“O Gana deve receber 600 mil doses da vacina AstraZeneca/Oxford fabricada pelo Instituto Serum, da Índia”, anunciaram na quarta-feira a Organização Mundial da Saúde (OMS) e da UNICEF, num comunicado conjunto. Estas vacinas, expedidas pela UNICEF de Mumbai para Acra, fazem parte do primeiro lote de vacinas contra o Covid-19 destinadas a vários países e marcam o início da implementação do COVAX ou, como a CNN lhe chamou, “possivelmente o acrónimo mais importante de 2021.”
A desigualdade no acesso às vacinas à escala mundial é, neste momento, uma realidade preocupante. Enquanto vários países ricos planeiam vacinar a sua população inteira até ao final de 2021 – na Alemanha, a Chanceler Angela Merkel definiu o dia 21 de setembro como data limite para todos os adultos serem vacinados para a Covid-19 -, mais de 130 países do mundo ainda não vacinaram uma única pessoa. “Neste momento, a igualdade na vacinação é o maior teste moral que a comunidade global enfrenta”, afirmou António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, alertando para o facto de 75% de todas as vacinas do mundo estarem concentradas nas mãos de apenas 10 países.
Assim, o COVAX, um organismo liderado por uma coligação de várias entidades que inclui a GAVI, uma aliança de vacinação global criada pela Fundação Bill e Melinda Gates, assim como a OMS, pretende combater esta desigualdade – mas não será uma tarefa fácil. Apesar de a distribuição de vacinas já estar em andamento nos países mais ricos, a imunização em massa de todo o mundo pode demorar muito tempo, ou mesmo nunca acontecer. Segundo os cálculos da Economist Intelligence Unit, a maioria dos países mais pobres não terá um acesso generalizado à vacina, que cubra entre 60% a 70% da população, até ao ano de 2023.
Perante estes dados inquietantes, o COVAX apresenta-se como o organismo que visa garantir um acesso igualitário da vacina a todos os países do mundo. Assim, a sua missão passa por comprar vacinas para a Covid-19 em massa e enviá-las para países mais pobres, que não conseguem competir com os países ricos na celebração de contratos com as maiores empresas farmacêuticas. Neste momento, o COVAX já garantiu quase 2.3 mil milhões de doses da vacina para distribuir no ano de 2021, sendo que 1.8 mil milhões destas doses serão destinadas aos 92 países mais pobres do mundo – e a sua grande maioria (1.3 mil milhões) será disponibilizada de forma totalmente gratuita.
Apesar de já ter sido enviado o primeiro “carregamento” para o Gana, a distribuição em massa de vacinas pelo COVAX terá lugar na segunda metade deste ano. Os primeiros na fila são países da América Latina e as Caraíbas, que receberão 35 milhões de doses das vacinas da Pfizer e da AstraZeneca – as únicas duas compradas pelo organismo até ao momento – até ao final de junho. De acordo com as projeções da GAVI, o sudeste asiático deverá receber 695 milhões de doses até ao fim do ano, enquanto que África receberá 540 milhões. Por sua vez, a OMS confirmou que planeia enviar 355 milhões de doses para o Afeganistão e Paquistão até dezembro e que deverão ser distribuídas outras 280 milhões nas “Américas”.
Obstáculos no caminho
Apesar de todos estes esforços monumentais, o plano do COVAX, que ainda inclui países do leste europeu como a Ucrânia e a Moldávia, enfrenta desafios de ordem logística, monetária e moral. Segundo a GAVI, “há incertezas quanto à capacidade, ao financiamento e à preparação dos países.”
Quando se candidatam ao processo de distribuição do COVAX, os governos de cada país têm de apresentar um plano detalhado de como vão distribuir as doses da vacina que receberem, assim como identificar os locais onde precisam de uma maior ajuda. Para além da dificuldade de muitos países mais pobres em assegurarem todas estas condições de distribuição da vacina, o próprio processo de entrega das mesmas requer uma logística altamente complexa. A UNICEF, um dos principais distribuidores, está neste momento a tentar duplicar a sua capacidade de transporte para conseguir distribuir 850 toneladas de vacinas da Covid-19 por mês.
Por outro lado, colocam-se os problemas financeiros. Até ao momento, o COVAX já angariou cerca de 5 mil milhões de euros – mas ainda não é suficiente para cumprir a missão a que se propõe. Aurélia Nguyen, diretora do COVAX, disse recentemente à CNN que seriam necessários pelo menos outros 1.6 mil milhões para conseguir obter e entregar as doses necessárias da vacina. Assim, os 3.3 mil milhões de euros que Biden prometeu doar no dia 17 de fevereiro ao COVAX, depois de o seu antecessor se recusar a contribuir para o programa, podem vir a ser uma ajuda valiosa a atingir os objetivos, juntando-se a um grupo de doares que inclui o Reino Unido, a União Europeia e o Canadá.
No entanto, o maior desafio do COVAX, ainda mais significativo que a logística e o financiamento, é a corrida às vacinas à escala mundial. “Muitos países compraram mais vacinas do que precisavam”, afirmou o Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom, em janeiro. “À medida que as vacinas trazem esperança aos países ricos, uma grande parte do mundo é deixada para trás. Não é correto que jovens adultos em países ricos possam receber a vacina antes de profissionais da saúde e idosos em países pobres, em especial à medida que novas variantes do vírus vão surgindo”, explicou numa conferência, criticando também os acordos bilaterais realizados à margem do organismo que têm causado uma subida dos preços das vacinas.
Assim, mesmo se o COVAX atingir o seu objetivo de 2.3 mil milhões doses da vacina até ao final do ano, a grande maioria das pessoas que vivem em países pobres continuará a ter de esperar até, pelo menos, 2022 para ser imunizada. Segundo as previsões da GAVI, as vacinas distribuídas alcançarão cerca de 27% da população destes países – e mesmo esse número dependerá de um aumento massivo da dinamização do programa na segunda metade de 2021, uma vez que, de acordo com a OMS, apenas 3.3% destas populações estarão vacinadas até junho.
Um desafio moral
Quando olhamos para a história, os resultados não são encorajadores. Tedros relembrou que na epidemia do vírus H1N1, em 2009, os países ricos também monopolizaram as primeiras doses que surgiram da vacina. O mesmo aconteceu – e continua a acontecer – ao longo de vários anos com tratamentos para outros vírus, que apenas estão disponíveis em países com mais recursos e não chegam aos países pobres, como é o caso dos tratamentos para a SIDA. Como referiu John Nkengasong, Diretor do Centro de África para o Controlo e Prevenção de Doenças, caso o continente africano não vacine 60% da população nos próximos dois anos, o vírus tornar-se-à endémico nesta região – o que pode levar a resultados catastróficos. Caso o COVAX não recolha os recursos que necessita, o mundo enfrentará “uma falha moral catastrófica”, alertou Tedros.