Um antigo ditado pasthun diz que a mulher só pode sair de casa três vezes: quando nasce, quando casa e quando morre. O nascimento de uma menina é sinal de luto e de vergonha; o de um rapaz, à semelhança do que acontece noutros países muçulmanos, é motivo de orgulho e de rajadas de metralhadoras. Fazem-se festas aos meninos, oferecem-se prendas à família. As mulheres são muitas vezes esbofeteadas por ter dado à luz uma rapariga.
O novo regime talibã, que entrou em Cabul, no passado dia 15, é constituído por tribos pasthun, a maior do país antes da tajique e hazara. Apresenta-se à comunidade internacional com um novo rosto. Mas já deixa muitas dúvidas quanto às suas políticas e, intenções, até porque já há relatos de brutalidade e de violência contra centenas de civis, designadamente em Jalalabad, sudeste do país – por onde passei e permaneci por diversas vezes, nas minhas quatro deslocações ao Afeganistão, entre 2001 e 2003.
Ultra-conservadores – embora agora apareçam sob uma nova liderança, anunciando estar abertos a quem se dispuser a sentar se à mesa -, os Talibã foram uma criação das elites mais fundamentalistas paquistanesas, sob a égide dos serviços secretos do país vizinho, o Inter Service Inteligence (ISI), financiados pela Arábia Saudita e até pela comunidade internacional, no rescaldo da saída das tropas soviéticas que ocuparam o Afeganistão entre 1979 e 1989, que por coincidência ou não, ocorreu com o fim da Guerra Fria, negociada entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbachtov. Durante os anos em que os talibãs governaram o Afeganistão assistiu-se a uma massificação de violações físicas e psicológicas, muito denunciadas por organizações não governamentais (ONG), internacionais, e locais, especialmente pela Revolutionary Association of Women Of Afghanistan (RAWA), criada em 1979, grande parte das quais abandonaram o país ao total isolamento.
A RAWA foi a principal ONG a dar apoio a milhares de mulheres mas também a centenas de homens quer no exílio, nomeadamente no Paquistão, mas atuando sobretudo no Afeganistão.
Menos ocidental e tão pouco afegã
No início do século XXI e após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, procurei conhecer esta realidade, absolutamente diferente da que até à altura tinha presenciado, apesar de várias reportagens que efetuara em diferentes partes do globo, nos anteriores 10 a 15 anos. Logo na primeira das quatro viagens que fiz ao Afeganistão senti-me um pouco como T. E. Lawrence narra no seu livro “Os Sete Pilares da Sabedoria: “menos ocidental e tão pouco afegã”.
Essa primeira viagem iniciou-se com um voo para Islamabad, para a capital administrativa do Paquistão, logo a 19 de setembro de 2001. O meu principal objetivo era entrar no Afeganistão, pelo Sul, por via terrestre, clandestinamente, antes da entrada das tropas da coligação militar internacional, entretanto formada.
Os meus planos iam quase fracassando. Em especial, a partir do momento em que, a 6 de outubro, se iniciaram os primeiros bombardeamentos internacionais no norte do Afeganistão.
Impaciente, percebi que tinha de apressar a minha entrada, que até ao momento não estava a ser bem sucedida. Todas as minhas tentativas, com o meu principal guia e condutor, Malik, um jovem de 25 anos a quem devo uma amizade e carinho especiais, saíam sistematicamente frustradas. Mas, finalmente, o empenho dele e de outros contactos deram frutos. Encontrei guias e intérpretes de uma enorme dedicação, que, desde o primeiro momento, tudo fizeram para me proporcionar contactos, meios de transporte e tempo, como nunca havia experienciado. E isto num país muçulmano, o Paquistão, onde as mulheres, também estão sujeitas a uma vigilância e movimentos bastante restritivos.
Os receios do fracasso de atravessar a fronteira eram muitos, até porque o governo de Islamabad não estava nada interessado em deixar passar jornalistas ou quaisquer outros estrangeiros – exceto membros dos serviços secretos ou militares para o país vizinho. Mas a fronteira entre os dois países é tão extensa e porosa que acabei por ter sucesso em arranjar alguns guias que me acompanharam sem hesitação.
