30.08.2015 Térvár – Tiszasziget
GPS 46.151984, 20.158615
“O radar térmico da fronteira está instalado ali”, aponta József Szécsi, 62 anos, pastor e agricultor, quase toda uma vida aqui em Térvár, onde acabámos de chegar. Mas o radar que verdadeiramente importa a József é o faro do seu companheiro, o pequeno e negro Rigó, cão com nome, corpo e jeito de melro. Apoiado no ancinho com que vai fazendo molhos de feno, este marinheiro da Panónia (como o músico sérvio Djordje Balasevic chama aos agricultores da Voivodina) precisa de um só grito de capitão e logo Rigó voa atrás das 23 ovelhas, reagrupando-as num ápice. Quando espalhado por todo este verde, o rebanho de József lembra-me aquela expressão que se usa nos dias em que o mar está pleno de ondas muito pequenas, provocadas pelo vento, criando novelos de espuma à tona da água. Diz-se então que “o mar está cheio de ovelhinhas”.
Tér em húngaro, seria Trg em sérvio, significa praça. Vár deu Város/Varos em ambas as línguas, castelo, fortificação, povoação. Nesta “boca bilingue” que é qualquer fronteira, Térvár tanto poderia ter ficado num como no outro lábio, ficou na Terra Baixa húngara. São cerca de 30 casas, algumas a menos de 100 metros da linha divisória, 90 pessoas, provavelmente o lugar mais pacato por onde passámos em toda a viagem, um ilhéu de paz. Das escotilhas destas casas, a infinita planura verde-loira, que é branca no inverno, vai continuar a estender-se para norte, salpicada pelas ovelhinhas de Rigó e József, mas para sul o horizonte estará rasgado. “Da janela de minha casa, vou ver o muro”, diz o pastor. Todos os dias. E as ovelhas ou outros animais da aldeia nunca mais poderão, um único dia, voltar a ir trincar as folhas de erva dos campos vizinhos. “Embora seja proibido, no último inverno, por acaso, passei uma vez a fronteira, porque a pastagem estava melhor daquele lado”.
Tirando isso, continua József, a nova estrutura “não vai mudar a nossa vida nem vai resolver nada porque eles [os migrantes e refugiados] vão passar por outro lugar, vão passar pelo rio” e, com o ancinho, aponta na direcção do Tisza, um dos dois grandes cursos de água com que a Terra Baixa húngara abraça a Voivodina sérvia. Corre não muito longe daqui, esse irmão do Danúbio, quase o avistamos. “A polícia leva-os”, conclui o pastor, “mas eles não querem ficar na Hungria, querem ir para Londres, Alemanha e França. Costumamos ver alguns refugiados passar por aqui. Já vi uma família com um bebé muito pequeno. Coitados, fogem da guerra que há lá, no país deles. Vêm do Afeganistão”.
Afeganistão. Regresso ao futuro. Neste momento exacto da história do presente, em Térvár, a aldeia que tem um novo muro a crescer no quintal, ainda não tínhamos encontrado Sharbat, a rapariga afegã de 12 anos, fugida de Cabul com a mãe. Ontem, ela pode ter passado a fronteira aqui ou noutro lugar, dependendo por onde os traficantes tiverem direccionado o rebanho de refugiados onde ela e a mãe caminhavam – os traficantes, quais cães raivosos que lhes mordem os bolsos (e as vidas). Haveríamos de conhecê-la, mais logo à noite, nesse epicentro de encontros desta viagem que foi a estação ferroviária de Szeged. Ainda faltavam algumas horas para o comboio das 4h36m partir para Budapeste:
– Como te chamas?
– Quem és tu? – responde-me ela, firme e desconfiada, num excelente inglês.
– És da polícia?
– Não, sou jornalista.
– Como é que eu sei que posso acreditar em ti?
– Podes confiar nele. – tenta anuir Márk Kékesi, cidadão de Szeged, sociólogo, 38 anos, um dos poucos voluntários que vai estar ali uma boa parte da noite (nas semanas seguintes o grupo iria aumentar para várias dezenas), ajudando quem está à espera do comboio, à espera da Europa. Mesmo com o apoio de Márk, ela não partilha a sua identidade.
– O que é que estás a escrever aí nesse caderno?
– A tua história e a destas pessoas que viajam contigo. – respondo.
– Em todos os países por onde passamos, toda a gente está apenas a aproveitar-se da nossa situação. Não são só os dealers. Toda a gente tenta roubar-nos, trocam-nos dinheiro por valores errados, pedem-nos muito dinheiro para uma viagem de táxi…
– É por isso que eu estou aqui – interrompe Márk – porque eu quero ajudar-vos e porque me envergonho dos meus compatriotas que se aproveitam da vossa situação.
