A mulher chama-se Herlande Mitile, tem 36 anos e apresenta-se sentada numa cadeira de rodas estragada, que não lhe permite sequer pensar em sair da desolada localidade de Lumane Casimir. A 20 quilómetros da capital do país, Port-au-Prince, aquele é o lugar que o Haiti sonhou em tempos transformar num modelo de reconstrução depois daquele dia fatídico de 2010. Antes disso, conta a agência AFP, a jovem comerciante pouco sabia de abalos daquela natureza, um desastre de grau 7 de magnitude. Nem sonhava como aquilo a marcaria para a vida.
No final da tarde daquela terça-feira, 12 de janeiro de 2010, tinham morrido mais de 200 mil pessoas, esmagados, na sua grande maioria pelas estruturas dos prédios construídos fora das normas de segurança. Oito dias depois, os serviços de resgate conseguiram retirá-la debaixo dos escombros. Herlande estava viva, embora gravemente ferida.
Com placas metálicas nos quadris e na coluna vertebral, a mulher recorda-se que ainda viveu três meses numa das centenas de acampamentos improvisados que surgiram depois do desastre. Até que o Estado ofereceu casas em Lumane Casimir para 50 pessoas que tinham ficado incapacitadas e Herlande mudou-se para lá. A intenção apregoada pelo governo do país era transformar aquela povoação, assim chamada em homenagem a uma cantora haitiana, num modelo de urbanismo. Mas, uma década depois, toda a construção ali em volta segue sem registos de propriedade – nem segurança maior.
É que, tal como centenas de outras obras públicas inacabadas, aquela também seria financiada pelo fundo conhecido como Petrocaribe (um acordo em matéria de petróleo, entre a Venezuela e outros países da região), programa acusado de falta de transparência e que já motivou uma série de manifestações, depois das denúncias de corrupção. Sem se poder deslocar para procurar emprego, e sem direito a qualquer tipo de ajuda financeira, Herlande depende por completo da ajuda dos vizinhos.
“Às vezes, só penso em morrer”, segue a mulher, baixinho para que as filhas, hoje com 12 e 16 anos, não oiçam a confissão. De resto, são elas que arranjam o que comer: quando os vizinhos cozinham, chamam-nas para irem lá com uma tigela. “Antes do terremoto, conseguíamos desenrascar-nos. Agora sinto-me tão incapaz como um bebé. Se ficássemos à espera das promessas do Estado, já estávamos mortas.”
O relato chega-nos do país oficialmente mais pobre do hemisfério ocidental – e revela bem o desconsolo imenso que invadiu praticamente todo o país. A pobreza e a miséria de boa parte da população ajudam a explicar boa parte dos tumultos políticos e sociais, mas aquele é também um dos lugares do planeta que não tem escapado à fúria da natureza – em 2016, foi o Mathews, um furacão de categoria 4 numa escala de 5, a provocar quase um milhão de mortos e a arrasar o pouco que sobrava de pé, ainda o país não se refizera da tragédia de 2010.
Depois do terramoto, e apesar de 60 por cento do sistema de saúde ter sido destruído, e 10 por cento da equipa médica do país ter perdido a vida ou deixado o Haiti, depois do terramoto, a organização Médicos Sem Fronteiras – que também duas das suas três instalações desabar – montou uma das maiores operações de emergência de todos os tempos, tratando mais de 358 mil pessoas afetadas em apenas 10 meses. Cinco anos depois, quando a VISÃO lá esteve, havia uns ténues sinais de regresso à vida. Daí que este ponto de situação, apresentado dez anos depois, seja tão desolador.