Durante esses dias, vesti por diversas vezes a burka, ora verde azeitona ora azul celeste, uma veste sub-humana que incapacita os movimentos, mas sobretudo a respiração e a visibilidade de uma vida normal. Essa é a sua função. Reduzir as mulheres a uma condição inferior e quase miserável – o que muitos teólogos e sociólogos muçulmanos consideram incompatível com as próprias palavras contidas no Corão. Nunca o profeta Maomé teria em mente colocar as mulheres nesta condição.
Na primeira vez em que a vesti senti-me tão sufocada, que, por momentos, pensei em desistir. Mas, essa era a única possibilidade que tinha de poder entrar na fronteira em Navaz, guardada apenas por uma primitiva guarita e um soldado semi-acordado. Do que vi e vivi nessa altura, contei tudo na reportagem que então escrevi para a VISÃO.
A brutalidade contra as mulheres
Entre novembro de 2001 e dezembro de 2003, com paragens pelo Paquistão, mais ou menos longas, visitei vários campos de refugiados, um dos quais dirigidos pela RAWA, em Kewat, nos arredores de Peshawar, no Paquistão.
Em novembro de 2001, antes de chegar à totalmente destruída Cabul pela primeira vez, parei na zona de Peshawar, norte do Paquistão, pernoitei num campo de refugiados em Kewat, dirigido pela Revolutionary Association of Women of Afghanistan ( RAWA), onde os habitantes eram maioritariamente mulheres.
Uma jovem que ensinava o Corão, Razia, confidenciou-me que não sabia ler em escrever, mas que na altura também não era fácil distinguir entre as mulheres analfabetas e as que tinham estudos universitários.
As raras escolas que existiram no Afeganistão, entre 1996 e 2001, dizia, eram absolutamente clandestinas. E quem fosse apanhada a estudar era gravemente punida, segundo me relatou uma jovem já em Cabul, também no inverno desse mesmo ano.
Razia acrescentou-me, em Kewat, que devido ao regime imposto pelos talibãs, entre 1996 e 2001, as mulheres viviam quase todas da mesma maneira. “Não saíamos à rua, particularmente sem burka. Não podíamos efetuar qualquer trabalho fora de casa. Estávamos raramente autorizadas a sair para fazer compras, sempre de burka e só podíamos fazê-lo acompanhadas pelo marido ou por um membro do sexo masculino da família – em dari, língua tajique, muharam -, mesmo que este tivesse apenas 5 ou 6 anos”. A burka era aliás obrigatória a partir da adolescência.
Das recordações de Razia continuava ainda bem vivo o dia em que tinha visto duas mulheres serem brutalmente espancadas por talibãs porque, para comerem um gelado, elas tinham subido um pouco as mangas da burka, ficando com os braços ligeiramente à mostra. “Se reagíssemos eramos imediatamente alvo de violência e postas na cadeia.”
Nos autocarros, as mulheres ficavam separadas dos homens, mesmo dos maridos e não tinham autorização, sequer, para sair na mesma paragem ao mesmo tempo que eles. Além disso, só podiam encontrar-se umas com as outras dentro de casa, em cerimónias fúnebres ou em casamentos da família.
No Afeganistão, as mulheres não podiam andar num passo normal, o barulho dos saltos altos implicava de imediato uma forte punição. Por isso, elas andavam descalças, ou de saltos rasos, para evitar atrair a atenção dos homens. ”Muitas mulheres sofriam assim de graves perturbações mentais, tornando-se, num contraste absurdo, com uma sociedade tão moralista, prostitutas ou pedintes. Ou optavam pelo suicídio. Facto que aliás, a RAWA, confirmava que, mesmo antes, depois, e após 2001, continuava a afetar grande parte da população feminina, apesar do novo suposto regime apoiado pela comunidade internacional e por uma maior visibilidade do papel das mulheres nas escolas, administração pública e privada e até pelo Parlamento e Governo.
