Se vivêssemos tempos normais, o Instituto Galénico (IG), uma pequena empresa de produtos de saúde, cosméticos e outros produtos químicos, estaria focado na entrada em novas áreas de negócio para triplicar as vendas. Mas quando a epidemia era ainda uma ameaça longínqua vinda da China, direcionou todos os esforços para a produção de água oxigenada e de um desinfetante para limpeza de superfícies, duas “armas” procuradas para combater o novo coronavírus. Os sete trabalhadores que diariamente se deslocam às instalações em Sintra – os restantes três estão em teletrabalho – têm feito horas extraordinárias para satisfazerem as encomendas. Os pedidos são tantos que as embalagens saídas da linha de produção não chegam a entrar no armazém. Seguem no próprio dia, ou no dia seguinte, para o distribuidor, e deste para os clientes finais: hospitais, centros de saúde, lares, farmácias, empresas de transportes públicos, grandes superfícies, etc. “Gostávamos de satisfazer todas as encomendas, mas não temos matéria-prima para produzir mais”, diz o diretor geral, Pedro de Figueiredo. “Está a ser muito, muito difícil obter matéria-prima”, sublinha.
Antes da pandemia, as normas internas no IG determinavam a constituição de stocks com duração de dois meses. “Neste momento, nem dois dias os desinfetantes permanecem na empresa”, afirma Sofia Carvalho, responsável do controlo de qualidade. “Até o álcool canforado, usado em massagens musculares, está praticamente esgotado. Há uma corrida a tudo o que contenha álcool na sua composição”, acrescenta Emanuela Andrade, responsável técnica e de assuntos regulamentares.
Após esta primeira troca de impressões com os responsáveis do IG, feitas à distância recomendada pela Direção Geral de Saúde, iniciamos a visita às instalações. Vestimos uma bata descartável e colocamos touca, proteção nos pés e máscara a tapar a boca e o nariz. Entramos de seguida na “zona limpa”, a designação dada à área fabril com pressão positiva, onde uma espécie de secador gigante sopra para fora o ar puro tratado com filtros, ao mesmo tempo que impede o ar “sujo” de entrar e contaminar a zona de produção.
Produção a todo o gás
Lá dentro, Sofia Carvalho e Emanuela Andrade começam por explicar o processo de fabrico a partir de dois tipos diferentes de matéria-prima: Hipoclorito de sódio, o princípio ativo da lixívia que faz parte da composição do desinfetante de superfícies, e o peróxido de hidrogénio, a substância que, depois de dissolvida em água, é usada para produzir água oxigenada, um desinfetante de feridas igualmente eficaz na eliminação de germes.
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De seguida, conduzem-nos à linha semiautomática de enchimento de líquidos, programada para não dar descanso às duas atarefadas funcionárias que põem, enchem, tapam e tiram frascos do tapete rolante, quase como se fizessem parte de uma coreografia. Numa zona contígua, outra funcionária ocupa-se da linha de rotulagem e marcação de dados variáveis (lote e validade), dando continuidade ao processo. No final do dia, terão sido produzidas 6 mil unidades de água oxigenada de 30 volumes, em embalagens de 250 ml, da marca Alifar, para venda a farmácias e grandes superfícies. No caso do desinfetante para limpeza de superfícies, são produzidas diariamente 3 mil unidades de litro. A linha de enchimento de líquidos é a mesma. Depois de limpa, muda-se o produto e a embalagem. Uma vez concluído o enchimento, são realizadas internamente análises físico-químicas, para controlo de qualidade, ou microbiológicas, feitas por uma entidade externa. Só depois dos resultados é que os produtos são distribuídos no mercado.
Novo suplemento à espera
O catálogo do IG inclui dispositivos médicos (como o soro fisiológico), cosméticos (água de rosas, água oxigenada de 10 volumes e vaselina purificada) e produtos químicos ou galénicos (óleo de amêndoas doces, glicerina vegetal, bicarbonato de sódio, cloreto de magnésio e parafina). São produtos que os repórteres da VISÃO só puderam ver na Amostroteca, uma espécie de depósito onde as amostras de cada lote permanecem durante dez anos, como a lei obriga. Neste momento, nenhum deles está a ser fabricado.
