O ano de 2020 trouxe a primeira pandemia desta geração. A Covid-19 ocupou a agenda política dos governantes, influenciou o debate público e abriu telejornais diariamente, em todo o mundo. Os países estudaram e aplicaram diferentes estratégias para combater a propagação do vírus, a ciência lidou com um dos maiores desafios das últimas décadas e as empresas tiveram de se adaptar com rapidez e eficácia. Pelo caminho, muitos outros acontecimentos marcaram este ano tão atípico, principalmente em matéria de direitos humanos.
Desde o movimento Black Lives Matter, nos EUA, passando pelas manifestações na Nigéria ou em Hong Kong, foram vários os momentos em que as pessoas procuraram na rua quem concordasse em mudar o mundo. As manifestações não teriam o mesmo impacto sem os milhares de cidadãos que se foram juntando, mas, ainda assim, houve quem se destacasse. Aqui, reúnem-se algumas das figuras de proa que bateram o pé ao poder instalado e às instituições políticas e que, em 2020, fizeram questionar e refletir a importância do ser humano no mundo globalizado.
Joshua Wong
Hong Kong
O percurso de Joshua Wong no ativismo teve o primeiro gatilho ainda em criança, quando o pai o levava a visitar os mais pobres, em Hong Kong. Nasceu em 1996, estudou na United Christian College e a dislexia nunca lhe mudou os planos. Ganhou relevância como secretário-geral do partido pró-democracia Demosistō, o grupo que questionou por muito tempo o poder e a liberdade dos cidadãos deste território asiático. Percebeu que a luta não ganhava a dimensão desejada se não tivesse de quebrar as regras e, por isso, organizou uma manifestação que lhe valeu uma pena de prisão.
No início deste mês de dezembro, Wong foi condenado a 13 meses e meio de cadeia por ter encabeçado um protesto, ainda em 2019, em frente à sede da polícia de Hong Kong. O jovem proclamou-se culpado e garantiu que vai continuar na luta: “Sei que o caminho pela frente é difícil, mas vou aguentar-me”, disse.
Os primeiros protestos em Hong Kong iniciaram-se no ano passado e tinham como objetivo repudiar a nova lei de extradição que, segundo os especialistas, poderia expor a população a julgamentos injustos e atos de violência, principalmente para ativistas e jornalistas. Temia-se ainda que a lei concedesse maior influência à China sobre Hong Kong. Este ano, o vírus não pôs fim às manifestações e milhares de pessoas juntaram-se nas ruas contra as exigências chinesas.
Wanchalearm Satsaksit
Tailândia
A Tailândia está a viver a maior revolta juvenil da sua história. Adolescentes e jovens reuniram-se, durante o ano, para promover mudanças na Constituição e questionar os poderes da coroa tailandesa. A saída às ruas teve como principal motivo o desaparecimento de Wanchalearm Satsaksit, que foi raptado em junho à porta da sua casa, no Camboja. Seis meses depois ainda não apareceu, mas graças ao seu ativismo motivou milhares de protestantes a lutar por uma sociedade mais justa.
Satsaksit, de 37 anos, sempre foi uma pedra no sapato para a política do seu país. Começou por ser ativista nas questões de género e dos direitos LGBTQ na Tailândia, mas rapidamente teve de se exilar no Camboja, acusado de quebrar a lei lèse-majesté, uma das mais rígidas do mundo e que proíbe ofender a monarquia.
Fruto do sequestro, os jovens saíram à rua com três importantes objetivos: a dissolução do Parlamento e a realização de novas eleições; o fim da intimidação e assédio por parte do governo para com opositores ao regime; e a reforma da monarquia e consequente revisão da Constituição. Entre símbolos do filme “The Hunger Games” e patos de borracha insufláveis, os jovens não esquecem quem já sofreu às mãos do regime e mantêm a esperança no regresso de Wanchalearm Satsaksit.
