29.08.2015 Triplex Confinium (Hungria, Sérvia, Roménia) – Kübekháza
30.08.2015 Térvár – Tiszasziget
01.09.2015 Szeged I
GPS 46.236392, 20.170365
“Se vens para a Hungria, não podes tirar o trabalho aos húngaros! Consulta nacional sobre imigração e terrorismo”. É já às portas de Szeged, quinze quilómetros pedalados desde a última paragem perto da fronteira, em Tiszasziget, que nos deparamos com o primeiro cartaz gigante do governo promovendo o mega-inquérito. Está apenas em húngaro, logo é altamente improvável que algum dos refugiados em trânsito para a Europa rica do norte pudesse compreender a mensagem que lhes é dirigida. Não é só na Grécia que há consultas decisivas para a história da Europa na primavera-verão de 2015. Na esquina de Maio para Junho, todos os cidadãos húngaros receberam em casa uma carta do primeiro-ministro Viktor Orbán com o dito questionário, composto por uma dúzia de perguntas. A resposta podia seguir gratuitamente na volta do correio ou pela internet, sempre de forma voluntária. Igualmente voluntárias, chegaram outras respostas, como a campanha anti-anti-imigração, promovida pelo Vastagbor (um blogue, cujo nome significa pele rija) e pelo Magyar Kétfarkú Kutya Párt (o Partido Húngaro do Cão com Duas Caudas) que, em conjunto, recolheram doações individuais no valor de 33 milhões de forints (cerca de cem mil euros), que resultam em 80 cartazes, plasmados na forma, alterados no conteúdo, a criticarem os slogans do governo. Há cartazes em inglês, “Desculpem-nos pelo nosso primeiro-ministro!” ou “Por favor, queiram desculpar-nos por o país estar vazio, fomos para Inglaterra”, numa alusão à própria emigração de cidadãos da Hungria para um dos destinos mais desejados pelos refugiados; mas há ainda outras contra-mensagens, em húngaro, incluindo uma hiperbolicamente irónica, “Odiamos toda a gente!”, ou uma outra em que se volta a ouvir a voz de Estêvão I (figura idolatrada pelo próprio Orbán, quando lhe convém), com uma frase do rei-santo em letras bem grandes, “um país de uma língua única e de costumes únicos é um país fraco e destinado à falência”.
“Estes protestos”, como a campanha anti-anti-imigração ou outros actos mais isolados e espontâneos “são acções muito motivadas, mas, independentemente da consciência dos seus autores, são gestos desesperados, coisas que vêm de dentro, de um puro desespero, mas não creio que exista qualquer tipo de esperança”, irá dizer-nos o director do Centro Cultural Grand Café, Zoltán Lengyel, quando o encontrarmos no cinema Casablanca, no centro de Szeged, a terceira maior cidade do país. Este professor de literatura sente que a desobediência civil praticada por alguns activistas é a forma que eles encontram de continuarem a respirar, dia-a-dia, no meio deste “desespero do presente”. Mas antes de sintonizarmos melhor as ideias (e a música) de Zoltán, o nosso radar detém-se em Rita Szlavkovits, jornalista free lancer, que veio ter connosco num café junto à praça da catedral, onde estava a decorrer um ensaio para o próximo festival de ópera, um dos mais importantes da Hungria. Mal ela pousou a sua mala preta em cima da mesa, saltou-me logo à vista uma mancha branca que, enquanto conversávamos, ela ia tentando limpar com a unha, quando a mão não estava ocupada com um cigarro. Era a prova de que, dias antes, além da pele de repórter, Rita quis vestir a pele de cidadã: com outros colegas e amigos, ela pintou com tinta branca as frases escritas em alguns dos tais cartazes gigantes da consulta nacional sobre imigração e terrorismo que estão espalhados pela sua cidade. Foi assim, apenas assim, que ela respondeu às doze perguntas de Orbán.