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Se o plano de negócio fosse cumprido à risca, o IG estaria nesta altura a preparar-se para dar um salto nas vendas com o lançamento de um novo suplemento alimentar à base de magnésio. As embalagens estão lá, encaixotadas, numa sala fechada, à espera que a linha de produção seja libertada para fabricar produtos de maior valor acrescentado. Mas o valor de um produto é aquele que o mercado estabelece, com base na velhinha lei da oferta e da procura e, nestes dias de incerteza, acredita-se que o magnésio não terá grande procura… “Desacelerámos o processo”, admite a responsável técnica, Emanuela Andrade. Também suspensa está a produção de soro fisiológico e de outros artigos existentes em stock… e que o mercado não valoriza numa situação de pandemia viral. Mais à frente, numa sala contígua, a luz está apagada. Era aí que estavam a ser desenvolvidos, por outra empresa do grupo IG, kits para testes de diagnóstico do VIH, do Zika, etc. Os ensaios estão suspensos, até que a normalidade regresse às nossas vidas.
Navegar à vista
O Instituto Galénico, fundado há 21 anos, adquiriu e fez uma fusão com a Aliand há cerca de 3 anos. Nas novas instalações, na zona de Sintra, com uma área aproximada de 500 metros quadrados, foram investidos cerca de um milhão de euros, com recurso a fundos próprios. De acordo com o novo plano de negócios, o volume de vendas, que no ano passado foi de cerca de um milhão de euros, deveria crescer no final deste ano para três milhões de euros, com a aposta em produtos de maior valor como o suplemento alimentar de magnésio. “Não sabemos se é este ano que vamos dar um salto qualitativo na faturação. Depende da duração desta crise. Neste momento, só há mercado para os desinfetantes. É o que estamos a produzir, enquanto tivermos matéria-prima. No fim disto, iremos reavaliar o nosso plano. Agora é impossível”, afirma o diretor geral do IG.
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Nestes tempos de incerteza, Pedro de Figueiredo defende que o Estado deve intervir no negócio, garantindo o acesso à matéria-prima e evitando o aumento dos preços. O fornecimento de álcool, por exemplo, registou aumentos superiores a 40 e a 50 por cento, de uma semana para a outra. Os fornecedores não querem correr riscos e admitem recorrer a proteção policial durante o transporte de matérias-primas. Não há notícia de assaltos, mas já terá havido desvios de álcool e derivados desde o início do surto de Covid-19 na Europa. Alguns transportadores pedem que as embalagens sejam acondicionadas com os rótulos virados para dentro, para prevenir desvios e assaltos, conta Hugo Paiva, responsável de compras e logística no IG.
Mas não é só o álcool e outras matérias-primas para a produção de desinfetantes que nestes dias de medo escasseiam no mercado. O IG, tal como outras empresas, tem sido contactado para o fornecimento de doseadores e embalagens a farmácias interessadas em embalar os seus próprios produtos, mas até esse material está mais difícil de adquirir – e mais caro, também. Além disso, os fornecedores exigem pagamentos à cabeça, mas, no outro extremo da cadeia, os clientes estão a atrasar a liquidação das suas faturas.
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Apesar das dificuldades, o diretor geral do IG afirma que a empresa está preparada para continuar a funcionar. No dia da reportagem da VISÃO, o Parlamento aprovava a declaração do estado de emergência e as interrogações eram muitas. Será que estas sete pessoas conseguiriam, no dia seguinte, deslocar-se a partir de suas casas para mais um dia de trabalho no IG? Seriam barradas na estrada e mandadas voltar para trás? Poderia a produção da empresa vir a ser objeto de requisição civil, uma figura jurídica prevista na lei? As respostas foram conhecidas nos dias seguintes e, até ao fecho desta edição, o Governo não tinha entrado por esse caminho. Se a matéria-prima não faltar, o IG continuará a dar o seu contributo e a produzir uma parte do que o País precisa para vencer esta guerra.