Estávamos em 2006 e a conjugação parecia perfeita. De um lado, o arquiteto britânico Norman Foster, famoso pelos seus projetos de alta tecnologia. Do outro, o Governo do emirado de Abu Dhabi, apostado em gastar o que fosse preciso na criação da “primeira cidade de carbono zero”, sustentada na high tech e nas energias renováveis. Erguer uma urbe assim, no meio do deserto, fazia todo o sentido, quando as próprias autoridades do emirado estimam que as reservas de petróleo podem esgotar-se dentro de 50 anos.
À cidade sem combustíveis fósseis nem resíduos foi dado o nome de Masdar. Para a sua construção, um fundo público do Abu Dhabi logo disponibilizou cerca de 19 mil milhões de euros, uma fortuna à altura do ambicioso projeto de Norman Foster, desenhado para 50 mil habitantes e 40 mil trabalhadores vindos todos os dias de fora da cidade. Além de toda a urbe ser alimentada por energias renováveis, de apenas poderem circular automóveis elétricos, e do sofisticado sistema de tratamento e reciclagem das águas, uma torre de vento recolhe o ar fresco que circula sobre o local e espalha-o pelas ruas, amenizando as temperaturas crematórias que ali se fazem sentir. Também nas artérias mais interiores foram criadas vastas zonas de sombra.
O mundo começou por espantar-se com este “paradigma de mudança na sustentabilidade citadina”. Mas, mais de dez anos depois, o falhanço é evidente, por exemplo, no pioneiro sistema de transporte público, que devia ter 100 estações e cuja construção parou nas primeiras duas. O que demonstra à saciedade o fracasso, porém, é o número atual de habitantes da imensa Masdar: cerca de dois mil, que se dividem entre as equipas dos escritórios de três centenas de empresas que ali mantêm representação e outros tantos estudantes que tiram partido do alojamento e ensino gratuitos no Instituto de Ciência e Tecnologia.
Do que a urbe imaginada por Norman Foster, e financiada pelos fundos do petróleo de Abu Dhabi, já não se livra, hoje, é do epíteto de “primeira cidade-fantasma verde do mundo”. Mas o Governo do emirado insiste em derramar dinheiro sobre o projeto e diz agora que Masdar será viável, sob todos os pontos de vista, a partir de 2030.
UM BORDEL NO DESERTO
Porque fracassa um projeto milionário como o de Masdar? “Falhou na localização, cortou veias de ligação a outros núcleos urbanos, considerou-se que a cidade ia crescer e viver sozinha, que o dinheiro tudo resolveria – e não resolveu”, comenta à VISÃO a arquiteta Ana Cláudia Oliveira, que se doutourou com uma tese sobre climate smart cities. “As redes de fluxo alimentam as cidades, e cidades sem fluxo, passe a redundância, não se alimentam”, acrescenta.
Mas a suposta smart city, também “fantasma”, que se tornou num destino de culto para viajantes em busca do insólito servido em dose gigante é a chinesa Ordos, no deserto com o mesmo nome, na Mongólia Interior. Construída de raíz a partir de 2005, parecia ser animada por um objetivo meritório do Governo de Pequim. A urbe destinar-se-ia aos pequenos agricultores da região, que se encontravam em grandes dificuldades, e na cidade podiam requalificar-se em termos profissionais e financeiros, melhorando o seu nível de vida.
No entanto, os preços proibitivos dos apartamentos dos arranha-céus que enxameiam Ordos não estavam, obviamente, ao alcance da população rural que as autoridades pretendiam deslocalizar, evitando, ao mesmo tempo, que essas pessoas migrassem para as já sobrelotadas cidades existentes. Resultado: 12 anos depois, uma urbe construída para 1,5 milhões de habitantes só alberga, hoje, cerca de 20 mil pessoas.
Pelos relatos em blogues dos turistas que a visitam, Ordos surge como uma espécie de metáfora de um capitalismo delirante. De Pequim, continua a haver dois voos diários para o aeroporto da “cidade que nunca aconteceu”, como escreveu um viajante. E logo aí, no aeroporto de Ordos, dá-se o primeiro embate com o absurdo. Desenhado com uma arquitetura futurista, o edifício está enfeitado por fontes e plantas, enquanto efígies de cavalos espreitam do teto. Iluminadas, as escadas rolantes brilham em tons de verde e azul. Há cafés de estilo chique e um imenso mural de pinturas que retratam a vida de Gengis Khan. Mas, perante tamanha opulência, “o aeroporto estava quase vazio”, descreve outro turista.
Os autocarros que transportam os viajantes para o centro da cidade são luxuosos, e pelas largas e bem cuidadas estradas passa um automóvel de vez em quando. No percurso surgem, uns atrás dos outros, esqueletos de arranha-céus abandonados pelos seus promotores imobiliários, de 40 e 50 andares, e ainda com guindastes por perto. Mas no hotel nada falta, incluindo um recheado mini-bar no quarto.
O ex-líbris da cidade é uma grande estátua de um cavalo posicionado no meio de uma esfera, com esta inscrição: “Ordos, A Ilustre Cidade Turística da China”. Os viajantes, porém, reparam bem mais no estrambólico design do museu, que nem conseguem descrever. Apenas informam que o projeto é de um ateliê chamado Mad Architects.
Em passeios fora do circuito convencional, com algum dos escassos taxistas como cicerone, houve turistas que se depararam, num beco, com as luzes cor de rosa de um bordel. A frontaria, relataram, era toda em vidro e deixava ver meia dúzia de raparigas em exposição, vestidas apenas com lingerie. E há ainda um estádio de futebol, deserto, mas que à noite é iluminado.
Por norma, a desconcertante visita a Ordos termina num café situado no último andar de um dos poucos prédios ainda habitados. O atendimento é impecável. Um friso de raparigas sorridentes recebe os clientes à saída do elevador e encaminha-os para as melhores mesas, junto às janelas. No horizonte estende-se “uma metrópole surreal e desolada”, avisa um turista.
O que os viajantes mais veem são trabalhadores de manutenção municipal, sobretudo varredores. Os preços das casas desceram substancialmente – mas todos os dias há habitantes que abandonam a cidade. Nem podia ser de outra forma. “É um dos piores exemplos de cidade tecnológica construída de raíz”, diz a arquiteta Ana Cláudia Oliveira. “Não houve, sequer, uma estratégia de ocupação.” As autoridades, porém, insistem em convencer as famílias rurais da região a mudarem-se para a cidade-fantasma. Descortinam-se, no verdadeiro sentido da expressão, voluntários à força.