É um pequeno restaurante venezuelano, com um toque de modernidade dado pelo mobiliário feito de paletes. Fica na Parede, no concelho de Cascais, a uns 200 metros da costa e da estação de caminhos de ferro. É aqui que Juan Cárdenas, 49 anos, com a mulher, Laura Morán, 52 anos, tomam uma cerveja ao final da tarde, enquanto aguardam pelo jornalista da VISÃO com quem marcaram um encontro. “A primeira impressão que tive quando cheguei a Portugal é que podia sair à rua. Que isto era possível”, nota Laura, emocionada q.b., enquanto abarca com os braços o telemóvel e a mala, em cima da mesa.
Nas garrafas de cerveja formam-se bolhinhas de água: está quente e ventoso, o dia, como muitos deste início de agosto. No interior do estabelecimento prepara-se arepa, uma espécie de bolo do caco feito de farinha de milho e servido com recheio de carne de vaca ou de frango com vegetais. Também há fotografias de Caracas que omitem os bairros de barracas mas cortejam as suas colinas verdes. “Hoje, a Venezuela é o país mais inseguro do mundo. Com filhos em idade de estudar, que têm de viver, é inviável”, nota Juan. Laura acena com a cabeça: foi assaltada três vezes, no seu país natal. E sequestraram a filha, hoje com 26 anos, num autocarro. “Na Venezuela, sabes que sais de casa mas nunca sabes se voltas”, declara.
O casal há muito que desejava abandonar o país. Há uns anos tinham tentado migrar para a Holanda, ensaio gorado pela falta de documentação, de trabalho e pelas dificuldades com a língua. Uma prima acabou por ser a ponte para se radicarem em Portugal. Juan Cárdenas trabalha na banca, fazendo uso da sua experiência de vários anos como engenheiro informático. Laura conseguiu emprego numa teleoperadora, onde é valorizado o seu domínio do castelhano. A filha, que estudou jornalismo na Venezuela mas nunca trabalhou no setor, é esteticista em Portugal. “Tínhamos uma empresa de serviços informáticos. Trabalhávamos para o banco Paribas, para a embaixada francesa. Vendemos tudo o que podíamos e viemos embora.” Hoje não alimentam a ideia de regressar, embora Laura queira viver os últimos dias da sua vida na terra onde nasceu.
Ao lado do esfuziante Juan está o recatado Alejandro Ayala, que tem 41 anos mas parece ter cruzado há pouco os 30. Chegou em 2015, também é engenheiro informático e emparceira com Laura na teleoperadora. “Portugal era o destino mais fácil, por causa da documentação. A minha mulher é portuguesa”, explica este homem louro e calado, num castelhano de sotaque caribenho.
Alejandro decidiu atravessar o Atlântico por causa de duas tentativas de sequestro. “Uma vez estava sozinho. Da outra, com a minha mulher e a minha filha”, conta. Foram ambas à porta de casa, quando entrava com o carro na garagem. Falhados mas premonitórios, os sequestros levaram-no a desfazer-se das duas empresas de informática que tinha em Caracas, entregando a exploração a um amigo. Gostava de fazer algo de diferente, em Portugal, de sair da teleoperadora, mas para já está só na fase de planos. “Aqui são precisos mais requisitos e mais formação para se trabalhar em qualquer coisa”, nota.
76 homicídios por dia
Juan, Laura e Alejandro fazem parte do crescente número de venezuelanos que têm abandonado o seu país: 3 a 4 milhões nos últimos dois anos, assegura Juan Cárdenas. Segundo o Pew Research Center, até agosto os pedidos de asilo de venezuelanos nos EUA aumentaram 168% face ao mesmo período do ano passado. “Em 2015 ajudámos 17 famílias vindas da Venezuela. Este ano, até julho, já demos apoio a 47”, nota Christian Höhn, 38 anos, presidente da Venexos, ONG portuguesa de ajuda humanitária por ele fundada. O êxodo, embora sem dados oficiais, alargou-se primeiro aos países vizinhos – Colômbia, Panamá, Chile, Peru –, mas também aos EUA e à Europa. “Todos os dias temos notícias de pessoas que chegam a Madrid, sem papéis: são deportadas”, garante Christian, filho de uma alemã radicada há mais de 40 anos nos arredores de Caracas, onde ainda vive.
