A chegada de duas volumosas biografias de Fernando Pessoa ao mercado português foi um inusitado acontecimento editorial de 2022. Com objetivos e ambições diferentes, Pessoa, uma Biografia, de Richard Zenith (tradução portuguesa editada pela Quetzal, em maio, do original em inglês saído no ano anterior) e O Super-Camões, Biografia de Fernando Pessoa, de João Pedro George, com a marca da Dom Quixote, lançada em outubro, conviveram pacatamente nas prateleiras das novidades das livrarias durante uns meses.
A pacatez terminou no passado dia 13 de fevereiro, nas páginas do Expresso, com o artigo assinado pela jornalista Luciana Leiderfarb O Desassossego de uma Biografia. Aí, dava-se conta da “surpresa” de Richard Zenith quando “espreitou” a biografia de João Pedro George e sentiu que tinha sido uma inspiração direta, mas não creditada, em várias passagens do livro do sociólogo português, que já assinou várias biografias. Nunca é feita uma acusação de “plágio”, mas fala-se em “semelhanças flagrantes” e João Pedro George foi confrontado pela jornalista para as justificar.
Nesse artigo mencionam-se, ainda, alguns erros factuais d’O Super-Camões, “fruto provavelmente da pressa com que o livro foi feito” (palavras de Richard Zenith, estudioso de Fernando Pessoa desde que se mudou dos EUA para Portugal no final dos anos 80). João Pedro George assume que o seu livro, de 976 páginas, tem “erros e gralhas, como todos os trabalhos que envolvem uma gigantesca massa de informação”, mas rebate algumas das acusações (exemplo: escreveu e mantém que Pessoa tinha telefone em casa nos últimos da sua vida, ao contrário do que Zenith diz, informação que lhe foi dada em longa entrevista com Manuela Nogueira, sobrinha do poeta) e, sobretudo, refuta frontalmente qualquer apropriação indevida de material obtido no livro de Zenith.
Na semana em que O Super-Camões chegou às livrarias, entrevistámos, na VISÃO, o seu autor e fizemos a pergunta obrigatória sobre o modo como se relacionou com a biografia recém-publicada de Zenith, quando já ia avançado na sua: “Folheei-a, claro, mas não a quis ler. Recorri a essa biografia, uma vez que é a mais recente e mais completa, como uma espécie de enciclopédia onde ia tirar dúvidas sobre datas e factos concretos”, respondeu João Pedro George.
O Super-Camões foi feito em cerca de dois anos de trabalho, depois de um convite de Francisco Camacho, da Dom Quixote, com o objetivo de concretizar um “livro popular, no melhor sentido da palavra” (segundo J.P. George) escrito por alguém com larga experiência em biografias mas que nunca se assumiu como um especialista em Fernando Pessoa. Já o livro de Richard Zenith, que também entrevistámos, resulta de um trabalho “de 12 ou 13 anos” com a ambição de construir a biografia de referência para todos os estudiosos e interessados no autor d’A Mensagem. No ano passado, foi um dos livros a chegar à short list de biografias que podiam vencer um Pulitzer.
Esse artigo do Expresso foi o ponto de partida para um ambiente que faz lembrar as velhas polémicas literárias. Mas as coisas já não se passam em tertúlias de cafés nem se resolvem com bengaladas em pleno Chiado. Foi noutro meio, também já de certo modo ultrapassado, um blogue, que as respostas aconteceram e a polémica escalou. O blogue Malomil foi criado, no período áureo dos blogues, por António Araújo, João Pedro George e Diogo Ramada Curto. E António Araújo aí voltou para defender João Pedro George, depois de uma “declaração de amizade, que não de interesse”. No post Porque Era Ele, Porque Era Eu, ao artigo do Expresso chamava “inacreditável e miserável texto” e aludia a uma “vingança contra JPG, acumulada durante anos de raiva e ranger de dentes.”
O historiador foi mesmo mais longe, acusando o Expresso de pretender “fazer passar por ‘reportagem’ aquilo que é, no fundo, o artigo de opinião que Richard Zenith não teve a lisura nem a coragem de ousar escrever.” E concluía: “Só a sofreguidão em possuir Pessoa, pondo-o a render, e sem largar a bola, pode explicar que alguém com o estatuto de Richard Zenith se ponha a esmiuçar à lupa uma biografia popular, destinada ao grande público, que do ponto de vista da profundidade não tem, e jamais teve, pretensões de ombrear com a sua. Que o Expresso se disponha, neste texto, a defender-lhe os interesses (até comerciais!), fazendo-o de uma forma tão canhestra e abusiva, tão moralmente corrupta, é algo que impressiona e confrange.” Na sequência deste texto, António Araújo deixou de colaborar com o semanário, onde ultimamente era reconhecido pelos seus textos, com um estilo muito próprio, na secção de obituários.
