Portugal deslumbrado com um ouriço
Por José Tolentino de Mendonça
Cardeal da Igreja Católica, arquivista e bibliotecário do Vaticano
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Vasculhando entre os fragmentos de Arquíloco, o filósofo Isaiah Berlin encontrou um obscuro verso que parecia esculpido à medida para cutucar os seus leitores ingleses, em parte habituados, em parte ainda reticentes à combinação de conceitos com que ele operava na discussão da história das ideias. Arquíloco é provavelmente o poeta grego mais antigo de que nos chegou notícia e o mencionado verso dizia o seguinte: “Πολλ’ οἶδ’ ἀλώπηξ, ἀλλ’ ἐχῖνος ἕν μέγα” (“A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande”). Berlin distanciava-se do sentido literal da proposição que contrapõe as avultadas astúcias da raposa à única, mas eficaz, estratégia do ouriço. Na verdade, estava mais interessado num trabalho tipológico, recorrendo às figuras da raposa e do ouriço para descrever a fisionomia de duas famílias de espíritos. A daqueles que perseguem múltiplos interesses e dessa forma conhecem muito, mesmo que através de um caminho que parece dispersivo, descontínuo ou contraditório — e que são as raposas. E a dos que partem apenas de um eixo único e central, de uma realidade ou obsessão que atravessa persistentemente tudo o que dizem e fazem — e que se configuram como ouriços. Os que se posicionam do lado da raposa movem-se na realidade a vários níveis, revêem-se numa ampla gama de experiências e objectos, convivem bem com a incompletude e o desencaixe. Do lado do ouriço estão os que se nutrem de uma visão interior unitária, de um fulcro em torno do qual o mundo e a existência sem cessar se organizam.
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