Antes de agosto do ano passado, Portugal não era um lugar de afetos para o casal Pouplier. Mas Joëlle, 62 anos, e Dominique, 65 anos, sentiam-se como se já conhecessem o nosso país, de tanto ouvir falar dele.
A nora franco-portuguesa, com raízes em Chaves, descrevera-lhes, quase idilicamente, um lugar onde a vida decorria tranquila e em segurança. Uma espécie de reverso de França, com o seu alto custo de vida e os seus impostos quase confiscatórios. Quiseram experimentar.
Escolheram a zona Oeste, atraídos pelo mar, pelo golfe e pelo clima ameno. Puseram à venda a casa de família, no Loiret, uma centena de quilómetros a sul de Paris, e adquiriram uma propriedade com 2 500 metros quadrados, nas Caldas da Rainha. Mudaram-se no último verão e deitaram mãos à obra. O próximo projeto é o restauro de um moinho antigo, de que também são donos.
O estatuto de residente não habitual, conseguido depois da chegada, trouxe a cereja em cima do bolo. Com pensões de reforma “à francesa” – ele era funcionário da polícia e ela quadro superior, no departamento de assuntos regulatórios da Johnson & Johnson – sobre as quais incidia, no país de origem, uma alta taxa de imposto, pagam em Portugal… zero de IRS. E o custo de vida “é bastante inferior”, confirma Joëlle, cuja reforma mensal lhe chega intacta de França. Já a de Dominique, ex-funcionário público, continua a ser taxada lá, na medida em que a isenção só se aplica às pensões do setor privado.
Agora, viajam para França quando as saudades dos filhos e netos apertam, mas preferem o Algarve ao Sul de França para fazer férias. “Já não aguentávamos mais certas coisas lá”, diz Dominique, lamentando a insegurança e uma certa balbúrdia que caracterizam a Cote d’Azur no verão.
O regime fiscal dos residentes não habituais foi publicado em 2009, mas só no final de 2012 se limaram arestas burocráticas que estavam a colocar entraves à aplicação da lei. Por essa razão é que 2013 foi o ano da grande explosão de pedidos de isenção ou de redução das taxas de IRS. O ano passado, as finanças registaram 1 078 novos pedidos de inscrição, o que representa um aumento de 98% face aos anos anteriores. Este ano, a média tem sido de dois por dia. Holandeses, franceses e suíços encabeçam a lista.
Em linhas gerais, o estatuto permite que os reformados que recebam a pensão noutro país tenham isenção de IRS durante 10 anos. Por outro lado, os profissionais de valor acrescentado (como engenheiros ou investigadores) que venham trabalhar para Portugal beneficiam de uma taxa fixa de 20% de IRS, pelo mesmo período (ver caixa O que diz a lei).
Portugal tenta, assim, atrair pessoas com algum poder de compra. Estes residentes não habituais podem estar a usufruir de um “paraíso fiscal”, em matéria de IRS, mas consomem e compram casa, dinamizando o mercado imobiliário e pagando os respetivos impostos.
Uma ‘terceira vida’
Bony e Joëlle Bertrand, ambos com 65 anos, instalaram-se na zona de Óbidos. Deixaram com um dos filhos a sua casa na região parisiense e rumaram a Portugal, em outubro de 2013. Nunca antes tinham cá estado. “Em França, não se ouve falar de Portugal; mas ouve-se falar dos portugueses por causa dos trabalhadores que lá estão”, comenta Bony.
Então porquê Portugal para viver a “terceira vida”, como lhe chama o casal? “Porque é Europa e por causa da reputação das suas gentes. Dizem que o povo é gentil”, respondem. Aterraram em Lisboa e não aconteceu amor à primeira vista. Foram duas vezes ao Porto, marcharam até ao Algarve, voltaram a Lisboa, ainda indecisos. À segunda visita, apaixonaram-se pela capital e fixaram-se perto, em Óbidos. Só depois descobriram a isenção fiscal de que beneficia a pensão de Bony.