Os bordéis dos Talibã
Um relatório da RAWA indicava que só em Cabul, em 1999, existiam 25 a 30 bordéis – designados Qala paradoxalmente (ou não) frequentados por talibã. Cada um destes bordéis teria cerca de três a cinco mulheres, dirigidas por uma mais idosa, designada também em dari, Khala Kharabati (prostituta).
Para se protegerem, as prostitutas possuíam três tipos de cartões diferentes: um de viuvez, visando obter alguma ajuda de uma ONG internacional; um segundo identificando-as como casadas, única forma de poderem alugar uma casa; e, finalmente, um terceiro, provando que eram solteiras. Segundo a lei talibã, a Sharia, o adultério é punido, no mínimo com três anos de prisão. Mas em última instância, o que era frequente, com a morte por apedrejamento ou decapitação.
Estes “espetáculos”, tal como a pena de morte de milhares de homens foram frequentes às sextas-feiras, no chamado estádio olímpico e em outros recintos desportivos ao ar livre, que visitei em Cabul, onde multidões em fúria ou em lamento, assistiam à aplicação das execuções fatais.
Menos brutal, a vida dos homens no Afeganistão também era sujeita a regras muito restritas. Não podiam cortar a barba e deviam deixá-la crescer até quatro dedos de comprimento, rezar cinco vezes ao dia, não ler livros senão religiosos, não ver filmes, teatro ou ouvir música, não jogar à bola, tanto futebol como voleibol, não beber bebidas alcoólicas, apenas frequentar os antigos estádios de futebol convertidos em “campos de morte”, para assistir ao único “divertimento “permitido: execuções ao vivo.
Celeiro do ópio
Saindo da estrada em Jalalabad, em direção a Cabul, eu e o meu intérprete e condutor, Baryali, enveredamos por uma estrada secundária. Celebrava-se então o Nawroz, a primavera islâmica, em março de 2003. Procurávamos, o que foi muito fácil, campos de papawer somniferum – a papoila de onde é extraído o ópio e refinada a heroína, que se tornou um flagelo internacional e nacional.
Apesar da sua cultura ter sido virtualmente banida por vários decretos do mullah Omar, falecido líder dos Talibã, entre 1996 e 2001, sabia-se, sobretudo com a ajuda de imagens satélites, que o culto da papoila continuava a proliferar em grandes zonas do país. Naquele ano, as zonas mais férteis de ópio eram Kandahar, Langham e Nangarhar. Percorri muitos quilómetros destas últimas duas províncias e as provas estavam à vista.
“Do que quer que vivam as populações aqui? Elas podem plantar arroz, trigo, milho, espinafres ou frutos secos, mas a papoila dá-lhes muito mais rendimentos”, confidenciou-se, impotente, um médico afegão que trabalhava para uma ONG francesa.
Em Nangahnar e Langham, o caule da papoila chegava a atingir os 50 centímetros de altura e a coroa da “bela flor” oucpava o tamanho do punho fechado da mão de um homem adulto. Avistava, não sem algum deslumbramento oásis após oásis destas plantações de flores bancas e vermelhas e vastos terrenos onde ainda se vislumbravam outras tantas ainda sem flor. Ano e meio antes, passara pela mesma zona e nada vira.
Estado islâmico e Al Aqueda
O Afeganistão corre sérios riscos de voltar a ser um ponto de reunificação do que resta da antiga Al Aqueda, ou um estado falhado, à semelhança do que se vem passando na Síria e no Iraque, segundo analistas internacionais, incluindo elementos de ONG e fontes diplomáticas.
Por isso, recordo sempre as palavras proféticas que Abdulhah Abdulhah, médico oftalmologista, tajique e primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros do Afeganistão no governo interino de Hamid Karzai, me proferiu em Cabul em 2001 e quatro anos mais tarde, em Lisboa: “Se o país não melhorar as suas infraestruturas, com água, eletricidade e muita, muita educação nos próximos anos, nunca poderá vingar e tornar-se um país estável”.
Palavras proféticas? Conhecimento real do seu povo e da sua História, parece ser o mais certo.
O tempo o dirá…