Na fatídica madrugada de 4 de março de 2001, os portugueses assistiam, estarrecidos, à tragédia de Entre-os-Rios. Na televisão, o então presidente da Câmara Municipal de Castelo de Paiva, Paulo Teixeira, mostrava todo o seu desespero. À dor da queda da ponte que arrastou para a morte meia centena de pessoas, seguia-se uma interrogação ao governo: como é que, nos próximos tempos, se ia pôr os paivenses nos seus postos de trabalho, na outra margem do rio? A ouvi-lo, tal como milhões de portugueses, estava um jovem de 33 anos, que se deita a pensar no assunto. No dia seguinte, a resposta segue por fax, com cópia também para o então secretário de Estado da Administração Marítima e Portuária: havia dois ferries à venda no porto de Roterdão, na Holanda, por 200 mil contos. Assinado: Mário Ferreira.
Os destinatários da missiva devem ter-se interrogado: quem é este Mário Ferreira? “Um rapazito que anda por aí com uns barquitos a comercializar passeios no rio Douro”, pode muito bem ter sido a resposta, sem que na altura se conseguisse adiantar muito mais. Sem solução alternativa, o governo não tardou a entregar-lhe o negócio. “Ele, em 24 horas, respondeu ao Estado português” e, dois meses depois, “tinha cá dois ferries a fazer o transporte de viaturas e passageiros”, recordou, em agosto de 2003, Paulo Teixeira à VISÃO. Assunto resolvido.
Oportunismo? Olho para o negócio? Voluntarismo? Perspicácia? Provavelmente um bocadinho de cada. Certo é que foram “11 meses a receber 22 mil contos mensais do Estado”, até ficar concluída a construção da nova ponte. No final desse tempo, Mário tinha ganho dois ferries a custo zero, que até venderia depois por 120 mil contos, um deles à Câmara Municipal de Aveiro para trabalhos na ria.
Este episódio, em que se evidenciou a sua atitude proativa replicada em tantos outros que se seguiram, diz muito sobre a forma de estar e de agir deste empresário, cujo nome é hoje incontornável no sistema empresarial português. As más-línguas vaticinam-lhe amiúde a falência, mas esse diagnóstico tem sido manifestamente exagerado. Como se prova o facto de ter entrado, pela primeira vez, para a lista dos mais ricos de Portugal, divulgada na edição de outubro da revista Exame: uma passagem direta para o 16º lugar, com uma riqueza avaliada em 375 milhões de euros, logo a seguir a Rui Nabeiro (da Delta Cafés) e antes de José Neves (da Farfetch).
Não admira, por isso, que Mário Ferreira seja um dos nomes apontados para vir a integrar o núcleo duro de acionistas da Cofina (dona do Correio da Manhã, da CMTV e da revista Sábado), através de um aumento de capital que pretende reunir cerca de 40 milhões de euros para completar o financiamento do Santander e fazer face à compra da Media Capital (dona da TVI, da Rádio Comercial e da produtora Plural). “Poderemos fazer uma coisa com piada, mas só farei comentários depois de a operação se concluir. O que disser agora só serve para perturbar o negócio”, reproduziu o Expresso, citando o empresário.
Na sua página do Facebook, na qual tem centenas de seguidores, Mário vai dando conta dos seus negócios. Por não haver ainda confirmação oficial, o empresário rejeita falar sobre o assunto Cofina. Mas, se se verificar o término e o sucesso das negociações, o empresário nascido em Matosinhos pode ser um dos que se vão juntar a Ana Mendonça, Paulo Fernandes, Domingos Matos, João e Pedro Borges de Oliveira para suportar a Cofina nesta aquisição. Juan Carlos Escotet, o venezuelano que controla o banco espanhol Abanca, será outro dos parceiros e deverá trocar a sua posição de 5,05% da Media Capital por cerca de 10% da nova Cofina.
Apesar de a notícia ter surpreendido o mercado, a presença de Mário Ferreira no negócio dos média não é inédita. Na sua larga lista de negócios pessoais, conta já com uma participação de cerca de 7% na Swipe News, a empresa que detém o Eco, jornal online de economia. Agora, a concretizar-se, este negócio permitir-lhe-á a entrada, pela porta grande, naquele que se tornará o maior grupo de comunicação social em Portugal.
Já em junho passado, Mário Ferreira tinha estado na ribalta ao anunciar o negócio da sua vida. Vendeu 40% da sua Mystic Invest Holding, que concentra toda a atividade fluvial e de cruzeiros, ao fundo norte-americano Certares, por 250 milhões de euros. “É dinheiro!”, confirmou à revista Exame, orgulhoso e satisfeito por ver “26 anos de muito trabalho” a serem valorizados em 625 milhões de euros. O novo parceiro, com sede em Nova Iorque, é um dos maiores grupos mundiais de distribuição de viagens turísticas. Nada melhor para coroar o investimento feito em novas rotas internacionais e a compra de quatro navios-hotel aos estaleiros de Viana do Castelo, que assim ganharam nova vida. O primeiro, o World Explorer, já navega, ostentando a bandeira portuguesa em mares internacionais, o que dá a Mário Ferreira o novo estatuto de armador português.