Embora ainda trabalhe uma semana por mês (Bony tem uma empresa, em França, na área da reciclagem), o facto de ter residência fiscal em Portugal permite-lhe não pagar IRS, durante 10 anos, sobre a sua reforma. O dinheiro rende mais por cá. Também pelo custo de vida, que o casal estima ser 40% inferior ao francês. Aqui, tomam um café numa esplanada em frente do mar por 80 cêntimos; em Paris, pagam €2,5 pelo café, se se quiserem sentar numa mesa.
Já para não falar no preço da habitação da capital francesa, que começa nos 6 mil euros o metro quadrado (em Lisboa, o valor médio estava em €1 522/m2, em 2013). Bony e Joëlle estão a construir uma vivenda de cinco quartos. Querem receber, na sua “terceira vida”, muitas visitas dos filhos e dos amigos.
Marc Cattiaux, 68 anos, também escolheu Portugal para viver. Casado com uma portuguesa, gostou dos meses “à experiência” e vai pedir o estatuto de residente não habitual. Em Portugal, ele e a mulher vivem desafogadamente com a pensão mensal de 3 500 euros que recebe em França. Lá, a mulher “acordava às 5 e 30 da manhã para ir trabalhar a troco de pouco mais de mil euros mensais”. Desde que reside na Lourinhã, continua a levantar-se a essa hora mas… para fazer desporto! “Com a minha reforma, vivemos os dois confortavelmente”, diz Marc. “Estamos muito felizes aqui.”
Jean Pierre Hougas, um dos líderes da União dos Franceses no Estrangeiro, conta que todos os dias chegam compatriotas seus a Portugal, “uns para explorar, outros para ficar”. “Muitos estão desiludidos com o rumo da França e procuram alternativas”, admite. Na região Oeste, residem cerca de 250 famílias gaulesas. Na terceira quarta-feira de cada mês, juntam-se ao almoço para partilhar vivências e manter o contacto. Apreciam “a qualidade de vida, o sol, a comida, a integração fácil, a segurança que não sentem em França. E a questão fiscal pesa na decisão final”, garante Jean Pierre Hougas.
Um bom lugar para… gastar
O regime fiscal dos residentes não habituais é possível para cidadãos de países com os quais Portugal tenha firmado acordos destinados a eliminar a dupla tributação. Esses acordos existem com todos os países da União Europeia e com inúmeros outros, como os Estados Unidos, o Brasil, o Japão, etc. Os países de origem, naturalmente, saem a perder. São as suas seguranças sociais que pagam as reformas, sem retorno a nível fiscal. Por essa razão, a administração fiscal francesa, por exemplo, não facilita – muitos franceses têm de vender a sua casa no país natal, ou passá-la a familiares para evitar que a mesma seja considerada residência principal – e tributada como tal.
Mas não são só os franceses que aproveitam as vantagens fiscais em Portugal. O italiano Francesco Castellaneta, 32 anos, dá aulas de Empreendedorismo desde setembro de 2011 na Escola de Negócios da Universidade Católica, bem cotada internacionalmente. Já neste ano, deverá aproveitar o estatuto fiscal criado em 2009, pelo Governo de José Sócrates, que lhe permitirá pagar uma taxa de IRS de apenas 20% sobre o rendimento.
Francesco sempre quis experimentar uma carreira internacional, depois de concluir o doutoramento na Universidade de Bocconi, em Milão. Analisou outros países europeus, os Estados Unidos e até algumas nações árabes, mas as semelhanças que diz ter encontrado entre o nosso país e a sua “bella Italia” fizeram-no optar pela Católica. Não esconde que a vantagem fiscal “foi importante”, mas a escola também pesou, e muito, na decisão. “Adorei Portugal e a cidade de Lisboa, mas a minha
primeira escolha foi a Católica, uma boa instituição para fazer uma carreira”, afirma. E assim pode juntar “um bom emprego” a “uma boa vida”.
