Neve? Aves migratórias? De acordo com o governo norte-coreano estas são as principais causas do surto de Covid que se tem propagado pelo país. Agora, juntam-se à lista de causas os balões que viajam da Coreia do Sul até à Coreia do Norte enviados por ativistas que se opõem ao governo de Kim Jong-un.
Pouco se sabe sobre a realidade vivida dentro das fronteiras da Coreia do Norte, assim como pouco se sabe também sobre os eventos do mundo dentro do próprio país. Desde que o avô de Kim Jong-un se assumiu como líder da Coreia do Norte que uma ditadura que conta agora com 70 anos tem forçado o país a viver sobre aquele que é considerado um dos regimes mais repressivos do mundo. A ditadura que a família Kim impôs no país foi o começo de uma história de opressão e medo que isolou a Coreia do Norte do mundo. Não se conhecem exatamente as condições em que vive atualmente a população norte-coreana, mas alguns testemunhos e investigações pintam um quadro de fome e miséria entre os seus cidadãos.
Com o começo da pandemia da Covid-19, vários observadores internacionais partilharam as suas preocupações de que uma situação já negativa piorasse, nomeadamente no que toca ao acesso da população norte-coreana a cuidados de saúde, assim como à alimentação e outros bens depois de o país ter fechado as suas fronteiras. De acordo com o testemunho de Kim Hwang-sun, um cidadão norte-coreano que terá fugido do país em direção a Seul, na Coreia do Sul, à BBC, os hospitais e farmácias da Coreia do Norte não têm medicamentos há anos, sendo que os médicos prescrevem uma receita que cabe ao paciente encontrar. “Se precisas de um anestésico para uma operação, tens de ser tu a ir ao mercado para obtê-lo e trazê-lo de volta ao hospital”, relata.
A Covid-19 veio agravar ainda mais esta situação embora Kim Jong-un tenha, durante os primeiros meses de pandemia, assegurado que o vírus não havia entrado no território do seu país, uma declaração recebida com ceticismo por muitos especialistas. Só a partir de maio deste ano tornaram-se públicas as primeiras informações de um surto de febre no país com o governo a comunicar números de infetados e mortos que a Organização Mundial de Saúde rejeitou, acreditando serem superiores.
Em chamada com a sua família, que ainda se encontra na Coreia do Norte, nos finais de maio, Kim Hwang-sun diz ter ficado com a impressão de que a situação no país era muito complicada. “Eles disseram-me que muitas pessoas estão com febre”, começou. “Tive a sensação de que era muito mau. Eles disseram que todo a gente está a pedir medicamentos a qualquer pessoa que encontra. Todo a gente está a procurar algo que ajude a reduzir a febre, mas ninguém consegue encontrar nada”, explicou.
De acordo com a BBC, Kim Hwang-sun não terá perguntado quantas pessoas já haviam morrido por recear que a chamada estivesse a ser gravada e que a questão pudesse ser considerada uma crítica ao governo, o que poderia resultar na morte da sua família.
O líder norte-coreano já reconheceu a falta de medicamentos e, embora tenha ordenado ao exército que distribuísse aquele que seria o seu armazenamento, terá recusado a ajuda da vizinha Coreia do Sul quando esta foi um dos primeiros países a oferecer não só vacinas contra o vírus como outros tipos de material médico. Agora, é exatamente este país que Kim Jong-un responsabiliza pelo surto de Covid registado no seu país.
De acordo com declarações oficiais recentes, o vírus entrou pela primeira vez em contacto com cidadãos norte-coreanos depois de um soldado de 18 anos e uma criança de 5 anos terem encontrado “objetos alienígenas” numa colina próxima da fronteira com a Coreia do Sul. Os objetos poderão ser balões enviados por ativistas sul-coreanos que já têm vindo a fazê-lo há vários anos com o objetivo de fazer chegar ao outro lado da fronteira mensagens contra Kim Jong-un e ajuda humanitária.
Os órgãos de comunicação norte-coreanos já vieram, inclusive, instruir os cidadãos a estarem vigilantes a “objetos alienígenas que vêm pelo vento e outros fenómenos climáticos e balões nas áreas ao longo da linha de demarcação e fronteiras”. Qualquer pessoa que identifique um objeto semelhante ao descrito ou que seja, de alguma forma, suspeito deve denunciá-lo imediatamente para que possa ser removido rapidamente por uma equipe de emergência.
A Coreia do Sul
Embora o relatório não mencione diretamente a Coreia do Sul, o governo deste país já veio negar publicamente a explicação dada pelo seu vizinho do Norte sobre como a Covid teria entrado no seu território, nomeadamente por estar subentendido de que o vírus poderia ter viajado através de balões lançados por sul-coreanos. Segundo Seul, “não há possibilidade” de a Covid ter cruzado a fronteira dessa maneira.
Um porta-voz do Ministério da Unificação do Sul disse, inclusive, aos jornalistas existir um consenso entre responsáveis de saúde sul-coreanos e peritos da Organização Mundial de Saúde de que as infeções através do contacto com o vírus na superfície dos materiais são impossíveis.
Os relatos da Coreia do Norte também não parecem coincidir com os da sua vizinha do sul em outros aspetos. A prática de enviar balões através da fronteira foi em grande parte interrompida depois do anterior governo da Coreia do Sul ter criminalizado a prática. De acordo com o que se sabe, não terão sido levadas a cabo ações do género no início de Abril, quando Kim Jong-un diz ter identificado os primeiros casos. Um ativista a ser julgado por enviar balões tê-lo-á feito, não no início, mas em finais de Abril, enviando folhetos de propaganda contra o líder norte-coreano e depois mais tarde, em Junho, enviando artigos de combate à Covid-19 como máscaras e analgésicos.
A população norte-coreana de 25 milhões está agora especialmente vulnerável dada a falta de um programa de vacinação e sistema de saúde precário, como realça a BBC. Mais recentemente, Kim Jong-un terá concordado em aceitar uma oferta de vacinas fabricadas na China, de acordo com relatos de órgãos de comunicação de Pyongyang, uma cidade norte-coreana. Ainda não é conhecido o número exato de cidadãos que já terá sido vacinado, se o processo de vacinação tiver iniciado de todo, e os números de casos transmitidos para o exterior continuam a ser postos em causa.
O surto da Covid na Coreia do Norte começou alguns meses depois de o país ter suspendido o restrito bloqueio que havia colocado na sua fronteira com a China, recomeçando as viagens, dedicadas a trocas comerciais, entre os dois países no início de 2020. Existe a hipótese de o vírus ter entrado no país numa dessas viagens até porque, na época, a China encontrava-se afetada por um surto de Omicron. No entanto, de acordo com o testemunho de um especialista em assuntos da Coreia do Norte, Lim Eul-chul, à agência de notícias Reuters, admitir que poderia ter sido essa a origem do vírus no país seria difícil do ponto de vista diplomático e bloquearia algumas vantagens à Coreia do Norte, nomeadamente do ponto de vista comercial. “Se eles concluíssem que o vírus era da China, teriam de reforçar as medidas de quarentena na área de fronteira num revés adicional ao comércio Coreia do Norte-China”, explicou.