E à eterna pergunta, Rita, a história repete-se? “Tenho medo. As pessoas achavam que certas coisas não podiam voltar a acontecer na Europa, mas estão a acontecer. Perdi a confiança na Europa vendo as reacções a esta crise e por isso tenho medo. A Europa tomou decisões de logística militar, como a hipótese de bombardear barcos vazios [na costa da Líbia], o que significa que não matas aquelas pessoas mas matas os meios que as poderiam salvar”. Mais uma passa no cigarro. “Também tenho medo porque aqui na Hungria o governo pode mudar uma lei de um momento para o outro e isso cria uma sensação de insegurança. Por exemplo, foram criados aqueles grupos de guardas do campo, para as zonas rurais, que não são polícias, mas que têm porte de arma e que têm a possibilidade legal de identificar e algemar pessoas. Se existe uma lei que permite formá-los e lhes dá o poder de ter uma arma, claro que isso assusta”. A ópera em fundo dramatiza o que estamos a ouvir. Parecendo indiferente à música, Rita continua a sua ária da actualidade, olhando para um outro muro que se começa a erguer dentro das pessoas – o medo de cada um diante do próximo: “há dias, a minha filha viu uma rapariga africana, no autocarro, que era muito bonita. Estava a olhar muito para ela, por ela ser bonita, mas ao sentir-se tão observada, a rapariga africana zangou-se e saiu do autocarro na paragem seguinte”. E há, ainda, o muro do desconhecimento: “na Hungria, ninguém sabe o que se está realmente a passar no Médio Oriente e nos países de onde vêm estas pessoas”. No inverno de 2014 para 2015, a rota balcânica era percorrida por uma maioria de migrantes kosovares, embora já existisse uma vaga crescente de refugiados de guerra vindos do Médio Oriente, mas na primavera e no verão esse fenómeno consolidou-se e, desde então, a grande parte desta maré humana, mais de três quartos, é formada por pessoas vindas da Síria, do Iraque e do Afeganistão. “Se começassem a bombardear a minha cidade, eu também pegava nos meus filhos e ia embora”, suspira a jornalista.
Rita, com pouco mais de meio século de vida, tem um sorriso jovem de onde lhe saem palavras com a pele rija. É essa a sua força contra o muro, a sua resposta ao medo que nos atravessa, porque quem tem memória, tem medo. Ela não pode falar à sua filha com o mesmo tom de crença no amanhã com que o poeta voivodiniano e jugoslavo Vasko Popa se dirigia à própria Rita, aos “filhos sem memória, sem pecado original”, a geração da paz que nasceu depois da Segunda Guerra Mundial, como esta repórter veterana. Popa cantava a liberdade daquela nova geração, erguida sobre os gritos de “Nunca Mais!”, e cantava-a com um tal entusiasmo poético que o escritor Cláudio Magris, percorrendo estas mesmas terras no seu “Danúbio”, avisava que “a ausência de memória e de consciência do conflito moral faz com que os filhos invocados se pareçam com uma massa para lá do bem e do mal, amorfa e incolor, sem pecado e sem felicidade, inocente e oca” e logo homens e mulheres mais permeáveis à repetição da história. Mas Rita não é uma filha sem memória: a avó era judia húngara, o avô pescador da Dalmácia que desertou do serviço militar. Em 1944 – o pai de Rita era ainda criança – os avós perderam tudo nos bombardeamentos a Novi Sad. Saíram de lá a pé, com a vida toda numa mala, e vieram para a Hungria (o apelido dela, Szlavkovits, já nos tinha feito adivinhar uma família migrante). Em 1954, o pai da jornalista foi expulso da Faculdade e ficou na cadeia meio ano, como prisioneiro político. Quando recuperou a pseudoliberdade, foi obrigado a trabalhar como mineiro. Todos os dias tinha de apresentar-se na esquadra da polícia. Apaixonou-se pela filha do chefe da esquadra, a mãe de Rita. Em 56, depois de falhada a revolução de Outubro, o jovem casal foge para a Alemanha, onde vive num campo de refugiados. Quando Rita nasce, em 63, a família já estava de novo na Hungria, graças a uma amnistia. O “comunismo goulash” não iria chegar ao fim sem que antes a própria Rita ficasse a saber o que era “embalar a trouxa e zarpar”. De 87 a 89 ela deu aulas de russo nos antípodas da cortina de ferro, em Oregon, nos Estados Unidos, para onde acompanhou o marido que ganhara uma bolsa de investigação científica. Eles voltaram em pleno “Outono dos Povos”, com a renovada esperança de um novo início, naquela época em que era anunciado à pressa o “fim da História”. Não era. A história que um dia Rita poderá contar aos possíveis netos continua, quando dez anos mais tarde, a família perdeu a última ligação a Novi Sad, na Voivodina sérvia. O pai dela ainda tinha um pequeno mercado de peixe que acabou destruído pelos bombardeamentos da NATO, porque estava localizado perto de uma das pontes atacadas. Chamaram-lhes “danos colaterais”. Não, Vasko Popa, a história não deixa Rita ser uma filha sem memória.
Mas quais são afinal, para memória futura, as doze perguntas da “consulta nacional sobre imigração e terrorismo” a que Rita não respondeu?
“1. Até que ponto é que o alastramento do terrorismo é importante para si no contexto da sua própria vida?
2. Na sua opinião, a Hungria poderá tornar-se num alvo do terrorismo já nos próximos anos?
3. Concorda que políticas de imigração erradas contribuem para o aumento do terrorismo?
4. Sabia que os imigrantes económicos atravessam a fronteira ilegalmente e que, ultimamente, o seu número aumentou vinte vezes?