Também foi no blogue Malomil que João Pedro George se defendeu, primeiro (expondo, lado a lado, blocos da sua biografia e da de Zenith), e passou ao ataque, depois.
Nesta quinta-feira, 9, o autor d’O Super-Camões publicou o detalhado post O Guardador de Pessoa, onde recorda velhas polémicas que envolveram Richard Zenith, com destaque para o caso da investigadora Teresa Sobral Cunha que, no início dos anos 90, e posteriormente, acusou o norte-americano de ter partido do seu trabalho de organização e edição em torno d’O Livro do Desassossego sem nunca lhe fazer qualquer menção. Passa, ainda, ao contra-ataque apontando falhas em Pessoa: uma Biografia, sobretudo acusando Zenith de querer fazer passar por originais e inéditas reflexões e informações que já tinham sido feitas, sem dar conta dessas referências.
No final de um longo post, não resiste, ainda, a aplicar à jornalista Luciana Leiderfarb o seu “implacável crivo de ‘semelhanças flagrantes'”. Evitando, também ele, usar a palavra “plágio”, João Pedro George faz referências, com alguns exemplos, “a múltiplas apropriações, a sucessivas paráfrases e a cópias integrais de frases ou de parágrafos inteiros retirados de jornais, de livros e até de páginas da Wikipedia.” E lamenta: “Quando aceitei o convite para escrever uma biografia de Fernando Pessoa para não académicos, que não fosse lida somente por especialistas ou peritos, julgava que, não sendo especialista em Fernando Pessoa (mas com alguma experiência no género biográfico), me poderia manter saudavelmente à margem das velhas controvérsias pessoanas. Enganei-me redondamente.” A polémica ficará por aqui?
A biografia de Richard Zenith vai já na terceira edição, com vendas de mais de 12 mil exemplares. O Super-Camões não chegou ainda à segunda edição (a editora não revela a tiragem da primeira, que ainda não esgotou).
A jornalista do Expresso Luciana Leiderfarb respondeu à VISÃO às acusações acima mencionadas feitas por João Pedro George no blogue Malomil:
“O exercício do jornalismo incomoda João Pedro George, porque se foca em factos e não em relações de amizade. Se ele dedica várias páginas a cartas fictícias de Fernando Pessoa tomadas como verdadeiras ou incorre em dezenas de erros factuais, isso é da sua inteira responsabilidade, não minha, não do Expresso.
JPG acusa-me de incorrer em ‘apropriações, paráfrases e cópias’. Mas, nos artigos por ele apontados, as fontes estão claramente citadas. Alude também a um texto sobre Isaac Asimov no qual cito um trecho do livro The Early Asimov or, Eleven Years of Trying, de 1972, reproduzido na Wikipédia. Usa também como exemplo a recensão que fiz da biografia de Hannah Arendt, toda ela construída em torno daquele livro de Samantha Rose Hill e, portanto, com várias atribuições implícitas que o leitor percebe (só JPG não) que são paráfrases.
Por fim, JPG tenta denegrir a reportagem com a qual ganhei o Prémio Gazeta de Imprensa em 2016, sobre descendentes de altas figuras do regime nazi, alegando que outros, antes de mim, teriam abordado o tema sem que eu os tivesse mencionado. Independentemente de na altura conhecer ou não os livros que JPG refere (só os conheci depois), é natural que o assunto tivesse já despertado o interesse de outras pessoas, assim como muitas houve a dedicar-se a temáticas como o Holocausto, o Tarrafal ou a ditadura de Pinochet. Mas uma reportagem não é um paper académico com uma bibliografia associada. O jornalista não é obrigado a elencar os elementos de contextualização a que recorre, a não ser que necessite de os citar diretamente. O meu trabalho baseou-se em entrevistas para as quais me preparei absorvendo materiais muito variados. E todas as citações que surgem nesse texto estão devidamente atribuídas aos seus autores.”
(Texto editado às 14h50 de dia 11/3 para incluir a reação de Luciana Leiderfarb)