Uma festa com Carla Bruni
Madame Sarkozy, Carla Bruni de seu nome, foi a madrinha de batismo, numa festa que, a 6 de abril, levou meio mundo do sistema financeiro português e internacional aos estaleiros ressuscitados. O primeiro-ministro, António Costa, e o ministro da Economia, Siza Vieira, não cabiam em si de contentes. Rui Rio assistia à festa. Afinal, “há 45 anos que não era construído um navio destas dimensões” por ali. Gabavam o facto de este ser um “exemplo de como a indústria de cruzeiros não se alimenta só a si própria”, a avaliar pelos “produtos portugueses que iriam integrar a cadeia de valor”. Referiam-se ao mobiliário fabricado em Paços de Ferreira, à louça da Vista Alegre, aos lençóis da Lameirinho, à cerveja fornecida pela Unicer, aos cafés Delta ou aos vinhos portugueses que fariam parte da vida dos 200 ou 300 estrangeiros, dispostos a pagar 14 mil dólares por quarto para viajarem no World Explorer. O empresário disse, na altura, que lhe dava “gozo” levar uma nova imagem de Portugal ao mundo.
Um segundo cruzeiro, o Voyager, e o terceiro, o Navigator, estão já na fase final de construção e outros poderão seguir-se, o que significa que continuará a haver cerca de 1 500 postos de trabalho por ali, com destaque para a metalurgia e para a engenharia. Os norte-americanos que se fizeram parceiros de Mário Ferreira divertiam-se e confraternizavam com os responsáveis chineses do banco ICBC, que abriu a torneira do financiamento dos milhões necessários para tal empreitada. Paulo Macedo, da CGD, e Carlos Tavares, do Montepio, apreciavam, com certeza, a capacidade de mobilização deste empresário nortenho, feito fora das tradicionais linhas da burguesia nacional ou das heranças geradas no antigamente.
O negócio com a Certares permitiu a Mário Ferreira subir a um novo patamar: arrumar o grupo; pagar antecipadamente um empréstimo obrigacionista de 50 milhões de euros, que só vencia em 2024; reduzir a necessidade de financiamento; capitalizar o ramo náutico em 175 milhões de euros; e ganhar uma folga de 75 milhões de euros para acrescentar mais negócios às suas empresas pessoais. Ou seja: pode bem ir às compras com capitais próprios.
Permite-lhe também sonhar com uma frota de dez navios a cruzarem águas internacionais e a cotação do seu negócio de cruzeiros na bolsa de Nova Iorque, daqui a meia dúzia de anos, quando prevê que o grupo possa atingir “2,5 mil milhões de euros”. E, estando o futuro assegurado para os seus quatro filhos (um rapaz e três raparigas), ouvimo-lo falar, pela primeira vez, em reforma daqui a uma década. A cerca de dois meses de fazer 52 anos, esta é a parte duvidosa… Reforma é palavra e atitude que não encaixam neste perfil. Sempre a farejar novos negócios, com uma paixão pelo fazer e um gosto pelo risco calculado (lembram-se das prestações dele no programa televisivo Shark Tank, na Sic?), Mário Ferreira quererá antes deixar a gestão do dia a dia do grupo náutico e experimentar e avançar em novas áreas.
Ambição de sair além-fronteiras
Como se pode ver, muita água correu sob a ponte desde aquela fatídica noite de 4 março de 2001 até aqui chegar: os “barquitos” cresceram, tornaram-se hotéis flutuantes e multiplicaram-se pelo Douro; os negócios fluviais expandiram-se daí para outros rios e mares e internacionalizaram-se; reconstruíram-se hotéis aqui e ali, alguns vendidos com bom lucro, como o Monumental, no coração da Baixa portuense; criou as viagens turísticas de helicóptero; fez-se amigo de Richard Branson, representando na Península Ibérica o homem que iria vender viagens suborbitais (mas o projeto ainda não largou terra firme); sucederam-se projetos e mais projetos, uns bem-sucedidos, outros nem tanto, e hoje acumula à volta de 40 empresas à margem do grupo de cruzeiros.
O que não mudou em Mário Ferreira foi aquela vontade de fazer coisas pelo prazer que delas obtém. Ou aquele impulso, movido pela intuição que o faz posicionar-se “dez passos à frente”. No fundo, foi o que lhe permitiu, em 1993, criar a empresa Ferreira & Rayford e comprar, com a mulher e a mãe desta (o primeiro casamento foi com a norte-americana Barbara Rayford), o Vistadouro, o seu primeiro barco-cruzeiro. Em 1996, criaria a Douro Azul e, em 2003, tinha 60% de quota de mercado do rio, responsável por 80 mil turistas. A quem duvidava da sua rentabilidade, Mário respondia: “Um barco leva 360 pessoas, a 15 contos por cabeça, façam-se as contas.” A febre dos navios-hotel, que hoje navegam no rio às dezenas, estava ainda para vir.