Durante muitos anos destino de emigração europeia – italiana, portuguesa, espanhola –, a crise económica, os desvarios políticos e a situação social tornaram o país num fornecedor de emigrantes. O caldo social potenciou também a que é, para muitos, a principal praga do país: o crime violento. Em 2015, segundo dados do governo de Nicolás Maduro, 17 778 pessoas foram assassinadas, uma média de 49 por dia, o que representaria uma descida ligeira em relação ao ano anterior. Os dados do Observatorio Venezolano de Violencia, contudo, dão outro retrato: 27 875 mortes violentas ou 76 por dia, no ano passado. “O incremento da violência acompanhou a deterioração geral das condições de vida da população venezuelana: o empobrecimento, a escassez, a inflação, o agravamento das condições laborais dos trabalhadores e assalariados, a diminuição da disponibilidade e variedade de alimentos e medicamentos, a debilidade crescente dos serviços de saúde e de educação, o incremento do medo e a perda do espaço público”, diagnostica o observatório no seu relatório anual.
Para Francisco Fragosa, 45 anos, professor de Matemática numa escola internacional em Portugal, foram as filas de 15 horas para abastecer o carro, em 2002, que o levaram a sair. “Houve uma greve geral da empresa de petróleo da Venezuela e estive na fila entre as 4 da manhã e as 7 da tarde. Nesse dia, decidi que tinha de partir”, conta. Primeiro foi para o Peru, onde a família se lhe juntou, no ano seguinte. E dali, graças ao contacto com um colega, veio para Portugal, em resposta a um convite para ensinar na escola onde ainda hoje trabalha.
Segundo Francisco, a popularidade de Chávez foi consequência da corrupção existente antes dele. “Mais de 70% das pessoas deram-lhe o voto. Os meus pais, de direita, conservadores e católicos, votaram nele”, conta. “Era fácil ser popular com o dinheiro do petróleo”, nota Francisco, que reconhece um certo fascínio pela personalidade de Chávez. Já Maduro nenhuma simpatia lhe inspira. “O melhor da equipa anterior deixou o governo e ele conduz o país com os restos”, critica, lembrando as filas de horas para comprar alimentos e os medicamentos que envia para a mãe, por conhecidos que viajam para a Venezuela. “Quando se viveu em vários países, a ideologia deixa de ser relevante: não é importante a cor do gato, mas que ele cace ratos.”
Um sapo numa tina
Hugo Chávez liderou a Venezuela durante 14 anos. Em 1992, tentou um golpe de Estado, razão pela qual esteve preso durante dois anos. Em 1998, foi eleito Presidente, tendo governado até 2013, ano em que morreu de cancro. No início do milénio, graças às receitas do petróleo – a Venezuela era e é o país com as maiores reservas do mundo –, Chávez deu início a um programa de reformas. À nacionalização de várias empresas seguiram-se programas sociais para os mais desfavorecidos, na área da habitação, educação e saúde. A queda nos preços do petróleo, após a crise de 2008, viria provar que o chavismo era insustentável, assim como as políticas de controlo de preços e de défices elevados que sustentavam as reformas socialistas. Nicolás Maduro, que era o vice-presidente de Chávez, viria a ser eleito líder do país, em 2013. Desde então, a situação económica, o crime e a instabilidade social só pioraram.
“O que resta do chavismo hoje não entusiasma mais do que 20% da população”, nota Juan Cárdenas. “Se pegar num sapo e o atirar para dentro de água quente, ele salta e foge. Mas se o colocar dentro de uma tina de água fria e a for aquecendo lentamente, ele morre”, metaforiza Juan a propósito do processo que conduziu Chávez ao poder e lho garantiu até à sua morte.
Portugueses querem sair
Sérgio Marques, secretário dos Assuntos Parlamentares e Europeus do Governo Regional da Madeira, visitou durante duas semanas a Venezuela, no início de julho. Dos 350 mil portugueses e lusodescendentes que se estima viverem ali, cerca de 80% são originários do arquipélago da Madeira. “Há muitos problemas: dificuldade no acesso a bens básicos, como roupa ou comida. Uma qualidade muito baixa dos cuidados de saúde. E um enorme sentimento de insegurança entre os portugueses, sobretudo porque são proprietários de pequenos negócios”, resume o governante, que visitou várias zonas do país, tendo notado maior dificuldade nos abastecimentos fora das grandes cidades.
Nos contactos que manteve com a comunidade, Sérgio Marques reparou que são os de segunda e de terceira geração que mais desejam abandonar o país. “Entre os portugueses de primeira geração, o sentimento maioritário é de resistência. Já os das gerações seguintes estão a sair de forma muito significativa”, diz. O governo português, em articulação com o regional, tem um plano de contingência para o caso da situação na Venezuela piorar. “Só será acionado numa situação de emergência e prevê ações para facilitar o regresso dos emigrantes, para os alojar e programas de Saúde”, explica o secretário regional.
