciais, secretos ou altamente secretos. O advogado terá garantido às autoridades que não havia registo de mais documentos classificados na mansão de Trump. Foi realizado, então, um pedido de mandado de busca, que aconteceu a 8 de agosto, por um agente que concluiu que os mesmos continham “informação sobre Defesa nacional”, escreve a CNN.
Depois de vários pedidos dos media norte-americanos para que o processo fosse transparente e fossem divulgados os ficheiros relacionados com as buscas, o Departamento de Justiça dos EUA avançou com um pedido de 13 páginas a um juiz no Tribunal da Florida para que não fosse divulgado o documento utilizado pelo FBI que justificasse as buscas na residência principal de Donald Trump, uma vez que esse ato poderia comprometer “os próximos passos da investigação”, assim como “outras investigações de alto nível”.
Contudo, o tribunal acabou por decidir divulgar o documento com 38 páginas, apesar de não terem sido reveladas algumas informações confidenciais, onde se ficou a saber que o FBI suspeitava, de facto, que Trump teria levado para o seu resort de Mar-a-Lago informações altamente secretas assim que saiu da Casa Branca, incluindo “alguns dos segredos mais delicados da América”. Além disso, a agência norte-americana também considerou que havia uma forte probabilidade de encontrar “provas” do crime de obstrução à justiça.
Já esta quarta-feira, um documento judicial entregue pelo Departamento de Justiça dos EUA a um tribunal da Florida revelou o motivo para ter sido realizado o pedido de mandado de busca na mansão de Mar-a-Lago: os advogados de Donald Trump terão mentido ao FBI sobre a quantidade e a localização dos documentos procurados, referindo que os documentos guardados em Mar-a-Lago tinham sido todos devolvidos durante a inspeção dos Arquivos Nacionais, em junho.
O documento explica que, já antes da rusga, no início de agosto, o FBI terá encontrado “múltiplas fontes de prova” que demonstravam que os documentos classificados, com informações sobre espiões, escutas ou informações que não podiam ser partilhados, permaneciam em Mar-a-Lago. “O Governo também acumulou provas de que os registos governamentais terão sido ocultados e removidos… e que provavelmente foram feitos esforços para obstruir a investigação do Governo”, descreve ainda o documento.
Na semana passada, Trump pediu que uma entidade independente examinasse os documentos apreendidos durante as buscas do FBI, sendo que essa figura neutra poderia bloquear o acesso dos investigadores aos documentos, caso aceitasse as acusações do ex-presidente (os argumentos para a existência desta figura moderadora foram apresentados à juíza distrital, Aileen Cannon, esta quinta-feira).
Contudo, o documento do Departamento de Justiça refere que não deve ser nomeado nenhum “procurador especial” que examine os documentos de forma independente, já que os mesmos não pertencem a Trump, e “prejudicaria significativamente interesses governamentais importantes, incluindo interesses de segurança nacional”.
Uma “lenta e constante erosão do respeito pelos segredos de Estado”. O que pode acontecer a Trump?
De acordo com o professor e jornalista Ted Gup, a “responsabilidade final de guardar segredos está nas mãos de um presidente”. “Ele, acima de todos os outros, carrega esse fardo e dá o exemplo que os outros devem seguir”, escreve, na CNN, referindo que a “falha em honrar essa confiança provoca arrepios”.
Gup explica ainda que este tipo de documentos, “caso caiam nas mãos erradas, podem pôr em risco não apenas os agentes norte-americanos, mas também personalidades ou instituições estrangeiras que lhes fornecem informações”, acrescentando que Trump pode ter traído “os que colocam as suas vidas em perigo”, abrindo portas “a um ambiente de segurança ainda mais permissivo”. Trump é “apenas a expressão máxima de uma lenta e constante erosão do respeito pelos segredos de Estado”, afirma ainda o jornalista.
Uma lei do Supremo Tribunal dos EUA afirma que pessoas com altos cargos públicos têm a obrigação de preservar e guardar documentos oficiais e que quem “esconder, mutilar, obliterar, falsificar ou destruir, de forma deliberada” algum destes documentos pode ser multado e condenado a uma pena de prisão até três anos. Além disso, deve “renunciar ao seu cargo”, ficando “desqualificado de voltar a exercer qualquer função em representação dos EUA”.
Contudo, segundo uma decisão do Supremo Tribunal norte-americano, fixada em 1969, mesmo que Donald Trump seja condenado no decorrer deste caso, não é possível impedir o antigo presidente de se recandidatar à Casa Branca em 2024. Isto porque, de acordo com a Constituição, mesmo que a pessoa tenha várias condenações, se for um cidadão nascido nos EUA, com pelo menos 35 anos, e caso tenha vivido no país pelo menos durante 14 anos, não pode ser impedido de se candidatar à Casa Branca. Portanto, não cabe ao Senado ou à Câmara dos Representantes definir ou acrescentar quaisquer requisitos aos candidatos à presidência dos EUA.
No passado, já aconteceu um caso de um candidato à Casa Branca que, no preciso momento em que entrou na corrida presidencial, se encontrava atrás das grades. Em 1920, Eugene Debs estava a cumprir uma pena de 10 anos de prisão quando se candidatou candidatou pelo Partido Socialista – Debs candidatou-se cinco vezes a presidente dos EUA.