O primeiro filho de Francesco nasceu em Lisboa, meses depois da chegada. Hoje, o casal Castellaneta é um feliz proprietário de um apartamento na capital, comprado por cerca de metade do preço que teria custado em Milão. “Gostamos muito de viver aqui. As pessoas são simpáticas para os estrangeiros. É um bom local para ganhar dinheiro e… também para gastá-lo”, diz, com uma gargalhada.
Na moda entre os ricos
Recentemente, no Salão do Imobiliário português em Paris, Miguel Poisson, diretor-geral da Era, ficou surpreendido. “Não me lembro de nenhuma outra feira em que tivesse angariado tantos contactos”, refere. É que os reformados franceses acorreram em peso. Em Lisboa, procuram, essencialmente, apartamentos e, no Algarve e na linha do Estoril, vivendas. Os valores rondam os 200 mil e os 300 mil euros. “Normalmente pagam a pronto, mas há quem apareça com um crédito já pré-aprovado por um banco francês”, descreve Poisson.
As contas já estão feitas: “Um reformado francês da classe média/alta pode poupar, em impostos, em Portugal, cerca de mil euros por mês. O fator fiscal é decisivo”, continua o diretor-geral da imobiliária Era. Em França, a tributação pesada levou o ator francês Gérard Depardieu a aceitar uma espécie de “asilo fiscal” na Rússia, para escapar à ameaça do Presidente Hollande de taxar em 75% os rendimentos mais elevados…
Para Miguel Poisson, os pensionistas europeus, a par dos clientes dos vistos gold, estão a dar um empurrão ao mercado imobiliário português. Aliás, é preciso distinguir os residentes não habituais dos residentes com visto gold. Estes são, sobretudo, cidadãos de países fora da União Europeia que procuram, com o visto português, a livre circulação dentro do espaço europeu. Para o obter, precisam de investir no nosso país ou comprar um imóvel a um preço mínimo de 500 mil euros. Chineses, brasileiros, russos e angolanos são as nacionalidades predominantes. Para os residentes não habituais não há valores mínimos. Eles só têm de fixar a residência fiscal em Portugal para beneficiar das vantagens da lei (ver caixa O que diz a lei). São principalmente os europeus a pedir o estatuto.
A Remax estima que o aumento na procura de imóveis por parte dos reformados estrangeiros seja de 300% na sua agência. “Grande Lisboa e Algarve continuam a ser as zonas com mais procura. No entanto, temos assistido a um desenvolvimento deste mercado na zona Norte e Ilhas que já começam a ser procuradas também por clientes estrangeiros”, refere Marta Dotti, responsável pelo marketing.
A imobiliária Luxus tem registado, igualmente, uma procura crescente de imóveis por parte de estrangeiros. “Portugal tornou-se um país trendy, está na moda entre os ricos de todo o mundo”, afirma Frederico Abecassis. Encontramos o diretor-geral da agência no empreendimento Vivamarinha, bem no coração da exclusiva Quinta da Marinha, em Cascais. O edifício inclui um hotel de cinco estrelas (com quartos e apartamentos T1 e T2 para alugar) e uma ala de apartamentos T3 e T4 para vender.
Condomínio privado, claro.
Dos 53 apartamentos, 24 já estão vendidos, sobretudo a estrangeiros, com os franceses e os brasileiros à cabeça. O preço começa nos 834 mil euros (por um T3 de 186 metros quadrados) e não acaba nos 1,45 milhões de euros do T4 de 250 metros quadrados porque existem muitos outros valores que podem ser somados. Há quem compre o imóvel já mobiliado e assim se acrescentam mais uns milhares de euros. Depois, é possível usufruir dos serviços do hotel: limpeza, portaria, pequeno-almoço e restaurante, spa, ginásio… tudo pago à parte. Finalmente, é preciso contar com o valor do condomínio: 300 euros por mês, em média, para manter aquela vida no campo. Um campo limpo e organizado, com relvados bem tratados, cavalos e campos de golfe mesmo ali ao lado.
