O concerto começou, pouco depois das 20h30 aprazadas, com uma enorme salva de palmas. Ou seja, começou como costumam acabar os concertos em que os artistas conquistam o público. E isso significa que todos os que esgotavam o Coliseu de Lisboa na noite de 2 de setembro já estavam conquistados à partida. Caetano Veloso entrou naquele grande palco despido, entre cortinas negras, e, bem antes de chegar à discreta cadeira de madeira onde passaria as próximas duas horas, foi recebido com grande entusiasmo. Sentou-se e, de violão na mão, começou a tocar e cantar, que era para isso que ali estava: “Quem é ateu e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar, nem cansam de esperar…”, primeiros versos da canção Milagres do Povo. Mas Caetano não demoraria muito a retribuir a forma calorosa com que foi recebido. Mais do que uma vez disse como era bom estar de regresso a Lisboa e voltar a um palco com muita gente à frente para o ouvir. O sorriso franco e a serenidade indiciavam que não eram só frases feitas, de circunstância nestas situações. Quando acrescentou, falando da pandemia sem ser preciso nomeá-la, “vamos ver como as coisas correm daqui pra frente…”, alguém da plateia gritou a plenos pulmões: “fora Bolsonaro!”. O músico baiano não fingiu que não ouviu e respondeu: “Isso era importante. É um passo que precisa ser dado, mas há muito por fazer… Mas é um passo que precisa ser dado, você está certa…”. A boa comunicação entre os dois lados da sala de espetáculos foi óbvia desde o início, mesmo se feita de poucas conversas – como num reencontro de velhos amigos.
No palco estava um homem a caminho dos 80 anos (nasceu em agosto de 1942), sozinho com o seu violão e a sua voz. A excelente qualidade do som na sala ajudou a que a noite de 2 de setembro de 2021, no Coliseu de Lisboa, fosse praticamente perfeita. Ao contrário, segundo o próprio Caetano, do concerto de dia 1 – o primeiro desta minidigressão, que ainda passará pela Guarda e Porto, antes de voltar a Lisboa, a 11 de setembro. O músico sentiu mesmo necessidade de pedir desculpa por momentos menos conseguidos na véspera, sublinhando que isso ainda lhe custava mais porque, no público, estavam Carminho (“acho que hoje veio também…”), António Zambujo, Salvador Sobral (“adoro o Salvador…”), Mafama. Mesmo nesta noite, em que tudo correu bem de início ao fim, Caetano sentiu necessidade de explicar que as suas mãos, por vezes trémulas, já não lhe permitem tocar violão como antes (“Mas faço o meu melhor…”, disse, provocando mais uma chuva de aplausos). Na verdade, Caetano Veloso nunca foi um virtuoso em nenhum instrumento. “Eu toco mal até hoje…”, dizia-nos em Amesterdão, em 2015, ao lado de Gilberto Gil, recordando os anos antes do exílio em Londres: “Nos shows já tocava, sim, pouco mas tocava. O que acontecia é que eu não tocava em gravações, no estúdio, não porque não quisesse mas porque não me deixavam [risos]. Diziam que não podia. Em Londres já me deixavam; por isso, quando regressei, como tocava em Londres os brasileiros também começaram a deixar…”.
Essa falta de virtuosismo técnico só torna ainda mais mágico e magnífico o que ali se passou. Um homem com as suas belas canções, interpretadas com uma voz só sua, sem artifícios de qualquer espécie. As sílabas de vogais bem abertas das letras de Caetano voavam límpidas pelo espaço amplo do Coliseu – a língua portuguesa mostrando como se presta a sublimes e originais jogos fonéticos – formando palavras ora poéticas e surpreendentes, ora urgentes e cheias de sentido(s), ora mestiças e originais. Ninguém rima “mar” com “juba” como Caetano no clássico Leãozinho que, claro, se fez ouvir. Várias vezes Caetano Veloso convidou, como nessa canção, às cantorias dos espectadores – e não é que até o público, com vozes maioritariamente femininas, estava particularmente afinado nesta noite? A despedida fez-se (como, aliás, já tinha acontecido na passagem de Caetano e Gilberto Gil pelos palcos portugueses na digressão Dois Amigos, Cinquenta Anos de Música) ao som de toda a sala cantando o refrão d’A Luz de Tieta. Antes, ainda, houve lugar a uma breve dança sensual – o que é que o baiano tem? tem graça como ninguém… – ao som de palmas ritmadas do público e a uma interpretação magistral, sem qualquer acompanhamento instrumental, com a voz de Caetano a mostrar-se nos seus melhores voos, graves e agudos, de Tonada de Luna Llena, do venezuelano Simón Díaz. Não é para todos. E noites com esta são um privilégio – do lado de lá e da cá do palco.