5. Concorda com a opinião de que os imigrantes económicos colocam em perigo os postos de trabalho e os meios de subsistência dos húngaros?
6. Na sua opinião, as políticas de Bruxelas em relação à imigração e ao terrorismo falharam?
7. Apoiaria o governo no seu esforço para introduzir um conjunto de regras mais rígidas relacionadas com a imigração, em oposição a Bruxelas?
8. Apoiaria uma nova legislação que permitisse ao governo colocar sob detenção os imigrantes que entram ilegalmente no país?
9. Na sua opinião, deveriam esses imigrantes que entram ilegalmente no país ser devolvidos aos seus países no espaço de tempo mais curto possível?
10. Concorda que esses imigrantes económicos que ficam na Hungria deviam ter de trabalhar para cobrirem os custos da sua subsistência?
11. Concorda que a melhor forma de combater a imigração é oferecer ajuda económica aos países de origem dos imigrantes?
12. Concorda com o governo que, em vez de destinar verbas para a imigração, nós deveríamos apoiar as famílias húngaras e as crianças que ainda vão nascer?”
(fonte: http://hungarianspectrum.org/2015/04/25/viktor-orban-will-take-care-of-hungarys-unwanted-immigrants/)
Zoltán Lengyel também não respondeu a esta dúzia de perguntas do seu primeiro-ministro. O director do Centro Cultural Grand Café acaba de doutorar-se em literatura comparada, com um trabalho sobre o conceito de fé em Walter Benjamim, “que foi também um refugiado no seu tempo”. Este jovem intelectual, professor de literatura, fala num tom sombrio. Parece que há pouco futuro dentro das suas palavras, embora ele diga vincadamente que não é “uma pessoa pessimista, mas as coisas infelizmente estão como estão e eles abusam da situação”. “Este governo suga-nos tudo, usando os instintos mais básicos das pessoas. Porque as pessoas, em geral, não têm qualquer consciência histórica; pensam apenas em como conseguir o seu pedaço de pão para amanhã. Por isso, esta propaganda funciona”, sentencia Zoltán, ampliando mesmo a sombra: “nós estamos aqui a beber uma cerveja e ali na mesa ao lado está um grupo de pessoas rom. Eu não dou um ano para que isto talvez possa não ser possível”. Este “aqui e ali” é o café-bar do cinema Casablanca, onde um grupo de pessoas acaba de entrar para a próxima sessão de Saul fia (O filho de Saul), uma história passada em Auschwitz, realizada pelo húngaro László Nemes, que conquistou o Grande Prémio do Júri em Cannes, há poucos meses. A personagem principal do filme é um judeu húngaro que se chama Saul Ausländer, apelido que significa, em alemão, o forasteiro, o estrangeiro – aquele de uma outra terra, o outro.
Zoltán Lengyel é também vocalista, multi-instrumentista (incluindo guitarra portuguesa) e letrista dos Médeia Fiai, os Filhos de Medeia, uma banda de rock experimental de Szeged, sem grande cunho sociopolítico, diz ele, uma espiral de sons soturnos, ouço eu, como banda sonora que nos leva pela estrada fora a caminho de mais um final infeliz. Infidel 88, o último álbum da banda, que muito provavelmente faz parte da playlist da rádio Mi, foi gravado no inverno passado, do outro lado da fronteira, em Subotica, na Sérvia. No regresso a casa, depois das gravações, Zoltán fez de carro, à noite, o percurso que alguns refugiados faziam então a pé. “Eles caminhavam, com crianças, na berma da autoestrada, sem nenhuma luz. Era uma imagem triste, apocalíptica”. Assim como Walter Benjamim se diz cansado dos bombardeamentos, numa das letras escritas e cantadas por Zoltán, estes refugiados estão cansados dos estrondos das guerras de hoje e fazem, tal como Benjamim, um caminho que, muitas vezes, “já não é um caminho”. Assim como o filósofo refugiado que se suicidou em 1940, na fronteira dos Pirenéus mediterrânicos, eles atravessam a Europa a pé porque, tal e qual escreveu George Steiner, um outro refugiado que viria a ser filósofo, “Europe has been, is walked“. Em todos eles que caminham para e através da Europa, a Europa caminha, sem caminho, perdida no seu próprio GPS. Algures entre Cabul e Portbou, entre Damasco e Szeged.
PRÓXIMO EPISÓDIO DA VIAGEM “NÓS E O NOVO MURO”: “Nós estamos a fugir da guerra, não queremos mais violência”
“Nós e o novo muro” é um projecto desenvolvido originalmente para o Osservatorio Balcani e Caucaso, publicado em exclusivo, em Portugal, pela VISÃO.