Apenas acessível a estrangeiros? Não. Mas Portugal – País pequeno com um salário médio, bruto, de €914, e uma pensão média de €420 – não gera assim tanta gente com este poder de compra. Dados de 2012, anteriores ao “enorme aumento de impostos”, mostram que só uma em cada quatro famílias aufere mais de 19 mil euros brutos de rendimento anual. Basta que marido e mulher recebam, cada um, 680 euros mensais brutos, para que o agregado familiar pertença aos 25% mais afortunados do País. Ricos, nós?
O QUE DIZ A LEI:
PARA SER ENQUADRADO NO REGIME HÁ DUAS CONDIÇÕES:
- Não ter sido tributado como residente fiscal em Portugal nos cinco anos anteriores;
- Viver em Portugal 183 dias por ano ou, tendo vivido menos tempo, possuir uma habitação com a intenção de a manter como residência habitual
EXISTEM DOIS GRUPOS DE PESSOAS COM VANTAGENS FISCAIS:
- Pensionistas: Isenção do pagamento do IRS durante 10 anos
- Trabalhadores no ativo: Taxa fixa de IRS de 20%, durante 10 anos, para os rendimentos, auferidos em Portugal, dos profissionais de alto valor (arquitetos, engenheiros, médicos, artistas, auditores, professores universitários, investigadores, investidores, administradores e gestores); se os rendimentos tiverem origem estrangeira, então beneficiam de isenção de IRS
OUTROS ASPETOS A TER EM CONTA:
À taxa fixa de 20% acresce 3,5% da sobretaxa do IRS. Acresce também a taxa adicional de solidariedade, que é progressiva e só se aplica à parte do rendimento coletável que seja superior a €80 000. Outras ganhos pessoais de mais-valias, juros, rendas ou dividendos, também estão incluídos no regime especial do IRS, ou seja, ou estão isentos ou beneficiam de taxa reduzida.
COMO É LÁ FORA:
Como Portugal, há outros países europeus que concedem benefícios aos reformados estrangeiros. Caso do Reino Unido, da Irlanda e de Malta.
Também há mais países a conceder taxas reduzidas a trabalhadores estrangeiros no ativo. Caso de Espanha, França, Holanda, Bélgica, Irlanda e Reino Unido.
Espanha não nos faz concorrência na atração de reformados por via fiscal. No entanto, o seu regime especial para trabalhadores por conta de outrem tem vantagens: aplica-se a todos os que ganhem menos de 700 mil euros por ano e não apenas a profissionais de alto valor; a taxa de IRS é mais alta do que a nossa, 24,74%, mas a segurança social é plafonada, não incidindo sobre a fatia salarial que excede os €3 000. Por exemplo, um salário de €10 000 paga uma taxa para a Segurança Social sobre €3 000, estando os restantes €7 000 isentos.
O regime fiscal dos residentes não habituais foi publicado em 2009, mas só no final de 2012 se limaram arestas burocráticas que estavam a colocar entraves à aplicação da lei. Por essa razão é que 2013 foi o ano da grande explosão de pedidos de isenção ou de redução das taxas de IRS.
O ano passado, as finanças registaram 1 078 novos pedidos de inscrição, o que representa um aumento de 98% face aos anos anteriores. Este ano, a média tem sido de dois por dia. Holandeses, franceses e suíços encabeçam a lista.
Em linhas gerais, o estatuto permite que os reformados que recebam a pensão noutro país tenham isenção de IRS durante 10 anos. Por outro lado, os profissionais de valor acrescentado (como engenheiros ou investigadores) que venham trabalhar para Portugal beneficiam de uma taxa fixa de 20% de IRS, pelo mesmo período.