Rinu Oduala
Nigéria
Mais a sul no globo, os protestos da Nigéria permaneceram ofuscados pela mediatização do movimento Black Lives Matter, nos EUA. Neste país africano, à semelhança da Tailândia, também os jovens procuraram na rua um novo palco para o ativismo. Reivindicavam uma reforma das forças policiais, principalmente da Unidade Especial Antirroubo (SARS) – uma força de intervenção com histórico de abusos e violações graves dos direitos humanos. Perante as injustiças, Rinu Oduala não ficou parada.
Em outubro de 2020, depois de um vídeo em que, alegadamente, membros do SARS matavam um cidadão, Oduala montou um acampamento em frente ao gabinete do governador da cidade de Lagos. A posição tomada pela jovem de 22 anos comoveu a cidade e fez juntar milhares de jovens no mesmo local. As autoridades tiveram de decretar estado de emergência e fechar a cidade face às proporções que o movimento tinha tomado. No Twitter, a hashtag #EndSARS dominou a rede social por vários dias.
“É desanimador que a nossa boa intenção de acabar com a brutalidade policial nos faça ser rotulados como terroristas”, disse Oduala quando viu a sua conta bancária ser congelada. Graças ao seu ativismo, o governo nigeriano foi obrigado a rever a autoridade da SARS e procedeu a mudanças internas nas forças policiais.
Loujain Alhathloul
Arábia Saudita
“Ser ativista na Arábia Saudita é ser o elo mais fraco. Quando se é mulher, é muito pior”, dizia, em novembro, à VISÃO, o diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, Pedro Neto. Loujain Alhathloul é uma das mulheres sauditas que não se conforma com o regime. É vista como uma inspiração e é uma figura importante na luta pelo feminismo no Médio Oriente. Em 2020, iniciou uma greve de fome pela luta contra as fracas condições em que vivia na cadeia.
Conduziu quando ainda era um direito exclusivamente reservado aos homens, postou fotografias de cabelo curto na internet e candidatou-se às primeiras eleições abertas às mulheres, ainda que o seu nome não tenha aparecido nos boletins de voto. Alhathloul é vista como uma ameaça e, até esta semana, permaneceu presa sem julgamento, por dois anos. Em agosto, iniciou uma greve de fome depois de lhe terem negado a visita da família por várias semanas.
A ativista foi condenada, esta segunda-feira, a quase seis anos de cadeia por “tentar mudar o sistema político do reino e promover uma agenda estrangeira usando a internet”. “Defender os direitos humanos não é terrorismo”, pronunciou-se a ONU. A família diz que não vai desistir de lutar pela sua liberdade. No Twitter, a irmã, Lina Alhathloul, continua a sensibilizar as pessoas para a história da ativista.
Patrisse Khan-Cullors, Alicia Garza e Opal Tometi
Estados Unidos da América
Três nomes porque é impossível nomear apenas uma pessoa à frente do movimento Black Lives Matter. O ano de 2020 trouxe uma das maiores mobilizações mundiais na luta pelos direitos humanos e vai marcar a próxima década. Os protestos, que se iniciaram nos EUA devido ao assassinato de George Floyd, rapidamente se alastraram a todo o mundo, incluindo Portugal. Com o foco na luta contra a violência racial, Patrisse Khan-Cullors, Alicia Garza e Opal Tometi, cofundadoras do movimento, levaram o mundo a questionar o racismo institucionalizado.
Com centenas de manifestações pelo mundo, é difícil associar uma ou mais caras como primeiras figuras na luta pelas vidas negras. Tudo começou em 2013, quando as três ativistas americanas, reconhecendo a importância do mundo digital, criaram a hashtag #BlackLivesMatter, sem saberem ainda que esse seria o mote para o maior protesto de 2020. Nas redes sociais, o termo foi usado milhões de vezes, as pessoas combinavam ajuntamentos e temia-se uma guerra civil nos EUA, o país onde os protestos ganharam as maiores proporções.
Ao longo de vários meses, a luta marcou noticiários, levou governadores a alterarem políticas policiais e pôs em causa o mandato do presidente em ano de eleições. Há sete anos, quando tudo começou, Patrisse Khan-Cullors, Alicia Garza e Opal Tometi, de 37, 39 e 36 anos, respetivamente, não previam a mediatização da hashtag, mas a verdade é que 2020 veio fazer refletir sobre a violência policial.