O New York Times fez uma lista: “as 282 pessoas, lugares e coisas que Donald Trump insultou”, a maior parte delas repetidas vezes. São milhares de calúnias, insinuações e insultos proferidos pelo milionário estrela da reality tv. E ninguém escapa. Desde os “violadores mexicanos” à memória dos heróis de guerra – John McCain ou Humayun Khan, por exemplo – passando por Alicia Machado, a ex-miss universo a quem o candidato não se arrepende de ter chamado miss Piggy por ser gorda ou miss mulher a dias por ser latina. A coisa é de tal forma grave que a revista Time criou um “gerador de insultos Donald Trump”, uma app que devolve coisas como “Carlos é um palhaço totalmente sobreavaliado”, “um lixo”, “burro como uma pedra” ou ainda um tipo de quem se espera “seja despedido com um cão”. É por um nome e aguardar a resposta da máquina. De quatro em quatro anos os jornais as revistas e as televisões americanas afirmam que esta é a campanha eleitoral mais suja da história dos EUA. Será desta?
As frases absolutas tendem a trair-nos. Não, estas não são as presidenciais de mais baixo nível da história dos EUA. Nem as mais mentirosas. Há muitos exemplos. Em 1800 os apaniguados de John Adams afirmaram que Thomas Jefferson se preparava para criar “uma nação em que o assassínio, o roubo, o adultério, a prostituição e o incesto serão abertamente ensinados e praticados”. A resposta dos fieis de Jefferson? “John Adams não se comporta nem como uma mulher nem como um homem, sendo dono, ao invés, de um medonho caráter hermafrodita”. Jefferson, é sabido, ganhou a corrida.
As jogadas desonestas fazem parte da política. Quando o lado de Hillary inventou que Bernie Sanders queria acabar com o Obamacare, ou quando o aparelho democrata tentou prejudicá-lo planeando por a correr que era ateu (na realidade é judeu) sabia muito bem que estava a pisar a linha. Mas não é nada de novo. Em 1828 um jornal que apoiava John Quincy Adams (filho do anterior) contra Andrew Jackson, um general conhecido pelos seus feitos na guerra de 1812, não só denegriu os seus atos, chamando-lhe “assassino” (de desertores) como escreveu: “a mãe do general Jackson era uma prostituta comum trazida para este país pelos soldados ingleses. Depois casou-se com um mulato de quem teve uma extensa prole, de que o general Jackson faz parte”. A campanha de Jackson urdiu um rumor segundo o qual, enquanto tradutor na corte do Czar, Adams servia de intermediário – chulo – entre raparigas americanas e o soberano russo. Jackson tornou-se o 7º presidente dos EUA e cumpriu dois mandatos.
A longa linhagem da mentira
Talvez a mentira, ou o exagero. Talvez sejam eles as marcas campeãs destas eleições. Hillary não tem sido propriamente honesta quanto à polémica dos e-mails (ver caixa). Já Trump mentiu descaradamente inúmeras vezes – por exemplo quando disse que nunca apoiou a guerra do Iraque ou a desastrosa intervenção na Líbia. E exagerou outras tantas – basta lembrar que há dias se lembrou de afirmar que Hillary iria começar a terceira guerra mundial na Síria, uma manifesta hipérbole.
Mas não, também não. O medo algo irracional de que um Presidente pudesse deliberadamente começar um conflito atómico foi explorado pela primeira vez por Lyndon B. Johnson, em 1964, naquela que é considerada uma das primeiras propagandas negativas da história. Johnson enfrentava um anticomunista convicto, Barry Goldwater, que não excluía o uso do nuclear como forma de derrotar a URSS. O anúncio da margarida (Daisy ad) mostra uma criança de três anos a desfolhar uma flor, enquanto conta até nove. O número dez já é proferido pelo narrador e trata-se, afinal, do último algarismo de uma contagem decrescente para o disparo do míssil que vai iniciar o holocausto. “Isto é o que está em jogo”, diz o narrador. O anúncio foi considerado uma peça fundamental na vitória de Johnson e ainda hoje é considerado polémico.
Quanto à mentira, ela tem no país uma longa linhagem. Muito antes de George W. Bush ter dado desculpas esfarrapadas para fugir à guerra no Vietname ou de Al Gore reclamar para si o título de inventor da internet, muitos outros recorreram a ela. Reagan afirmou uma vez que as árvores poluíam mais que os carros, inventou que estivera presente na libertação dos campos de concentração nazis e que a taxa de desemprego começara a subir antes de ele chegar à Casa Branca. Tinha um tal desprezo pela realidade factual que foi sob os seus mandatos e por sua causa que se iniciou a prática jornalística do fact checking aos discursos presidenciais.
