As fotos de Simon Leviev mostravam, aparentemente, o homem ideal: bem-sucedido, sociável, charmoso e solteiro. Bastava deslizar para a direita com o dedo que o Tinder tratava do resto. Depois era esperar que houvesse correspondência, que esta rede social define como match, o que acontecia, na maioria das vezes, de forma quase imediata. Seguiam-se almoços em hotéis de luxo, viagens em jatos privados e bouquets de rosas entregues à porta. Um verdadeiro sonho, que mais tarde se tornou um grande pesadelo para muitas mulheres pelo mundo fora.
Quem vê caras não vê corações e, do outro lado do ecrã, o homem israelita de 31 anos que se fazia passar pelo herdeiro do magnata Lev Leviev não procurava a mulher ideal, mas sim a vítima, ou vítimas, ideais. Aquela que é uma das mais famosas aplicações de encontros, o Tinder, passou a ser usada por Leviev, nome pelo qual se fez passar, como uma ferramenta de manipulação e a arma dos crimes que cometeu.
O documentário da Netflix, que estreou no dia 2 de fevereiro, conta a história das vítimas de Simon Leviev, que usava a aplicação para seduzir mulheres e manipulá-las a darem-lhe dinheiro, que prometia sempre pagar de volta, o que nunca aconteceu. O esquema era sempre o mesmo, assim como a história que contava, o método que realizava, as mensagens que enviava. E as vítimas, embora fossem diferentes, viam-se todas, umas a seguir às outras, presas numa rede de mentiras que terminava em dívidas de milhares de euros.
O primeiro passo era atrair as vítimas com um estilo de vida luxuoso, que as convencia de que Leviev era, de facto, de um homem muito bem-sucedido. Seguiam-se as mensagens de bom dia, a aparente preocupação diária, os vídeos a descrever as suas saudades, os presentes e tudo o que fosse necessário para criar uma relação próxima e uma base de confiança com a vítima.
Faltava apenas o golpe final: assim que sabia ter convencido a vítima das suas boas intenções, fingia estar em perigo, incapaz de aceder à sua conta por motivos de segurança e pedia dinheiro, muito dinheiro, com a promessa de que tudo seria pago. Nunca era.
Ayleen, Cecilie Fjellhøy e Pernilla Sjoholm são três das vítimas de Simon Leviev e contam a sua história no filme documental da Netflix. Além das mentiras, o israelita presenteava cada uma das mulheres que conhecia no Tinder com uma dívida que vai desde os 26 mil aos 218 mil euros.
Entre 2015 e 2017, Leviev esteve preso na Finlândia por ter roubado dinheiro a três outras mulheres através de um esquema semelhante. Mais tarde, e com o auxílio de uma das vítimas, foi detido na Grécia com um passaporte falso e condenado a 15 meses de prisão em Israel, dos quais cumpriu apenas cinco sob o pretexto de “bom comportamento” e resultado das medidas de redução da lotação nas prisões, associadas à pandemia da Covid-19.
O documentário alerta para os perigos das redes sociais e fraudes da Internet, mas também para a forma como a justiça cobre os casos que partem deste tipo de plataformas. Leviev enganou mulheres por todo o mundo e o requisito principal não era difícil de cumprir: bastava ter Tinder. Segundo a BusinessofApps, os utilizadores da aplicação têm vindo a ser cada vez mais, atingindo em 2021 os 9,6 milhões. Além disso, só em 2016 Portugal foi responsável por 200 milhões de swipes, revelou o fundador da app Sean Rad, em declarações ao jornal Observador. O que aconteceria, ou devia acontecer, se o mesmo se passasse em Portugal? Quais seriam as consequências?
O que nos diz a justiça portuguesa
Apesar de o Tinder e a própria Internet terem sido ferramentas-chave no seu plano, os crimes de Leviev nunca seriam julgados enquanto cibercrime em Portugal, até porque “de cibercrime têm muito pouco”, explica à VISÃO Paula Ribeiro de Faria, professora associada da Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa e doutorada em Ciências Jurídico-Criminais.
O perfil de Simon Leviev, embora irreal e enganador em muitos aspetos, não tem “relevância criminal” à luz da lei portuguesa. “Imagine que eu crio um perfil com traços identitários completamente falsos, aí não há relevância criminal. Quanto muito pode haver uma denúncia para bloquear o perfil”, esclarece.
De facto, as suas ações só seriam consideradas cibercrime caso utilizasse dados pessoais de outras pessoas e, mesmo nesse caso, só o seria segundo circunstâncias concretas. É necessária, segundo a lei 109/2009, artigo 3º , que trata a falsidade informática, “a interferência no tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos” que possam afetar a integridade e confidencialidade dos sistemas informáticos abalando a confiança que as pessoas depositam nesses mesmos sistemas. “Por exemplo eu entro no perfil de Facebook de outra pessoa ilegitimamente, retiro de lá fotografias, retiro de lá informação e faço esse meu perfil falso com uma intromissão ilegítima de dados”, explica. Caso contrário, é legal.
