Foi a primeira nota desalinhada no discurso de Mário Centeno e António Costa, mas durou pouco. A aplicação das 35 horas na Função Pública deixou transparecer uma divergência no Governo, logo em fevereiro. Quando o ministro das Finanças disse ao Expresso que a medida só avançaria com garantias de que não aumentaria a despesa, Partido Comunista Português e Bloco de Esquerda deitaram as mãos à cabeça. Não era isso que estava no acordo. O compromisso no seio da geringonça era que as 35 horas avançariam a meio do ano, ou seja, em julho. No calor da polémica, Costa não teve dúvidas em escolher o lado político da questão: se era para julho a promessa, era para julho o seu cumprimento.
Joana Mortágua, a deputada do BE que acompanhou as discussões na Comissão de Trabalho e Segurança Social, garante, contudo, que as “declarações do ministro não provocaram nenhuma polémica”. Segundo a bloquista, o seu partido sempre esteve seguro em relação ao acordo com o PS. “E o próprio PS tinha entregado na Assembleia da República uma proposta que repunha as 35 horas.” Por outro lado, nota, “o compromisso do BE sempre foi pela reposição, os constrangimentos orçamentais eram uma questão do Governo”.
Se houve coisa com que Mário Centeno pôde contar, contudo, foi com a confiança do primeiro-ministro. O responsável pela pasta das Finanças não tardou a explicar-lhe o que quis dizer ao Expresso. Com números, em “economês”, convenceu o primeiro-ministro de que 35 horas para todos na Função Pública, logo em julho, comprometeria as metas. Se Centeno dizia, Centeno sabia. E mesmo sendo o “otimista” mais “otimista” do Governo, foi também pragmático. Na hora de escolher entre o discurso político e a prova científica das Finanças, a contabilidade ganhou.
Foi então preciso “ajustar” o discurso político, sem perder a face e garantindo o bom funcionamento da geringonça. Primeira tentativa: o PS apresentou na Assembleia uma proposta de alteração ao seu projeto em que assumia que a reposição era para todos, com um “mas”: nos serviços em que esta mudança implicasse contratações de pessoal, a aplicação do novo horário podia ser feita até ao final do ano.
Essa foi uma das propostas em que os bloquistas não se reviram. “Nós tentámos que as 35 horas fossem repostas o mais rapidamente possível e que o universo abrangido fosse o mais amplo”, nota Joana Mortágua. “O impacto orçamental foi sempre o argumento apresentado para não se avançar mais, como queríamos”, acrescenta. Para o BE, o diploma devia também ter abrangido os trabalhadores do Estado com contratos individuais, razão pela qual o partido apresentou na Assembleia da República um projeto de resolução com essa finalidade.
Choveram críticas de que se tratava de uma aplicação faseada da medida. Os sindicatos protestaram. E Costa esclareceu. Estava até “um pouco surpreendido” com a polémica, porque não conhecia “nenhuma proposta de aplicação faseada”. Existia, sim, “uma norma de bom senso”, que permitia “a título excecional – e pontualmente – proceder a ajustamentos de horário em serviços em que, por dificuldades concretas de contratação de pessoas necessárias”, estivesse em causa “a continuidade e qualidade dos serviços prestados aos cidadãos”, disse.
Não era uma “aplicação faseada”, era uma válvula de segurança. Costa é o mestre das palavras.
Enfermeiros passam todos a 35 horas
Os projetos dos vários partidos deram entrada na Assembleia da República entre outubro de 2015 e janeiro deste ano. Depois, baixaram à Comissão de Trabalho e Segurança Social para serem “lapidados”. O diploma final foi apresentado na reunião plenária de 2 de junho, tendo sido aprovado por maioria, com os votos favoráveis dos partidos proponentes mais o do deputado do partido Pessoas, Animais, Natureza. Os representantes eleitos pelo PSD e pelo CDS-PP votaram contra a legislação, que entra em vigor a 1 de julho.
O Decreto da Assembleia tem apenas cinco artigos. Estabelece que as 35 horas semanais voltam a ser a norma para os trabalhadores da Função Pública mas não estende esse horário aos trabalhadores com contrato individual, numerosos, por exemplo, nos hospitais do setor empresarial do Estado. Compreende, ainda, uma norma transitória – o artigo 3º – segundo a qual, “em 2016, as despesas com pessoal (…) não podem exceder os montantes relativos à execução de 2015”, a tal válvula de segurança de António Costa.
O diploma que repõe as 35 horas assegura ainda que o “freio” à despesa pode ser removido mediante autorização do ministro das Finanças. E garante-se que nos órgãos ou serviços em que se justifique, poderão ser encontradas outras soluções através da negociação com os sindicatos.
É este o caso do setor da Saúde. Segundo o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), a reposição das 35 horas obrigará à contratação de mais 900 a mil enfermeiros. “Estes são números consensuais com o governo”, nota Guadalupe Simões, dirigente do SEP. Segundo uma estimativa da VISÃO, a contratação destes profissionais custará entre 15 a 17 milhões por ano.
Da reunião de segunda-feira, 6, no Ministério da Saúde, os enfermeiros saíram com a convicção que a partir de 1 de julho todos, independentemente do seu vínculo (quer sejam do “quadro” ou tenham contrato individual de trabalho), passarão a trabalhar apenas 35 horas por semana. Como já acontecia antes, quando estes profissionais trabalharem além do seu horário, serão compensados através de folgas ou de férias. “Essa era uma realidade mesmo com as 40 horas. Por exemplo, no Hospital de Guimarães os enfermeiros têm um crédito acumulado de 19 500 horas”, explica Guadalupe Simões.
Constitucional, sim ou não?
A possibilidade de inconstitucionalidade do diploma que a Assembleia da República aprovou a 2 de junho foi levantada por Luís Marques Mendes, no seu comentário político na SIC. O ex-ministro de Cavaco evocou o artigo 167º da Constituição da República, no qual está inscrito a chamada norma “travão” da despesa. No ponto 2 do referido artigo, pode-se ler: “Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.” Para Marques Mendes, tendo em conta que se trata de um diploma que resulta da iniciativa dos grupos parlamentares e que potencialmente aumenta a despesa, a “lei é flagrantemente inconstitucional”.
Um dirigente do Bloco de Esquerda nota, contudo, que o próprio diploma aprovado exclui essa possibilidade, pois assegura, no seu articulado, que se da reposição das 35 horas resultar um aumento da despesa a mesma será da responsabilidade do Governo, o que não é impedido pela norma “travão”. Joana Mortágua considera o argumento “rebuscadíssimo”. Já Mercês Borges, deputada do PSD, entende que a questão da constitucionalidade do diploma deve ser aferida, em primeira instância, pelo PR. “Estamos descansados em relação a esse ponto”, nota. Para a deputada, mais importante era saber o impacto financeiro da medida. “Já entregámos cinco perguntas ao Governo mas receio que fiquemos sem resposta”, diz. À VISÃO, o Ministério das Finanças garantiu, através da assessoria de imprensa, “que está a ser realizado um estudo que ainda não foi concluído”. Fica a interrogação: o Governo aceitou a lei sem saber o seu custo?
Também Passos Coelho criticou o diploma, que considerou, uma “decisão política errada”. Contudo, o ex-primeiro-ministro não afasta a hipótese, depois da avaliação realizada pelo Presidente da República – que tomou a decisão, na noite de terça-feira, 7, de promulgar o diploma –, de o PSD “exercitar todas as possibilidades legais ao seu dispor”.
(Artigo publicado na VISÃO 1214, de 9 de junho 2016)