“Algum dia pode acabar”, vaticina Domingas da Moura, ou simplesmente Nha Tina, que completa 70 anos em maio, e uma das oleiras mais antigas em atividade em Fonte Lima, localidade no concelho de Santa Catarina, interior da ilha de Santiago.
Domingas da Moura começou a “brincar” com o barro aos oito anos, ao lado da mãe e da avó, e aos 15 anos já sabia fazer todo o tipo de peças, desde potes, pratos, bandejas, tachos, bacia, fogareiro, baião, entre outras louças da olaria tradicional de Cabo Verde.
E nunca mais parou e não fez praticamente mais nada na vida. Moldar o barro permitiu a Nha Tina construir a sua casa, criar os seis filhos e também já andou pelo mundo a fazer exposições: Portugal, Estados Unidos, Costa do Marfim, além de quase todas as ilhas do arquipélago.
“É esse o meu trabalho. É a minha razão de tudo”, diz, em conversa com a agência Lusa na Casa Cerâmica, a poucos metros de sua casa.
Mas onde se sente melhor é na Casa Cerâmica de Fonte Lima, onde vai praticamente todos os dias, e não dispensa o lenço, o avental e umas sapatilhas resistentes às muitas horas de trabalho. Afinal, é ela quem faz quase tudo: vai buscar o barro, pila, enrola, lisa e leva depois as peças moles para um dos dois fornos locais para ganharem consistência.
Este trabalho já deixou sequelas em outras partes do corpo, e queixa-se de problemas de saúde, mas Nha Tina exibe orgulhosamente as mãos calejadas pelo barro, garantindo que ainda estão firmes para continuar a tradição até ao último dia da sua vida.
O maior desejo desta oleira mestra de Fonte Lima era ter uma moldura para poder descansar um pouco as mãos, bem como algo para amassar o barro e um apoio das autoridades na extração, que é feita em locais de difícil acesso, tendo já causado a morte a muita gente.
Antigamente, quase todos na localidade se dedicavam à olaria, mas atualmente Nha Tina vê os jovens de costas voltadas para esta arte tradicional. “Nem os meus netos querem fazer isso. Dizem que é muito cansativo e danifica as mãos”, diz a oleira, que também já foi a várias localidades ensinar a sua arte em barro.
Contrariados, os netos às vezes ainda dão uma ‘mãozinha’ a Nha Tina e uma de 20 anos já sabe fazer algumas peças, mas a avó continua a não ver um grande futuro para a olaria.
“Assim que eu morrer, acho que na minha casa já não vão fazer mais”, lamenta, apelando para não deixaram acabar a tradição da terra, que ninguém sabe quando começou e é feita apenas por mulheres.
A oleira contou que antes de morrer o marido nunca pôs os pés na Casa Cerâmica. “Mas quando eu ia vender na Praia e trazia, por exemplo, 60 mil escudos (544 euros) ele ficava contente”, brinca Nha Tina.
“Uns espreitam pela porta e depois desatam a andar. Com o tempo pode acabar”, prevê uma das caras da olaria de Fonte Lima, que foi retratada recentemente em livro pela investigadora cabo-verdiana Ana Samira Semedo Carvalho Silva.
Outras das oleiras e personagens do livro é Ana Lina Monteiro, com quase 50 anos, e também com “uma vida” com as mãos no barro, que começou também ajudando a mãe, tornando-se a sua paixão, e até a escola ficou para trás, parou na 4.ª classe.
“É pouco, mas dá pouco sustento. Eu vejo-o como muito”, garante Ana Lina, irmã de Nha Tina, que também mandou os cinco filhos para a escola graças a esta arte, e é o que também está a sustentar as despesas com uma das filhas internada no hospital.
Por isso, neste momento faz da Casa Cerâmica apenas ponto de passagem para a cidade da Praia, tal como muitas oleiras que deixaram o ofício para emigrarem, o que diminuiu consideravelmente o número destas moldadoras do barro tradicional.
“É uma tradição que passa de geração em geração e gostaríamos de ter força para ensinar os mais novos e para nos darem melhores condições”, pede a oleira, que é uma das mais novas nesta profissão na localidade e que se dedica ainda à agricultura e criação de gado.
Diz que já fizeram de tudo para pôr os filhos a ajudar, mas lamenta a falta de interesse por este trabalho “duro e cansativo”. O que poderá mudar o rumo da história, segundo Ana Lina, é o livro sobre a olaria de Fonte Lima.
“Foi muito bom”, assume, lembrando que a investigadora esteve com elas durante vários dias e acompanhou toda a produção, desde a extração do barro até ao forno que dá resistência às peças.
“Quando morrermos a história fica. Já disse aos meus filhos para guardarem porque um dia há de servir”, acautela Ana Lina, sem dúvidas de que se os mais novos não pegarem na tradição ela vai acabar, mais cedo ou mais tarde.
A oleira agradece a construção da Casa Cerâmica, mas lamenta que os apoios ficaram por aí, numa moradia sem energia elétrica nem água canalizada no centro da zona, que é também um ponto turístico na ilha de Santiago.
Fonte Lima é um dos três centros de produção do artesanato tradicional em Cabo Verde, a par de Trás-os-Montes em Tarrafal, também em Santiago, e Rabil, na ilha de Boa Vista.
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