Ana Maria Abreu, presidente da direção nacional da associação Academia da Espetada, na Venezuela, confirma que há um grande desejo dos emigrantes em regressarem a Portugal. “A maioria das pessoas diz que não consegue viver com esta insegurança, porque já passou por muitas situações difíceis: roubos de casas, de comércios, sequestros. Os jovens não visualizam um futuro e é impossível, mesmo com um bom salário, comprar um carro, ou um apartamento, nem sequer a mobília…”, nota numa resposta escrita a perguntas colocadas pela VISÃO. Para esta líder da comunidade portuguesa, a insegurança é o maior dos problemas. “Os sequestros já afetam não só os cidadãos ‘endinheirados’ mas qualquer cidadão comum. Agora há os chamados “sequestros expresso”, conta.
Os sequestros expresso
A nova modalidade seguiu-se aos raptos montados a partir da Colômbia, que tinham os industriais e grandes proprietários por alvo. Duram menos de 48 horas e pretendem sacar todo o dinheiro que as vítimas possam ter nas suas contas bancárias. Ou seja, qualquer pessoa, qualquer que seja o seu nível de riqueza, é hoje um alvo.
Como lidam os portugueses com a situação? “A comunidade criou as suas próprias regras: menos deslocações, carros blindados, andar com discrição, quase invisíveis, contratação de guarda-costas. Os grandes empresários preferem viver mais tempo fora do país do que na Venezuela, a acompanhar os seus negócios”, afirma Ana Maria Abreu. A presidente da Academia da Espetada queixa-se também da não substituição, nos últimos dois anos, do oficial de ligação da Polícia Judiciária que estava colocado na embaixada portuguesa de Caracas. “Apesar das numerosas promessas políticas do governo português”, regista.
Deixemos agora a voz de Ana a ecoar de Caracas e regressemos a Lisboa. Chamemos Ana e Carlos a este casal de lusodescendentes que já dobrou os 40 anos. Eles não querem ser identificados ou fotografados por medo dos raptos e do impacto das suas declarações nos negócios que mantêm na Venezuela.
Há cinco anos, Carlos negociou o sequestro de um primo. “Lá, a vida não vale nada!”, afirma Ana. A do primo valeu 100 mil dólares que recolheram “em caixas de bolachas”, contados por toda a família à mesa. A comunidade portuguesa contribuiu. “Acontece tantas vezes, que já há um acordo tácito para as pessoas ajudarem com dinheiro no caso de um sequestro”, explica Carlos, que levou o resgate aos raptores numa favela de Caracas, de madrugada.
Hoje, o casal só circula em carro blindado na Venezuela. Carlos tem um antigo polícia como guarda-costas. Quando estão na Venezuela – cada vez menos, porque entretanto investiram em Portugal para driblar a crise –, abrem “oito portas blindadas” antes de saírem de casa e instalaram alarme próprio no apartamento, situado num condomínio privado. “Estamos presos em casa”, diz Ana. Também evitam circular em Caracas depois das sete da tarde. Na capital da Venezuela mantêm duas empresas que se dedicam à produção de bens de consumo em plástico. Empregam 100 trabalhadores. São a segunda geração de famílias que emigraram para a Venezuela na década de 50, mas as filhas, de 22 e 19 anos, já estão há quatro anos em Lisboa, onde estudam.
A emigração portuguesa
Remonta a meados do século XIX a presença de portugueses na Venezuela. Segundo o historiador António Abreu Xavier, investigador da Universidade de Évora, os portugueses que viviam no país resgatado por Simón Bolívar à Espanha resumiam-se a uns quanto comerciantes. Vinho, produtos frescos e cestaria, embarcados na Madeira, onde escalavam os barcos com destino à América Central, eram as principais exportações de Portugal.
Em 1935, além dos comerciantes e de alguns pioneiros que se dedicavam à agricultura, começaram a ser recrutados trabalhadores portugueses para a refinaria de Curaçau, então parte das Antilhas Holandesas. Foi ali que o governo da Venezuela passou a agenciar imigrantes. Outros começaram a chegar ao país espontaneamente. A partir de meados da década de 1950, com a política de portas abertas adotada pela Venezuela, cada vez mais portugueses, do continente (zona norte do País) e da Madeira, avançam para a sua terra nova. No final dos anos 70, com a reorientação da imigração portuguesa do Norte para França, o peso dos madeirenses nos fluxos para a Venezuela passou a ser dominante. Do pequeno comércio (talhos, padarias, restaurantes) fizeram a atividade dominante para se integrarem no seu novo país.