– Como é que falas tão bem inglês? – tento conquistá-la.
– Fui professora de inglês – diz, orgulhosa.
– Eu também já dei aulas de inglês – reage Márk – somos colegas!
E finalmente Sharbat dá-nos o maior sorriso do mundo (mas mesmo assim não nos dá o seu nome):
– Eu passava as noites a ler até às duas da manhã. Depois ensinava inglês às outras crianças [ela teria então 9, 10 anos]. Eu e a minha mãe saímos do Afeganistão há quase dois anos. Trabalhámos um ano na Turquia, eu e ela, para juntarmos dinheiro para o resto da viagem. Agora estamos aqui, vamos para a Alemanha. Eu quero ser médica. I have a dream… I just want a great future!
– E vais tê-lo! – e o maior sorriso do mundo agora é de Márk – You’re a smart girl, you will make it!
Curto-circuito na memória. Aos 12 anos, uma outra “rapariga afegã” era fotografada por Steve McCurry para um dos retratos mais conhecidos de sempre, aquela capa da edição da National Geographic que se tornou jóia de colecção e que o mundo viu há 30 anos, em Junho de 1985. Durante muito tempo não soubemos o nome daquela rapariga, capa de revista. Ela era apenas The Afghan girl, aluna de uma escola de um campo de refugiados de guerra. O seu olhar verde era o único nome que lhe podíamos dar.
– Como te chamas, quem és tu?
Em 2002, Cathy Newman tirou o véu ao nome da célebre refugiada, chamava-se Sharbat Gula, e contou-nos a história dela até essa data, enquanto Steve McCurry a voltava a fotografar. “Os nomes têm poder”, escrevia então Cathy, mas o seu texto reconduzia o nosso olhar “para aquela fotografia de uma rapariga de olhos verdes como o mar. Os seus olhos desafiam os nossos. Mais do que tudo, eles perturbam. Nós não conseguimos desviar o nosso olhar dela”.
Em Fevereiro deste ano soubemos que Sharbat Gula, agora de apelido Bibi no falso bilhete de identidade paquistanês com que foi encontrada, continua a fazer parte dos 3 milhões de refugiados de guerra que vivem no Paquistão, oriundos do vizinho Afeganistão. Sharbat, a eterna refugiada.
– A história repete-se?
Entre a rapariga afegã de 1985 e a nossa rapariga afegã de hoje (cujo verdadeiro nome provavelmente nunca saberemos) há 3 décadas de diferença, aproximadamente a mesma guerra. Sharbat Gula tem os olhos verdes, a Sharbat de Szeged tem os olhos castanhos, não menos belos. Mas não são os seus olhos que mais nos amarram, é a sua voz. Tal como o olhar da primeira Sharbat encheu a objectiva de McCurry, a força da voz com que esta Sharbat diz aquilo que sonha merecia ter ficado imortalizada no gravador de Márk Kékesi que, além de sociólogo, é um dos colaboradores da rádio Mi, uma emissora local independente. Mi significa nós, em húngaro e em servo-croata. E nós não conseguimos esquecer a voz desta mulher de 12 anos: “I have a dream… I just want a great future!”
Regresso ao presente, para as últimas festas de despedida no dorso de Rigó, o cão-pastor com que Sharbat teria gostado de brincar. Deixamos Térvár e a fronteira por cima do ombro, não sem antes sermos identificados, pela primeira vez, pela polícia húngara e nos cruzarmos com um carro civil, matrícula de Viena, dois polícias austríacos lá dentro, fardados. Quando as nossas bicicletas são já duas formigas no retrovisor das autoridades, estamos a chegar a Tiszasziget. Se Térvár era um ilhéu, então Tiszasziget é uma das ilhas principais, talvez aquela que disputaria a Kübekháza o título de pérola da Panónia. Na terra de todos, entre a casa e a rua, os jardins mais floridos, cheios de rosas de todas as cores, são como corais no fundo do mar. Literalmente no fundo, porque o ponto mais baixo, em altitude, de toda a Terra Baixa, e de toda a Hungria, é aqui. E um muro está a passar por aqui, atravessando, tal como o Tisza e o Danúbio, o antigo Mar da Panónia.
PRÓXIMO EPISÓDIO DA VIAGEM “NÓS E O NOVO MURO”: “Se bombardeassem a minha cidade, eu também fugia”
“Nós e o novo muro” é um projecto desenvolvido originalmente para o Osservatorio Balcani e Caucaso, publicado em exclusivo, em Portugal, pela VISÃO.