“Sempre me trataram como outro, sempre a dizerem para voltar para África. Eu sou daqui. O meu pai e o meu avô são suíços”, conta ao jornal The Guardian, o primeiro órgão de comunicação com quem falou sem ter algemas. Brian Keller nasceu a 21 de setembro de 1995, em Paris, mas aos três anos mudou-se para a Suíça, mais especificamente para Zurique. Foi nessa altura que lhe foram diagnosticados hiperatividade e transtorno do défice de atenção, tendo-lhe sido prometido acompanhamento especial, algo que nunca aconteceu.
Aos dez anos, em 2005, teve o seu primeiro confronto com as autoridades policiais, quando foi acusado de atear fogo. A consequência? Ficar fechado durante quase um mês numa instituição – anos mais tarde, esta acusação acabou por se revelar falsa.
Desde esse momento, Brian esteve sempre envolvido em delitos – mais de 30 – com consequências pesadas, o que o levou a ficar à responsabilidade do Ministério Público de Zurique, até 2011.
Desde a sua infância que Brian saltava de prisão em prisão, entre instituições para jovens e instalações psiquiátricas. Aos 12 anos foi colocado na solitária, durante três anos seguidos, o que significa que durante esse tempo não teve contacto com nenhum outro recluso, estando sempre preso num pequeno cubículo. Quando saiu, não estava bem, e pouco tempo depois, já com 15 anos, foi condenado ter esfaqueado um rapaz mais velho.
Recordando esse tempo, Brian relata que várias vezes o amarram a macas, o mantiveram isolado, o fizeram dormir em chão frio e a tomar medicamentos à força. O caso mais específico surge quando se tentou suicidar pela segunda vez, enquanto estava em prisão preventiva, em 2011: na altura levaram-no para uma unidade psiquiátrica onde esteve durante quase duas semanas e onde, segundo as Nações Unidas, foi forçado a tomar sedativos.
A vida de Brian mudou quando um advogado chamado Hansueli Gürber decidiu pegar no seu processo, criando um programa de reabilitação, um Sondersetting ou “cenário especial” para o jovem, que tinha como objetivo dar-lhe uma segunda oportunidade. A intervenção resultou e o rapaz viveu no apartamento que lhe foi dado, integrado na sociedade, mais de um ano, sem problemas. Durante este período de tempo era vigiado regularmente, tinha reuniões com as autoridades, era acompanhado por uma psicóloga e praticava boxe. Via regularmente a família, os amigos e era considerado um caso de reinserção de sucesso.
Brian estava bem até ao dia em que durante um documentário, em agosto de 2013, Gürber mencionou que o Sondersetting do jovem custava aos contribuintes cerca de 29 mil francos – aproximadamente o mesmo em euros. No dia seguinte, a reportagem “Social Delusion”, publicada pelo jornal Blick, atacava Gürber, e identificava Brian com o pseudónimo de “Carlos”.
Depois disso, a sua situação desmoronou, com os políticos suíços a criticar o “luxo” do Sondersetting. Gürber despediu-se e Keller voltou para a solitária. “Vi na TV as pessoas todas a dizerem que eu era mau e, de repente, estava de volta à prisão”, conta. “Era um sonho estar com minha família, treinar, aprender, conhecer outras pessoas”, acrescenta. Segundo o tribunal, prenderam de novo Brian “para sua própria segurança”. “É inacreditável o que a imprensa fez”, revela o pai do prisioneiro. “Eles podiam ter investigado o assunto corretamente. Todas as mentiras que foram escritas sobre Brian deixaram-me louco.”
Só em 2014, quase passado um ano, é que se fez algo pela situação de Brian: o tribunal federal da Suíça considerou ilegal o facto de o rapaz ter voltado para o isolamento e decidiu libertá-lo. Mas “metade da Suíça já conhecia o Brian e ele estava com medo. Ele temia ser apanhado”, refere o pai.
Pouco tempo depois, Brian voltou a ser preso depois de ter partido a mandíbula a um membro do grupo de boxe durante uma luta. A sua cela não tinha cadeira, cama ou colchão, e não tinha permissão para tomar banho, conta. O rapaz afirma que os guardas o amarravam nos tornozelos e cancelavam regularmente sua caminhada pelo pátio da prisão, assim como as visitas familiares.
A situação de Brian foi avaliada e um auditor do Ministério da Justiça da Suíça concluiu que as medidas impostas a Keller eram “degradantes e discriminatórias”, tendo sido transferido para outra prisão perto de Zurique.
Em junho de 2017, pouco tempo antes de poder sair em liberdade, os guardas da prisão informaram Brian que ele seria transferido para a solitária para evitar um ataque por parte de outro preso. Sem pensar, começou uma luta e voltou a ser acusado, desta vez por tentativa de lesão corporal grave.
No ano a seguir, transferiram Brian para uma cela especialmente construída para ele, em Pöschwies, a um custo muito maior do que o plano de reabilitação feito para ele. “Foram cometidos vários erros”, diz Jerome Endrass, chefe de investigação e desenvolvimento do departamento de justiça de Zurique. “Mas ele é um indivíduo difícil, acho que isso é bastante objetivo”.
