‘Só havia uma maneira de escapar à desonra: a morte. Por isso, tinha resolvido pôr fim à vida. Era a única coisa que podia fazer para salvar a minha honra e a honra da minha família. Pensava também no meu pai, que nos ensinara que os valores morais e religiosos eram a coisa mais importante que tínhamos de defender, ‘tudo o resto na vida é secundário’, dizia-nos sempre. Essa era a decisão certa, pois eu entraria pura e imaculada na morte.
Esse pensamento encheu-me de uma profunda paz interior”. Apanhou-se sozinha num quarto e cortou os pulsos com um pedaço de vidro. Foi a primeira tentativa de suicídio da Farida, mais duas haveriam de se seguir. Depois de ter sido vendida como escrava sexual por 50 dólares num mercado de mulheres em Raqqa, a cidade síria controlada pelo autoproclamado Estado Islâmico, não restava outra alternativa na cabeça desta iazidi de 18 anos. “Tem a ver com a nossa educação: nós, raparigas, somos profundamente doutrinadas no sentido de nos envergonharmos quando acontece algo assim. Foi preciso algum tempo para eu compreender que não podia ter feito nada para o evitar”, disse numa entrevista exclusiva. Haveria de sobreviver, reunir forças e conseguir fugir, e viver para contar a sua incrível história de brutalidade e horror, partilhada por milhares de outras mulheres da sua etnia que, em Agosto de 2014, se viram raptadas pelos homens do Daesh, quando estes invadiram a zona a sul das montanhas de Sinjar, no norte do Iraque. Felizmente, a história da Farida, partilhada com o mundo no livro A Rapariga que Derrotou o Estado Islâmico (em co-autoria com a jornalista Andrea C. Hoffmann, editora Leya) que chegou agora às bancas a Portugal, é também feita de superação, amizade e sorte. Muita sorte.
Antes do seu mundo ser virado do avesso, Farida vivia em Kocho, uma pequena aldeia iazidi de 1700 habitantes, com os pais e os quatro irmãos. “Um pequeno paraíso”, gosta de sublinhar. Kocho é uma das pequenas comunidades isoladas onde se agrupavam os iazidi, a etnia há séculos perseguida, ostracizada e habituada a lidar com o estigma e o preconceito de alguns muçulmanos radicais que, injustamente, lhes chamam “adoradores do diabo”. Apesar disso, viviam em paz entre comunidades vizinhas de árabes muçulmanos e curdos, até ao dia em que o Daesh conquista Mossul e avança para Sinjar. A terra de Farida é ocupada a 14 de agosto. A todos foi dada a opção: “Se se tornarem muçulmanos, nada vos acontecerá. Quem estiver disposto a mudar a sua fé pode permanecer na aldeia. Todos os outros serão expulsos”, foi anunciado.
VENDIDA COMO ESCRAVA
Como a conversão ao islão não era opção, ninguém se mexeu. Homens e rapazes foram metidos em camionetas e levados para longe, mulheres e crianças separadas em dois grupos: as mais velhas e as crianças para um lado, raparigas adolescentes e jovens a partir dos 10 anos para outro. E assim Farida viu-se, juntamente com a sua amiga Evin, enfiada num autocarro em direção a Mossul. “Nos noticiários da televisão, tinha ouvido dizer que o Estado Islâmico raptava raparigas da área para dar aos soldados. Seria mesmo esse o destino que nos esperava? A ideia era tão perturbadora que não conseguia formulá-la, mesmo em pensamento. Não, não podia ser. Coisas dessas só acontecem na televisão, não na vida real”, recorda. Algumas das meninas – as mais bonitas – foram imediatamente escolhidas para serem oferecidas ao Califa como noivas, as outras entregues para serem vendidas num enorme pavilhão onde funcionava o mercado de escravas em Raqqa.
“Tinha acabado de ser vendida como um animal numa feira de gado”, escreveu. Foi levada, com mais sete raparigas, para um acampamento militar da divisão bater, estacionada no deserto sírio e conhecida como os “cães de fila”. Olhando para trás, a sorte de Farida foi a sua débil condição: os seus ataques de epilepsia, doença que tinha desde infância, assustavam tanto os homens que conseguiu sempre ficar com a sua amiga Evin junto de si. Quando foi comprada, Evin ofereceu-se para ir também. “Fiquei esmagada pelo seu altruísmo, a minha fiel amiga estava disposta a entregar-se nas mãos daqueles bárbaros para me proteger!”, recorda Farida. Ela foi um apoio crucial para manter a sanidade mental e para a ajudar a recuperar das lesões graves que os vários espancamentos infligidos, primeiro, e as violações, depois, lhe deixaram.
