Quer saber como fabricar uma bomba em casa, num simples alguidar e só com os detergentes que tem na despensa? Como tornar um simples telemóvel num incrível detonador de um engenho explosivo? Quais os melhores ingredientes para aumentar a potência destruidora de um mero petardo? Como converter um carro num instrumento mortal para levar a cabo um atentado numa zona urbana e cheia de peões? Qual o melhor lugar a bordo de um avião para concretizar uma missão suicida? A resposta a estas questões e a muitas outras de idêntico teor podem ser lidas nas revistas Inspire e Dabiq. Ambas podem ser encontradas sem grande dificuldade na internet – sobretudo nas suas edições em inglês – e ambas são autênticos e inestimáveis manuais de aprendizagem para terroristas. A primeira, cujo primeiro número data de janeiro de 2010, é o órgão oficial da Al Qaeda e respetivas filiais – seja no Magrebe e na África Oriental, seja na Península Arábica. O seu título é inspirado num versículo do Corão e é suposto retratar o espírito de luta dos verdadeiros crentes.
A segunda publicação, aparecida em julho de 2014, dá voz ao autoproclamado Estado Islâmico (EI) ou Daesh (acrónimo em árabe), o movimento que pretende instaurar um califado na Síria e no Iraque. Dabiq é também o nome de uma cidade síria – no norte do país – onde muitos muçulmanos acreditam que se travará a apocalítica e final batalha entre os fiéis do Islão e os seus inimigos. Uma e outra têm sido de leitura indispensável para centenas ou milhares de candidatos à Guerra Santa. Exatamente por esse motivo, estão proibidas de circular e de ser vendidas um pouco por toda a parte. E em vários estados a sua posse constitui crime, havendo até casos de condenações no Reino Unido e na Austrália.
Vinganças em série
O último número da Dabiq, disponibilizado no final do mês passado, consegue ser ainda mais perturbador do que as cinco edições anteriores. Além de elogiar o sequestro protagonizado pelo iraniano Haron Monis, a 15 de dezembro, num café de Sydney, na Austrália, e o ataque, cinco dias depois, de um francês nascido no Burundi contra uma esquadra de polícia em Joué-les-Tours, 248 quilómetros a sul de Paris, a revista faz uma ameaça muito clara: “(…) o Ocidente deve esperar impacientemente o próximo atentado (…) Os muçulmanos vão continuar a máquina de guerra kaffir [dos infiéis], atacando os cruzados nas suas próprias ruas”… Como sabemos, a 7 de janeiro, Paris, a Cidade Luz e das luzes – da liberdade e da tolerância – era palco de um atentado sem precedentes. A ameaça estava cumprida.
Desde setembro que Estado Islâmico prometia vingança pela entrada da França na campanha militar liderada pelos EUA, iniciada no mês anterior com o propósito de combater o Califado e proteger as populações curdas e os campos petrolíferos do norte do Iraque. A pátria dos direitos humanos e do laicismo, era vítima das suas próprias contradições: por ter a maior comunidade muçulmana da Europa (mais de cinco milhões); por ter, em simultâneo, a maior comunidade judaica (perto de 600 mil); por ter o mais influente partido de extrema-direita do Velho Continente; e por ser também o estado de onde saiu o maior número (em valores absolutos) de jihadistas europeus rumo ao Levante à Mesopotâmia (ver infografia), desde o início das primaveras árabes, em 2011.
No entanto, não se pense que as prometidas vinganças do Estado Islâmico se confinam ao território gaulês. O movimento sabe que a melhor forma de atacar em solo europeu é recorrer aos nacionais que se converteram ao Islão radical – tenham eles combatido em Aleppo ou Kobane e depois regressado a casa, ou se tenham radicalizado sem nunca atravessar qualquer fronteira. E são precisamente estes militantes que governos, polícias e serviços de informação mais temem. Um sentimento que, verdade seja dita, já tem algum tempo. Há dois anos, quando ainda era ministro do Interior, Manuel Valls – atual chefe do Executivo francês – admitiu numa entrevista à Foreign Policy que a ameaça jihadista se tratava de “uma bomba relógio prestes a rebentar”.
Em maio de 2014, numa conferência sobre terrorismo internacional realizada em Lisboa, no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, um dos maiores especialistas europeus nestas questões, o espanhol Fernando Reinares, alertou para a “inevitabilidade” de novos e mediáticos atentados, a par da falta de coordenação entre as diferentes instituições para neutralizar estes soldados fanatizados. A realidade dos últimos meses, o ataque contra o Charlie Hebdo e os encontros de alto nível previstos para Bruxelas e Washington nas próximas semanas são a prova de que o investigador principal do Real Instituto Elcano de Madrid estava certo.
Jogos mortais
E se calhar não tem havido tragédias maiores porque, na última década, a União Europeia foi capaz de criar o “mandado de detenção” entre os seus membros, de agilizar e reforçar a troca de informações judiciais e entre serviços secretos e de ter criado a figura do coordenador para a luta contra o terrorismo, cargo ocupado desde a sua criação, em 2007, pelo belga Gilles de Kerchove. Aliás, numa entrevista concedida a 23 de novembro ao Libération, este antigo jurista admitia ser difícil controlar todos os jihadistas – em particular os que regressam dos campos de batalha na Síria: “O perigo que corremos (…) tira o sono aos responsáveis dos serviços de informações”. Mas não só a estes.
“As nossas capacidades atingiram o limite”, advertiu o procurador geral da Alemanha, Harald Range, referindo-se aos processos e às investigações em curso aos grupos islamitas. Um cenário que se deve ter agravado na última semana, após o Governo de Berlik ter acionado os seus planos de contingência face a eventuais atentados e por ter de “controlar” um universo de mil indivíduos potencialmente perigosos – 180 deles recém chegados do território sírio. Segundo as contas da Federação alemã de Polícia (BDK), divulgadas pela revista Der Spiegel, seriam necessários pelo menos 3600 agentes para tal tarefa, a tempo inteiro. Algo inviável e que leva a BND e a BfV – as duas principais agências germânicas de espionagem – a trabalhos reforçados e a darem como garantido que, mais tarde ou mais cedo, o país será alvo de uma ação jihadista. Até porque estas limitações são plenamente conhecidas dos círculos terroristas. O mesmo sucede no Reino Unido, onde o MI5 considera impossível disponibilizar cerca de 20 agentes para vigiar, 24 sobre 24 horas, cada um dos 600 suspeitos identificados no país.
Moral da história: o que sucedeu em Paris vai seguramente ter réplicas numa qualquer outra cidade europeia. É apenas uma questão de tempo porque o recrutamento de novos membros para a Al Qaeda e sobretudo para o Daesh não dá sinais de parar. “Estamos perante um novo ciclo de violência.
O fenómeno ultrapassa largamente as comunidades muçulmanas. No último ano e meio tornou-se global. E já inclui a faixa etária dos 15 aos 17 anos”, garante o sociólogo franco-iraniano Farh Kosrokhavar, consultor do Governo francês e autor de diversos obras sobre questões muçulmanas e de segurança. Como explicou ao Le Monde Olivier Roy, um outro prestigiado académico gaulês, estes jovens constituem um “movimento geracional” marcado pelo nihilismo e “pela cultura da violência”: “A minha geração escolhia a extrema-esquerda, eles escolhem a Jihad”. E, acrescente-se, demasiadas vezes a morte.