Por um brevíssimo instante, Ai Weiwei fica invisível. É que empurrados pela advertência de que “o artista é muito pontual e não gosta de esperar”, espantados pela monumental pirâmide das 960 bicicletas de aço inoxidável estacionada no passeio público (a obra Forever Bycicles), mergulhados na barriga de baleia da Cordoaria Nacional, confrontados com um exército de gente afadigada a desencaixotar arcas de madeira, a transportar fragmentos misteriosos, a empurrar cordames, a medir paredes e forças gravíticas, a avançar com aspiradores, a instalar holofotes para as filmagens (“já a seguir…”) de um documentário (sobre Julian Assange), a garantir que tudo encaixa numa máquina oleadíssima suportada por sotaques de várias latitudes (Tarsila, com o nome da musa do modernismo brasileiro; Han, atenta a tudo o que é preciso como deve fazer um “braço-direito”; Lúcio (Moura), que já trabalhou com Joana Vasconcelos, já assombrados pelo bestiário em papel de seda que plana no teto… demora uns segundos até que a mente obedeça à ordem de focagem e se aperceba, então, que o artista chinês mais reconhecido da atualidade se materializou silenciosamente ao nosso lado. Ai Weiwei está à espera. Ao vivo e a cores, ele é um fac-símile das dezenas de fotografias já vistas: habita as roupas simples dos operários asiáticos, algodão azul e calças largas; tem o ar sério, com a barba a ganhar fiadas cinzentas, de um buda musculado; e aparenta uma mansidão de quem não é capaz de partir a loiça.
Mas este é o artista chinês capaz de fazer tremer um império milenar com um simples tríptico fotográfico em que se autorrepresentou, desafiador, a deixar cair das mãos, deliberadamente, um vaso precioso (Dropping a Han Dynasty Urn 1995). Esta é uma obra crítica dos ataques patrimoniais na sequência da Revolução Cultural de Mao na China, peça que atingiu 800 mil euros em leilão da Sotheby’s, em 2016, feita com o que ele apelidou de “readymade cultural”. Ai Weiwei é esse ideólogo de escala utópica e materiais quotidianos, capaz de subverter museus: quem esquece Sunflower Seeds (2010), instalação que juncou o chão da Tate Modern, em Londres, com 100 milhões de “sementes de girassol” feitas em porcelana e pintadas à mão por 1 600 artesãos chineses, em que incitava o público a caminhar sobre as peças delicadas numa alegoria implacável sobre os destinos do povo trabalhador chinês? Ai Weiwei está à nossa frente, ativista que varre manchetes internacionais com a regularidade de um pêndulo (ele que confessou passar bem sem as tocatas e fugas proporcionadas pela música), o homem de megafone metafórico que alerta para as violações dos Direitos Humanos, para os ataques à liberdade de expressão, para a tragédia dos migrantes – como a observada em Human Flow (2017), documentário de 140 minutos que realizou e apresentou no Festival de Veneza. De férias com o filho pequeno na ilha grega de Lesbos, o artista reparou num pequeno barco a aproximar-se da praia, tirou o iPhone do bolso e começou a filmar. Para sua incredulidade, apercebeu-se de que se tratava de uma vaga de refugiados, abandonados à sua sorte, e sentiu-se compelido a registar as histórias da sua via crucis na chegada à Europa. Este é um tema social em que sempre se empenhou, desde que se exilou na Europa, fugido à China natal. À publicação The Art Newspaper, assumia-se, em 2018, como “um refugiado high end”: “Posso falar com os média e consigo fazer muitas exposições, mas tenho uma pátria à qual não posso regressar.”