Brian não tinha voz e, por isso, procurou-a noutro local: trocou cartas com um grupo de artistas suíços – os #BigDreams -, que as publicaram numa conta do Instagram que criaram, intitulada My Name is Brian. As cartas eram “finalmente uma maneira de eu falar”, admite Brian.
Keller passou três anos na solitária, algo que é uma violação da chamada Regra Mandela da ONU, que proíbe o isolamento durante mais de 15 dias seguidos. Os psicólogos garantem que as revoltas e as explosões na prisão são resultado de colapso mental: “Ele certamente ficou traumatizado quando saiu da prisão pela primeira vez, quando tinha 11 anos”, diz Nils Melzer, especialista da ONU sobre tortura. “E traumatizaram-no continuamente.”
Melzer interveio pela primeira vez no caso de Keller em maio de 2021, tendo, um mês depois, acusado a Suíça de violar a convenção de tortura da ONU e exigiu o fim imediato do isolamento do prisioneiro. “Eu tinha os meus preconceitos, através da imprensa, de que este homem era o Hannibal Lecter [uma personagem assassino em série que era canibal] da Suíça”, confessa ao Guardian. “Ele foi pintado como um criminoso horrível e violento que não se pode libertar na sociedade porque ele simplesmente ataca ou mata pessoas aleatoriamente.”
Mas acrescenta: “o estado também contribuiu para isso: pegou este preso e exacerbou a situação da maneira excessivamente repressiva… Porque não tiram o homem da solitária? Isso está claramente além do aceitável de acordo com os padrões internacionais.”
A Suíça não se conformou com esta acusação e, pela voz do chefe de investigação e desenvolvimento do departamento de justiça de Zurique, Fehr emitiu um comunicado à imprensa no qual pedia a Melzer para visitar Brian pessoalmente. “Geralmente é uma boa ideia obter uma impressão em primeira mão das circunstâncias que estão a ser relatadas”, diz o comunicado. No entanto, Melzer nunca aceitou o convite.
Enquanto isso, os jornalistas continuaram a retratar Keller como uma causa perdida. “Em 2013, o departamento de justiça de Zurique reagiu em pânico”, escreveu Alex Baur, da Weltwoche, em dezembro do ano passado. “Prenderam o jovem de 18 anos. Injustamente, como concluiu o Supremo Tribunal Federal, após vários meses de deliberação. Desde então, Carlos usou essa injustiça como justificação para uma aventura louca contra a justiça e o sistema penal”, continuou Baur. “Mas o homem é e continua a ser perigoso.”
A Suíça é conhecida pela sua diversidade de associações defensoras dos direitos humanos e do multiculturalismo. No entanto, alguns críticos acreditam que o caso de Keller não é apenas uma exceção: “Vemos a vários níveis – os promotores, os professores, os juízes, o pessoal da prisão – que [Keller] é visto não como uma criança ou um jovem, ou mesmo como cidadão da Suíça, mas como um monstro”, analisa Dominique Day, presidente do grupo de trabalho da ONU de especialistas em pessoas de ascendência africana.
Day visitou Keller na prisão em janeiro. “Mostrem-me pessoas brancas que já tiveram esse tratamento”, perguntou Day, retoricamente. “Obviamente nenhuma resposta… Esta é a cultura de negação que vemos muito na Europa”.
“Se ele fosse loiro e de olhos azuis, não consigo imaginar”, diz Philip Stolkin, advogado de direitos humanos de Zurique que trabalha no caso de Keller desde o ano passado. “Mesmo que ele não seja a pessoa mais simpática, como alega o sistema, não se deve colocá-lo na solitária durante três anos ininterruptos… Ele esteve em isolamento repetidamente durante os últimos 10 anos. Isso é claramente contrário aos direitos humanos”, analisa.
A Constituição da Suíça é contra os tipos de tratamentos que Keller sofreu. No entanto, os advogados costumam levar este tipo de casos diretamente ao tribunal europeu de direitos humanos. “Respeitamos as convenções internacionais, mas não a nossa própria Constituição”, diz Stolkin. “Então, se algo estiver errado, vamos diretos para Estrasburgo. A Suíça tem um grande problema.”
Brigitte Hürlimann, que escreveu diversas vezes sobre o caso de Keller para a revista online Republik, diz que: “Não é tão simples quanto racismo ou xenofobia. Há muitas camadas”, analisa. “Certamente faz parte do acordo que ele saia novamente. Mas qual é a ideia? Para sempre na prisão? Qual é o objetivo? E as pessoas esquecem-se dessa parte. Ninguém quer um ex-criminoso. Ninguém quer dar-lhe um emprego, ninguém lhe quer alugar um quarto. É tão difícil.”
Brian está, desde janeiro, numa prisão em Zurique, com um nível de segurança normal, e sua saúde melhorou – “simplesmente porque o tratam como um ser humano”, diz Stolkin. Agora aprende a mexer em computadores, e treina de vez enquanto. “É ótimo que ele possa treinar. O deporto é tão importante para ele”, diz o seu tutor.
No entanto, Brian diz que está a “desperdiçar os melhores anos” da sua vida ali. “Tenho muita energia e quero fazer muito”. Sobre as marcas de todos estes anos, e sobre as questões legais, Brian diz que sente “muita dor”. “Eu só quero uma vida de volta.”