Paula Ribeiro de Faria ainda coloca uma outra hipótese: admitindo que o perfil continha dados de outras pessoas que circulavam livremente na Internet, o que não parece ser o caso, poderia tratar-se de um crime de falsificação, mas reconhece ter “muitas dúvidas disto”. Atrás do ecrã, Leviev criou uma personagem para si, uma outra versão dele mesmo que apresenta ao mundo. Até aí, a mentira não é crime, mas o mesmo não se pode dizer das restantes. O problema, garante, não está relacionado com a sua atividade na conta Tinder, mas com as “finalidades criminosas para as quais ele utiliza o perfil”.
As acusações
O crime de que Paula Ribeiro de Faria não tem dúvidas de que Simon Leviev seria acusado em território português é o de burla qualificada. O artigo 217 do Código Penal não deixa dúvidas naquela que é a definição deste crime: “Quem, com intenção de obter para si ou para enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”, embora neste caso, seja uma burla qualificada, prevista no artigo 218º do mesmo Código.
As mentiras, manipulação e dívidas que daí advinham qualificariam os esquemas de Leviev como uma forma de burla. A burla é, inclusive, “um dos crimes mais praticados na internet”, acrescenta Paula Ribeiro de Faria. O que poderá ser mais difícil é, depois, prová-lo, explica.
O crime de Simon Leviev é, como qualquer outro crime, considerado uma ofensa contra valores da coletividade, neste caso “contra os valores patrimoniais” que o Estado defende. Além da sanção criminal, Simon poderia ainda ser condenado ao pagamento de uma indemnização civil pelos danos – avultados – causados às suas vítimas, incluindo a compensação pelos danos morais que elas sofreram.
A jurista ainda tem suspeitas de que o israelita pudesse ser acusado de “crime de abuso de cartão de crédito” tendo em conta que “ele está na posse do cartão de crédito de outra pessoa (a vítima) e faz os pagamentos através do cartão de crédito dessa outra pessoa”, assim como do crime de ameaças. Ainda assim, “cada caso é um caso” e sem conhecer melhor as circunstâncias do crime não é possível dar certezas, acrescenta ainda a especialista.
Será suficiente pagar pelos danos materiais quando os que podem ser mais permanentes são os emocionais?
Leviev deixou dívidas, mas também alguns corações partidos e inundados pelo medo e pela desconfiança. Além disso, o tipo de comportamento deste homem assume formatos de “violência psicológica”, explica Paula de Ribeiro Faria. “Ele pode ser abrangido pelo crime de violência doméstica porque este crime abrange todo o tipo de abusos, físicos e psicológicos que são cometidos no âmbito de relações amorosas, conjugais ou análogas”.
As redes sociais têm vindo a ser uma forma cada vez mais popular de procurar relações amorosas. Segundo dados da Federal Trace Commisson (FTC), esquemas amorosos como o de Simon Leviev, cujo objetivo é a obtenção de dinheiro, resultaram, em 2020, na perda de mais de 260 milhões de euros, uma subida de cerca de 50% comparativamente aos dados de 2019. Estes dados traduzem-se na perda de aproximadamente 2100 euros por pessoa. De 2016 a 2020, as perdas totais em dólares relatadas aumentaram mais de quatro vezes e o número de denúncias quase triplicou.
A agência governamental norte-americana também divulgou um guia de como identificar esquemas amorosos e o que fazer caso o façamos. Segundo a FTC, indivíduos como Simon Leviev costumam caracterizar-se por professar muito rapidamente o seu amor, desculpar-se referindo estar fora do país em trabalho ou em serviço militar, planear visitas que não cumprem devido a imprevistos como emergências, atrair a vítima para fora do site de encontros, como Tinder, e pedir dinheiro para emergências que envolvem a sua segurança, como acontece com Leviev, ou para contas de hospital e viagens.
É importante saber como reagir em situações destas e a agência propõe um conjunto de medidas para que saibamos como evitar cair neste tipo de esquemas. É importante dar um passo atrás e falarmos com alguém de confiança, evitando que a pessoa do outro lado do ecrã nos “acelere” ao tomarmos decisões. “Nunca transfiras dinheiro da tua conta bancária, compres cartões-presente ou emprestes a interesses amorosos online. Não o terás de volta”, salienta a página da FTC. Caso seja transferido dinheiro a um indivíduo e existam suspeitas de que se pode tratar de um esquema amoroso, contactar o banco imediatamente.