Não, Trump não é o maior mentiroso – apesar de ter ganho o prémio Petas do Ano do Politifact e de receber regularmente as distinções de “Quatro Pinóquios” e “Pants on Fire”, respetivamente as piores classificações possíveis do jornalismo de verificação de factos do Politico e do Washington Post. Foi o que se passou, por exemplo, quando afirmou ter visto “milhares e milhares” de muçulmanos “a celebrarem a queda das torres” [nos atentados do 11 de setembro de 2001], um comentário tão descarado que nem se destaca especialmente de outros de igual calibre. Nem sequer é o pior mentiroso de todos. Há um outro aldrabão que, qualitativamente, pelo menos, lhe ganha: Nixon, um intrujão patológico. Como diria Hannah Arendt: “Nunca ninguém teve dúvidas de que a politica e a verdade não se relacionam muito bem uma com a outra”.
Eu-próprio-senhor-do-mundo
Mas há algo em que em que realmente estas eleições se destacam: elas são as únicas em que está presente o grande, o próprio, o único e inimitável “The Donald” – ele sim bem colocado para merecer o título de pior candidato presidencial da história dos EUA. Não é só pela mentiras sucessivas (uma falsidade a cada cinco minutos de discurso público), pelos insultos desbragados, pela recusa em aceitar o resultado eleitoral, pelas as ameaças latentes de violência. Nem pelas mulheres que o acusam de assédio ou má conduta sexual, ou as piscadelas de olho à Rússia de Vladimir Putin. Nada disso é novo.
Trump é um candidato cuja solução para todos os problemas passa pelo seu ego. A sua campanha é baseada numa tautologia infantil, e até doentia: “Eu sou o maior e como eu sou o maior, sou capaz de resolver todos os problemas do mundo”, parece dizer-nos a toda a hora. Como nota Chris Wilson, um dos estrategas de Ted Cruz: “Quando se está perante alguém tão megalómano como Trump, essa pessoa recusar-se-á sempre a admitir que fez algo de errado – por muito esmagadoras que as provas sejam. Assim, na cabeça dele, as eleições têm que ser fraudulentas. Se ele não as ganha é porque são fraudulentas. Mas a verdade é que ele fez uma das piores campanhas da história”.
É um homem violento, dir-se-ia que abusador. Uma sua tática primordial parece ser a de incendiar e fugir para a frente. Agredir com violência na esperança que fiquemos paralisados de forma a que possa seguir o seu caminho. Recorde-se que, da última vez que se deparou com um processo eleitoral “corrompido” – a corrida para a nomeação do candidato republicano – Trump ameaçou que caso não ganhasse “haverá motins”. Ou lembre-se que tentou, no segundo debate televisivo, intimidar Hillary com a cadeia – aliás, num dos seus cartazes de propaganda a democrata figura mesmo atrás das grades. Que se dispõe a matar não só os terroristas mas também as suas famílias. Que quer reativar a tortura e registar todos os muçulmanos. E que não sabe se a decisão de mandar os nipo-americanos para campos de concentração durante a segunda guerra mundial foi uma má ideia.
Nas suas táticas – escreve David Greenberg, professor de história e jornalismo na universidade de Rutgers – o “antecedente mais próximo não é um presidente nem um candidato presidencial mas um senador”. Quem? O infame Joe McCarty, da época da “caça às bruxas” comunistas americanas. “McCarty, à semelhança de Trump, punha-se sob os holofotes graças a declarações ultrajantes, negligentes e mentirosas. Mas, quando a imprensa conseguia desmontar as suas maquinações, ele já tinha partido para a próxima.”
Trump é tão estridente que consegue até fazer esquecer o pior lado de Hillary – a sua duvidosa relação com Wall Street. Nancy Fraser, filósofa e feminista de esquerda americana, define o candidato republicano como alguém cuja moral sexual parecesse ter congelado num número da revista Playboy dos anos 50. Ela nota, em entrevista à revista francesa L’Obs, que no dia em que foi divulgada a gravação, feita em 2005, de Donald Trump a gabar-se de cometer crimes sexuais, a Wikileaks punha cá fora os discursos pagos da candidata perante banqueiros e firmas de investimento financeiro – algo que a democrata sempre se negara a tornar público. Mas, perante a avalanche noticiosa sobre Trump, a atenção dada à duplicidade de Clinton foi mínima.
“Chamar a Donald Trump narcísico é um insulto para os narcísicos encartados” – escreve Gautam Mukunda, professor em Harvard. “Nenhum presidente sequer se aproxima vagamente do narcisismo de Trump, mas o mitologicamente catastrófico CEO da Vivendi que assinava ‘Jean Marie Messier, Eu-Próprio-Senhor-do-Mundo’, anda próximo”. Gautam desenvolveu uma chave de características históricas para definir se um candidato presidencial outsider fará um mandato bom ou mau. A ideologia extremada, a total ausência de experiência política, a doença mental (narcísica) e a vantagem competitiva independente do mérito – a herança de 200 milhões de seu pai – fariam da nomeação de “The Donald”, “o ato mais irresponsável dos últimos 150 anos”. E esta, sim, é uma frase absoluta.
(Artigo publicado na VISÃO 1235, de 3 de novembro)