A partir dos anos 80, os fluxos de portugueses começaram a diminuir. É esse o retrato dado pelas estatísticas oficiais da Venezuela: se na década de 1980 se registava a presença de 25 mil portugueses, na seguinte foram detetados apenas 15 mil. A naturalização de portugueses de primeira geração e o registo dos seus filhos como venezuelanos também ajudam a compreender a diminuição.
Se a partir dos anos 50 foi fácil para muitos partir, hoje é cada vez mais difícil sair. No início de 2016, segundo a Associação Internacional do Transporte Aéreo, a dívida às companhias que operavam para a Venezuela ascendia a 3,4 mil milhões de euros. O montante diz respeito a bilhetes vendidos entre 2012 e 2015, em bolívares. Como o governo não autoriza a sua conversão em dólares as companhias aéreas não recebem. Por essa razão, muitas – como a Latam ou a Lufthansa – deixaram de ter a Venezuela como destino.
Um bilhete por 53 salários
A TAP mantém as três frequências semanais para Caracas. Nunca abandonou aquele destino, embora tenha um crédito por cobrar de 91,4 milhões de euros, segundo o porta-voz da companhia aérea, António Monteiro. “Sendo esta uma linha muito sensível para a comunidade portuguesa, a TAP desenvolve os esforços ao seu alcance para manter a sua operação”, justifica. Nos últimos dois anos, contudo, a companhia só vende bilhetes em Caracas em dólares. “É, neste momento, a única forma de garantir que a TAP recebe o correspondente ao produto que comercializa”, afirma António Monteiro.
Segundo um depoimento recolhido pela VISÃO junto de uma hospedeira da companhia aérea portuguesa, as tripulações dos voos da TAP também foram deslocadas, pernoitando agora num hotel nas imediações do aeroporto. “É por questões de segurança”, assegura.
A TAP, através do seu porta-voz, garante apenas que, “na procura das melhores condições, de preço, conforto para os tripulantes e operacionalidade, a TAP negoceia regularmente com as diversas unidades hoteleiras as melhores condições.”
Por causa da desvalorização da moeda venezuelana, comprar uma viagem de avião para o exterior está ao alcance de muito poucos. O salário mínimo é de 15 mil bolívares e, à taxa do mercado negro, isso corresponde apenas a 15 dólares. “Hoje são necessários 53 meses de salário para comprar um bilhete de avião para a Europa”, nota Christian Höhn, que há dois meses iniciou uma campanha de recolha de produtos farmacêuticos para a Venezuela. Medicamentos pediátricos, para o combate à diabetes, anti-histamínicos e antibióticos estão entre os mais urgentes. “Temos 150 caixas de recolha e já conseguimos 143 quilos”, explica o presidente da Venexos, enquanto lembra a enxurrada de venezuelanos que, durante um fim de semana de julho, atravessaram a fronteira com a Colômbia. Objetivo: abastecerem-se de bens de primeira necessidade.
Segundo uma reportagem do Washington Post de 25 de julho, várias pessoas continuam a atravessar a vau o Táchira, o rio que serve de fronteira com a Colômbia, única forma de muitos conseguirem detergente para a loiça, produtos de higiene pessoal, medicamentos, farinha de milho e arroz.
A fronteira esteve encerrada desde agosto do ano passado, quando três soldados foram feridos num tiroteio com alegados contrabandistas. Quando a reabriram, há duas semanas, mais de 120 mil venezuelanos atravessaram-na para se abastecerem em Cúcuta, alguns depois de fazerem centenas de quilómetros de autocarro. Muitos dos que visitaram o país vizinho regressaram com os sacos meio vazios, pois o bolívar desvalorizou 90% nos últimos dois anos – uma nota de 100 bolívares, a de maior valor em circulação no país, vale hoje apenas 10 cêntimos de dólar.
A porosa fronteira continua a ser palco de um bem montado esquema de contrabando. A gasolina, que é vendida nas estações de serviço da Venezuela a menos de dois cêntimos de euro o litro (o valor mais baixo do mundo), é transportada ilegalmente para o país vizinho, em jerricãs de 20 litros, que depois são vendidos na rua a cerca de nove euros. Latas de leite em pó, subsidiadas pelo regime de Maduro e com as etiquetas da Mercal, a agência do governo venezuelano para a distribuição alimentar, estão também disponíveis no centro de Cúcuta. É a suprema ironia: alguns dos que atravessaram a fronteira compraram os bens subsidiados pelo seu próprio governo, postos ali à venda por contrabandistas dezenas de vezes mais caros.
Christian Höhn continua a receber mensagens no grupo do Whatsapp através do qual se mantém em contacto com os voluntários e com os beneficiários da ajuda humanitária. De pessoas que querem sair. De outros que apenas querem desabafar. De muitos que pedem medicamentos. “Tocam a alma.”