Nem paz nem pão nem saúde nem…
Há pouco mais de um mês, novembro de 2019, a preocupação com o absoluto estado de sítio no país era publicamente partilhada pela ONU, depois de o próprio Alto Comissariado para os Direitos Humanos ter pedido uma investigação independente sobre as violações cometidas no país, abalado por uma onda de protestos desde setembro, que já levara a mais de 80 mortos e 40 feridos. Segundo a nota divulgada, havia uma “profunda preocupação” com a crise prolongada e o seu impacto na população – em matéria de saúde, alimentação, educação… É que, desde o início do ano letivo, a maioria dos alunos não consegue ir à escola. Com a violência e as barricadas, tornou-se ainda mais difícil o acesso à comida, à água potável, aos medicamentos e até ao combustível. Até os profissionais de saúde enfrentam dificuldades para chegarem ao seu local de trabalho – e o mundo ainda nem sabia das centenas de filhos que os soldados da ONU tinham deixado para trás, depois de abusarem sexualmente de menores e engravidarem uma série de adolescentes.
Mas essa nem era a única culpa no cartório da organização que, pouco depois do terramoto, seria responsável pela epidemia de cólera que inundou aquele país. Um mea culpa feito em agosto de 2016, quando assumiu que a bactéria que contaminou 770 mil pessoas, e fez mais dez mil mortos, foi introduzida no principal rio haitiano devido ao esgoto de uma base das tropas da paz, trazida por soldados que tinham estado no Nepal.
Perante tudo isto, não surpreende o cenário de tragédia absoluta agora apresentado pelos Médicos Sem Fronteiras (MSF) sobre um sistema de saúde em estado de deterioração imensa, mas que ainda assim consegue agravar-se de dia para dia. A organização bem tenta expandir esforços para dar resposta às necessidades prementes da população – como é o caso de um centro de trauma, em Port-au-Prince – e aumentar o apoio às outras unidades, na capital e também nas zonas rurais do país. O certo é que o sistema está outra vez à beira do colapso: afinal, o apoio internacional que o país recebeu na sequência do terramoto simplesmente esfumou-se – e muito do que foi prometido nunca se concretizou.
Isso explica que o centro de estabilização de emergência dos MSF na região de Martissant, em Port-auPrince, tenha recebido uma média de 2500 doentes por mês, 10 por cento deles com ferimentos de bala, lacerações ou outras lesões causadas por violência. Há ainda o hospital do distrito de Drouillard, a única estrutura médica no país para pessoas com queimaduras graves, que chegou a ter mais de 140 pessoas a ser tratadas por queimaduras graves causadas por acidentes. Em Delmas, onde os mesmos MSF mantêm um programa para sobreviventes de violência sexual, o número de atendimentos só diminuiu durante o período de violência intensa porque era muito difícil chegar até lá.
Nas zonas rurais, o efeito da crise nos serviços de saúde é ainda maior. Como em Port-à-Piment, no sudoeste do Haiti, onde MSF há muito tempo apoia serviços de saúde materna e de emergência na região. Em casos graves, quando a hospitalização é necessária, a dificuldade para encontrar um lugar para onde encaminhar os pacientes é ainda maior: o hospital de referência e o banco de sangue da região fecharam em outubro passado, depois de serem saqueados. Às vezes, demoram cinco horas a encontrar um hospital que possa aceitá-los. No norte, onde MSF se preparava para abrir duas unidades de atendimento a sobreviventes de violência de género, as atividades não começaram devido à falta de combustível e ao difícil acesso.
E outros relatos que nos chegam não diferem de tom. Como por exemplo o de Rob Freishat, citado pela CNN, depois de passar uma semana no hospital particular de Sacre Coeur, na cidade haitiana de Milot, no norte do país, no início de dezembro. Só naqueles oito dias, oito dos seus pequenos pacientes morreram de fome. Nas fotos que tirou quando chegou, as crianças já parecem estar a desaparecer, dentro de umas fraldas três vezes maiores do que as circunferências e das grossas mãos enluvadas da equipa médica. Todos tinham menos de 2 anos quando morreram.
“Ao longo dos anos, vi muitas crianças no Haiti com desnutrição adoecerem com infeções ou algo mais e morrerem. Triste, mas não incomum. Esta é a primeira vez que as vejo literalmente a morrer de fome”, disse Freishtat, que é também o chefe de Medicina de Emergência do Children’s National Hospital em Washington e que, várias vezes, ofereceu as suas habilidades em pediatria no Haiti. Todos os anos, na última década.