LUTAR CONTRA O ESTIGMA
Mais do que a dor, a culpa foi a sua grande inimiga. “Agora éramos mulheres imorais. Isso era talvez o pior de tudo: as censuras que fazíamos a nós próprias. Desde pequena que ouvia dizer que a honra de uma mulher representa a honra de toda a sua família, pelo que era meu dever protegê-la. Tinha falhado.” Depois de se tentar suicidar três vezes, Farida acabou por escolher por viver: “Percebi que o suicídio não serviria de nada. Tudo o que me tinham feito estava feito. E se eu escolhesse a morte, daria aos culpados ainda mais poder sobre mim.” Sofreu torturas inimagináveis, assistiu a maus-tratos horrendos. Fugir deste pesadelo passou a ser a sua única missão, a única coisa que a fazia suportar um dia atrás do outro.
A frecha de oportunidade surgiu quando conseguiram roubar um telemóvel do quarto de um dos seus “donos”. Com uma réstia de bateria, conseguiram ligar ao tio de Evin, refugiado na Alemanha. Ele moveu todas as influências ao seu alcance, mas não conseguiu organizar um resgate ao acampamento era demasiado perigoso. Teriam de tentar fugir e afastar-se dali e só depois conseguiria tentar mandar um homem recolhê-las. O acaso veio em seu auxílio a 13 de dezembro de 2014. Os homens saíram para o combate e cinco das sete raparigas conseguiram escapar-se do contentor onde estavam. Munidas das suas abayas que as tornavam quase invisíveis no escuro, correram toda a noite para longe do acampamento do EI. Chegaram a uma aldeia de onde conseguiram pedir ajuda e ser resgatadas para segurança.
Foi viver para um contentor num campo de refugiados na cidade curda de Dohuk, apenas a cerca de 170 km para sudoeste a sua aldeia, ainda tomada pelo Daesh. Mais tarde, conseguiu reencontrar a mãe e os irmãos mais novos, que também conseguiram escapar. Nada sabe sobre o pai, o irmão mais velho e outros familiares e amigos, teme que tenham sido fuzilados no dia do assalto à aldeia. Como se alimenta de esperança, a mesma que a fez aguentar meses a fio no inferno, escolheu não dar a cara na divulgação do livro, temendo pelas represálias que estes pudessem sofrer caso ainda estejam vivos. Obteve depois autorização para se refugiar na Alemanha, onde desde o verão de 2015 vive com a mãe e irmãos, abrangidos por um programa de proteção especial. Tenta seguir em frente e ultrapassar o estigma e o preconceito dentro da sua comunidade. “Sobrevivi para lhes mostrar que sou mais forte do que eles”, atira desafiadora com a força de quem esteve disposta a morrer pela liberdade.
Quem são os iazidi?
Os iazidi são uma minoria étnica, com crenças que combinam elementos de religiões do Médio Oriente, sobretudo do Zoroastrianismo, que já foi a religião maioritária na antiga Pérsia, do Islão e também do Cristianismo. Consideram-se filhos de Adão, acreditam num Deus criador, e creem que a Terra está sob a guarda de sete anjos, o principal dos quais é Melek Taus, conhecido como o Anjo Pavão. Um dos nomes de Melek Taus (Shaitan) é também uma designação para Satanás no Alcorão, razão pela qual foram injustamente rotulados de “adoradores do diabo”. Perseguidos e difamados, vivem isolados em pequenas comunidades espalhadas no noroeste do Iraque, noroeste da Síria e sudeste da Turquia.
O que foi o massacre de Sinjar?
Em agosto de 2014, comunidades iazidi a sul das montanhas de Sinjar (a norte do Iraque) foram alvo de um ataque feroz do Estado Islâmico, que matou milhares de homens e jovens rapazes e raptou mulheres e crianças para serem vendidas como escravas. Foi para prevenir o genocídio de 50 mil iazidis que se refugiaram depois nas montanhas que Barack Obama autorizou os primeiros bombardeamentos sobre o Daesh. A região ficou ocupada até novembro, quando os curdos libertaram a zona.