Ele próprio costuma dizer: “Comecei aos 16 o que a maior parte inicia aos 26.” Foi a idade com que começou a trabalhar como empregado de mesa num restaurante em Londres. Nessa altura, Mário já tinha assistido à separação dos pais, três anos antes. E ficou a viver com o pai, Jorge Manuel Ferreira, natural de Baião e guindasteiro no porto de Leixões. A mãe, Diamantina de Glória Santos, era de Tabuaço. Com dois irmãos e uma irmã, Mário ambicionava paragens além-fronteiras e outras línguas no ouvido. As fugas de Leça da Palmeira até à família materna, no Pinhão, onde se refugiava no açude “a comer tomate com sal” e mergulhava no Távora, não lhe bastavam.
Era “atinadinho” na escola e até “pacato, calmo e reservado”, como descreve um dos seus irmãos, mas mesmo assim conquistou o lugar de diretor de turma na Escola Industrial e Comercial de Matosinhos, que frequentou até ao 11º ano. Quando foi para um campo de férias em Inglaterra, ganhou-lhe o gosto. Portugal apresentava-se como “uma parvónia” e já não se sentia enquadrado nisto. Não ficou por cá durante muito mais tempo.
Depressa se viu gerente do restaurante onde servia à mesa. Um dos clientes era administrador da Cunard, a ainda famosa companhia de cruzeiros turísticos. Resistia ao convite permanente para embarcar. Mas, num dia de raiva em que se chateou com a namorada, foi fazer as provas e passou-as todas. Embarcou no Vistafjiord, um dos barcos mais luxuosos, como empregado de mesa, e deu a sua primeira volta ao mundo. “Era o barco mais luxuoso do mundo: talher de prata, luva branca, 700 passageiros da melhor nata mundial e 500 empregados. Todos os dias me davam passou-bens de cem dólares”, recordou à VISÃO em 2003.
Ano e meio depois, com 22 anos, era gerente do night club e ganhava um ordenado de 500 contos limpos, que não tinha tempo para gastar. Conhecia todas as capitais do mundo. Fez contas à vida. Era hora de começar a criar raízes em terra. Tinha um apartamento em Matosinhos, um Fiat Uno na garagem e um saldo bancário de milhares de contos.
Antecipação e persistência
Na penúltima viagem conheceu Barbara Rayford, uma norte-americana do Louisiana. Casaram-se, começaram por viver em Leça, tiveram dois filhos e ele investiu na restauração. Depois, o primeiro barco. E não mais parou. Tornou o rio Douro um negócio rentável. As frequentes visitas aos EUA acabaram por lhe trazer contactos e acentuar aquela veia de fazer, antes que fosse feito.
Entre o Porto e o Pinhão, o puto começava a dar nas vistas. Desconfiados uns, curiosos outros. A entrada na hotelaria, com a compra do Vintage, obriga a que se olhe para ele com mais atenção. Quando Miguel Cadilhe assume, em 2002, a recém-criada Associação Portuguesa para o Investimento (API) e elege o vale do Douro para captar investimento estrangeiro, acaba sentado à mesa com Mário Ferreira. Convida-o para uma intervenção, ao lado de Belmiro de Azevedo e Américo Amorim. Para o jovem empresário, foi um atestado de credibilidade. Alves Monteiro, presidente da bolsa de valores do Porto, já pertencia ao seu círculo íntimo de amigos (hoje faz parte da administração do grupo) e adivinhava-lhe um futuro promissor, não fugaz, mas sustentável: “Ele corre riscos, pensa coisas que parecem sonhos e realiza-as com persistência e qualidade.”
Entretanto, Barbara Rayford não se dá bem por terras lusas. Surge a separação amigável. Em 2006, Mário casa-se com Paula Paz Dias, juíza e filha de um magistrado de Bragança. Joe Berardo, então na mó de cima, acionista de referência do BCP e importante colecionador de arte, é o padrinho de casamento. Mário ganhou nova vida, uma companheira todo-o-terreno – é a sua mão-direita no leme de alguns negócios, tendo suspendido a atividade – e mais duas filhas.
O rapaz fez-se grande empresário, refinou-se, estudou, as suas festas, sempre de cariz profissional, ganharam glamour: Sharon Stone e Andie MacDowell foram madrinhas de outros barcos. Continuou a colecionar admiradores mas também inimigos: a ex-deputada europeia socialista Ana Gomes é a mais proeminente (já lhe chamou “escroque/criminoso fiscal”) e alguns durienses também o acusam de pouco fazer pela região. A Judiciária já lhe vasculhou a casa, mas ficou-se por aí.
Nada que o impeça de continuar a dar lugar ao sonho, a ir buscar à criança que foi a vontade de ser engenheiro civil e rabiscar a reconstrução de hotéis ou esquissos de novos navios. E, sobretudo, de continuar a retirar prazer do que faz. A sede do grupo continua, por enquanto, em Miragaia, ali onde o Douro está a poucos metros de abraçar o Atlântico. Na casa da Foz, onde vive, Mário tem vista de frente para o mar. Pontuada, por feliz coincidência, pela estátua do homem do leme, uma homenagem aos pescadores que todos os dias se aventuram no mar.